quarta-feira, 5 de março de 2008
Musas
Para quê voltar atrás e organizar os velhos posts, os pensamentos, os irrepetíveis estados de alma? Não sei. Mas não é só para mim. Continuo a ter esta sensação de que um dia vai ser preciso contar a história a alguém que se interesse. Cheguei a pensar que seria a um amante. Mais tarde, percebi que estas coisas se passam a um filho. Actualmente estou convencida que todo este trabalho só vai servir para integrar o meu processo quando chegar a altura de apresentar a defesa da minha Alma perante Deus. "Só" é maneira de dizer. Nada como ter os dossiers organizados na audiência do Juízo Final. Deus perdoará a minha falta de confiança nos registos Divinos no momento em que souber que venho de Portugal... Estou mesmo desconfiada de que me valerá amnistia imediata.
Este blog, que releio sem desejar, não era assim no princípio. Fico pasmada como um pacto com a morte podia ser mais leve, bem humorado, até amigável. E depois houve um dia, algures em 2005, em que percebi que nunca mais iria sorrir. Nunca.Mais.Na.Vida. E nunca mais sorri. Riso há, que o riso é fácil. Mas a porta que se fechou fez estrondo e deixou um eco amargo. Menos intimista? Não diria isso. Nem o intimismo alguma vez me interessou, diga-se de verdade.
Foi algo de muito pior que se passou aqui, entre mim e quem abre a boca para comentar. Uma falta de confiança. Um horror pela estupidez de quem a manifestou. Uma espécie de lepra que me mete nojo e não tenho a mínima vontade de curar. A mesma indiferença com que encosto a cabeça à carruagem do metro e tento dormir. O absoluto desprezo pelo que os outros possam pensar. O estar sozinha no meio da multidão e o não esconder que me estou borrifando para a presença do outro.
E isto é bom. Foi isto que perdi e ganhei de volta. O que perdi sozinha, o que reconquistei sozinha.
Há quem não me perdoe por isso. Para esses, a maioria, a certeza absoluta de que também não perdoarei. Porque outra razão estimaria tanto os meus dossiers? Não me apanham de calças na mão.
E depois, no meio deste relacionamento perverso entre mim e o blogue, que afinal não interessa nada, cai-me o queixo quando leio coisas tão boas que me chego a perguntar, caramba, fui eu que escrevi isto?! É por isso que acredito em musas que segredam ao ouvido dos escolhidos, ou dos fracos de espírito, ou dos loucos, e nos ditam as palavras que acabam assim:
De como eu acabei a viver em Portugal:
O meu OC, que era preto, ou tinha sido preto e mantinha a cor, porque como se sabe os anjos no céu não se casam nem são dados em casamento e também não têm cor nem sexo, mas até que lhe ficava bem com a túnica de cetim e as plumas das asas brancas (dava ares de Pai de Santo sem turbante), começava a ficar preocupado com a minha esquisitice e quase disposto a dar-me também umas asinhas e a promover-me a um cargo vitalício no funcionalismo público espiritual sem direito a férias pagas no estrangeiro.
(...)
Foi então que os olhos do meu OC se arregalaram. "Talvez não. Se é só isto que desejas da grande civilização europeia, há alternativa. Bem, uma alternativa-zinha. Há um país-inho medíocre, entre o Atlântico e o Mediterrâneo, que agora vive em ditadura mas isso vai acabar assim que tu chegares, e é, enfim, um país-inho, bonitinho, simpático, sem o sangue na guelra dos espanhóis, sem a máfia organizada dos italianos, sem a língua lixada dos gregos..."
"E que país é esse que nunca ouvi falar dele?"
"Chama-se Portugal... Portugal-zinho."
Os alhos e as cebolas e a invencível armada:
Assim que se apanharam com uma certificação profissional, os formandos foram contratados pelas armadas estrangeiras. E isto por várias razões. A primeira é que quando os portugueses são bons são mesmo muito bons. A segunda e determinante, porém, foi que tinham possibilidades de progredir numa carreira a sério, ao contrário dos teatrinhos de faz de conta da armada que teimava em não sair do porto. Por esta altura, a armada tomou a alcunha de “Armada Invencível”, não por ser muito boa mas por ser inamovível.
(...)
Entretanto, alguns espertalhões que viram ali a oportunidade, toca de abrir universidades privadas e cursos em universidades públicas para dar resposta às necessidades do mercado de trabalho, cursos esses de dois calibres. Um, de tendência mais profissional, “Curso de Alhos e Cebolas”, para explicar apenas e tão só o sistema de navegação nacional e mais umas cadeiras de Matemática Aplicada pelo meio. Outros, mais honestos, “Curso de Bombordo e Estibordo”, que incluía a cadeira “Alhos e Cebolas” para explcar a relação entre o bombordo e o estibordo e o sistema de navegação nacional e aproveitando à mistura para meter umas cadeiras de Relações Internacionais que havia muitos doutorados no desemprego.
(...)
A primeira coisa que o formador fez, porque era um chico esperto que também não sabia o que eram os alhos e as cebolas, foi abrir os sacos porque, pensou ele, bastava abrir os sacos para saber onde estava o quê! Esperto! Só que não resultou. Tinham-se passado tantos anos que quando o inteligente abriu os sacos só lá estava pó. Mas chico esperto como era, que nisto os portugueses são de facto imbatíveis, toca de arranjar uma solução provisória que era escrever num papel “alhos” e noutro papel “cebolas” para substituir os sacos e chamou ao procedimento “adaptação às novas realidades do mundo tecnológico da autoestrada da informação”.
Houve logo um formando (que podia ser eu) que simplesmente perguntou “mas se alhos e cebolas estão a substituir bombordo e estibordo e se se vai escrever num papel, porque não se escreve logo bombordo e estibordo e se esquece os alhos e as cebolas?”. Ideia genial. Erro fatal.
Eu não escrevi isto. São as malandras das Musas. Que as Musas nunca deixem de brincar comigo, é só o que peço.