Eu sou do rio a entrar no mar ou do mar a entrar no rio. Há quem seja do mar, há quem seja do campo, eu sou da foz. Em noites de nevoeiro, em manhãs de neblina, ouço desde criança os roncos dos barcos, tão graves que fazem tremer a alma, gritar por socorro. Ships in distress, aprendi depois que se diz noutra língua. Mas nem sempre os seus uivos de baleia moribunda são de medo. Sabe quem os conhece e os ouve desde antes de nascer. "Sai da frente!", ouço dizer. "Sai da frente ou daqui ninguém sai vivo!"
Ter-lhe-iam chamado determinismo noutra altura, à minha natureza indomável e melancólica de ouvir o lamento profundo dos grandes navios desde sempre, como elefantes, a anunciarem a sua rota implacável pelo centro do nevoeiro. Grandes e frágeis, tão frágeis quanto grandes. Cada vez que os ouço, eu que sou filha da foz, ouço que chamam por mim. É pior em noites de nevoeiro. Sei que não vêem, mas avançam à mesma porque têm onde ir e só aceitam dois destinos: o porto ou a morte. Não entende quem não é filho da foz. Gente da luz tem medo do nevoeiro.
Navios gigantes, fantasmas de voz sinistra, escutem, vossa irmã vos saúda!