quinta-feira, 25 de maio de 2006

O evangelho de Judas e os outros

Acreditando na autenticidade do chamado Evangelho de Judas, tanto a dos pergaminhos em si como a da tradução revelada pelo documentário da National Geographic, e tendo em conta que as passagens descritas são poucas e podem estar fora de contexto, as ideias em si não são novas nem são surpresa.
O livro leva a acreditar que Judas não é o traidor mas o apóstolo escolhido para ajudar Jesus a cumprir as escrituras. É mesmo sugerido que Judas tinha, do próprio Mestre, revelações acerca da mensagem de Cristo que não eram partilhadas com os outros apóstolos de Jesus.
Não é surpresa porque a teoria não é nova. Confesso, eu é que nunca pensei que fosse tão antiga quanto a data dos pergaminhos parece indicar.

A traição de Judas sempre colocou aos cristãos uma questão ética muito delicada. Os cristãos aceitam (e isso foi até claramente revelado pelo mestre aos apóstolos) que era preciso que se cumprissem as escrituras e que alguém traísse o Cristo. Logo, alguém estava predestinado a fazê-lo. A questão da predestinação é o tal problema delicado.

Em verdade o Filho do homem vai, como acerca dele está escrito, mas ai daquele homem por quem o Filho do homem é traído! Bom seria para esse homem se não houvera nascido.
E, respondendo Judas, o que o traía, disse: Porventura sou eu, Rabi? Ele disse: Tu o disseste.
(Mateus 26:24,25)
(Citações daqui.)

Ora, se alguém está destinado, condenado desde o nascimento, a fazer o Mal, onde está o livre arbítrio, a Escolha? E se há Escolha, Liberdade, enfim, livre arbítrio, a quem é que cabe a sorte ou o azar de fazer o Mal para cumprir as escrituras e fazer a vontade de Deus? E como é que Deus sabe previamente quem vai fazer o Mal? E se Deus conhece os corações dos homens e pode facilmente adivinhar quem fará o Mal (que é a explicação avançada pelos defensores do livre arbítrio cristão) então para que serve a vida? O jogo não está já todo lançado? E se o resultado está decidido à partida, para quê jogar?
A predestinação é chocante mas o livre arbítrio também. Se na predestinação o homem é um peão nas mãos do destino que apenas cumpre a sua parte, no livre arbítrio Deus escreve a peça que o homem leva à cena, mas em ambos os casos o homem não pode alterar uma vírgula nem acrescentar um ponto. Em ambos os casos, o homem não tem poder algum. No segundo caso, o mais simpático, o homem é um actor voluntário que representa infinitamente o seu papel.

O que nos leva de volta à questão de Judas e ao seu papel. Como é que os evangelhos explicam a traição?
Tal como foi explicado no documentário, à medida que passa tempo sobre a morte de Jesus, os evangelhos vão endurecendo a percepção que é escrita sobre Judas e a culpa dos próprios judeus na morte de Cristo. Convinha aos cristãos desculparem os Romanos e diferenciar a sua fé emergente da fé judaica. Nada disto é novo e nada disto é uma conspiração. Está até muito claro, na própria Bíblia:

Actos 13

45 Então os judeus, vendo a multidão, encheram-se de inveja e, blasfemando, contradiziam o que Paulo falava.
46 Mas Paulo e Barnabé, usando de ousadia, disseram: Era mister que a vós se vos pregasse primeiro a palavra de Deus; mas, visto que a rejeitais, e não vos julgais dignos da vida eterna, eis que nos voltamos para os gentios;


À medida que os judeus são culpados e os gentios desculpabilizados, assim também se enegrece a imagem de Judas, desde Mateus (o evangelho mais antigo) a João (o mais recente).
Em Mateus, diz-se:


Mateus 26

47 E, estando ele ainda a falar, eis que chegou Judas, um dos doze, e com ele grande multidão com espadas e varapaus, enviada pelos príncipes dos sacerdotes e pelos anciãos do povo.
48 E o que o traía tinha-lhes dado um sinal, dizendo: O que eu beijar é esse; prendei-o.
49 E logo, aproximando-se de Jesus, disse: Eu te saúdo, Rabi; e beijou-o.
50 Jesus, porém, lhe disse: Amigo, a que vieste? Então, aproximando-se eles, lançaram mäo de Jesus, e o prenderam.



Mateus 27

3 Então Judas, o que o traíra, vendo que fora condenado, trouxe, arrependido, as trinta moedas de prata aos príncipes dos sacerdotes e aos anciãos,
4 Dizendo: Pequei, traindo o sangue inocente. Eles, porém, disseram: Que nos importa? Isso é contigo.
5 E ele, atirando para o templo as moedas de prata, retirou-se e foi-se enforcar.


Repare-se que aqui a palavra usada para Jesus se referir a Judas é "amigo", embora em Mateus Jesus já tivesse declarado que aquele é que o ia trair.
Em Lucas, a traição é explicada com a interferência de Satanás:

Lucas 22

1 Estava, pois, perto a festa dos ázimos, chamada a páscoa.
2 E os principais dos sacerdotes, e os escribas, andavam procurando como o matariam; porque temiam o povo.
3 Entrou, porém, Satanás em Judas, que tinha por sobrenome Iscariotes, o qual era do número dos doze.
4 E foi, e falou com os principais dos sacerdotes, e com os capitäes, de como lho entregaria;
5 Os quais se alegraram, e convieram em lhe dar dinheiro.
6 E ele concordou; e buscava oportunidade para lho entregar sem alvoroço.

(...)

47 E, estando ele ainda a falar, surgiu uma multidão; e um dos doze, que se chamava Judas, ia adiante dela, e chegou-se a Jesus para o beijar.
48 E Jesus lhe disse: Judas, com um beijo trais o Filho do homem?


Mas, em João, a palavra que Jesus emprega para se referir a Judas é já a palavra "diabo".

João 6

70 Respondeu-lhe Jesus: Näo vos escolhi a vós os doze? e um de vós é um diabo.
71 E isto dizia ele de Judas Iscariotes, filho de Simão; porque este o havia de entregar, sendo um dos doze.



Aliás, a imagem que João descreve do Judas de má índole começa ainda antes da traição:

João 12

3 Então Maria, tomando um arrátel de unguento de nardo puro, de muito preço, ungiu os pés de Jesus, e enxugou-lhe os pés com os seus cabelos; e encheu-se a casa do cheiro do unguento.
4 Então, um dos seus discípulos, Judas Iscariotes, filho de Simão, o que havia de traí-lo, disse:
5 Por que não se vendeu este unguento por trezentos dinheiros e näo se deu aos pobres?
6 Ora, ele disse isto, não pelo cuidado que tivesse dos pobres, mas porque era ladrão e tinha a bolsa, e tirava o que ali se lançava.
7 Disse, pois, Jesus: Deixai-a; para o dia da minha sepultura guardou isto;
8 Porque os pobres sempre os tendes convosco, mas a mim nem sempre me tendes.


Como se pode ver, Judas não é apenas um traidor. É ladrão, ganancioso, e, pecado dos pecados (como viria a dizer Paulo, "o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males"), era o tesoureiro dos apóstolos, o que guardava o dinheiro e, como descrito acima, o roubava. Logo, pode-se supôr que Judas acompanhava os apóstolos para guardar o saco. Judas é toda a personificação do Mal, e não apenas de um mal menor mas da raiz de todo o Mal.

O que põe uma questão ainda mais delicada. Se Jesus sabia que Judas era a personificação do Mal, e que essa era a inclinação do seu coração, não deveria tentar salvá-lo em vez de o deixar afundar-se na condenação eterna (se ela existe)? Não é o dever do cristão acudir aos doentes, não aos que têm saúde?
E aqui começam as contradições no próprio discurso e prática de Cristo. E aqui diz-se "mas alguém tinha que cumprir as escrituras", e começa também a pescadinha de rabo na boca do livre arbítrio e de a quem cabe a má sorte. E ainda não se perguntou se é possível que alguém tenha apenas inclinação para o Mal, se alguém pode personificar o Mal. A discussão já ia alta (e requentada) quando aparecem estes pergaminhos a colocá-la não nas cátedras das universidades modernas mas no século primeiro. Se há surpresa, é esta.

E se a teoria é tão discutida, é porque é plausível. Quando Pedro se apercebe que Jesus vai ter um fim trágico e o incita a fugir, é acusado de estar sob influência do mesmo diabo que teria influenciado o traidor que entrega Jesus à morte:

Mateus 16

21 Desde então começou Jesus a mostrar aos seus discípulos que convinha ir a Jerusalém, e padecer muitas coisas dos anciãos, e dos principais dos sacerdotes, e dos escribas, e ser morto, e ressuscitar ao terceiro dia.
22 E Pedro, tomando-o de parte, começou a repreendê-lo, dizendo: Senhor, tem compaixão de ti; de modo nenhum te acontecerá isso.
23 Ele, porém, voltando-se, disse a Pedro: Para trás de mim, Satanás, que me serves de escândalo; porque não compreendes as coisas que são de Deus, mas só as que são dos homens.



O que não deixa de ser curioso, e logicamente indefensável. Não pode estar pelo Diabo aquele que diz a Jesus que se salve e, ao mesmo tempo, aquele que leva Jesus à morte. Ou está um, ou o outro. Como apresentam soluções opostas, não podem de modo algum estar ambos a fazer a vontade do Diabo, ou o Diabo está muito confuso e não sabe o que quer. Mas já dizia Jesus, "se eu expulso demónios pelo demónio, não está o diabo a dividir a sua própria casa"? Quem estará, pois, a dividir a casa?

E depois vem o maior argumento para a admissão da maldade de Judas pelo próprio Judas, que é o seu arrependimento e suicídio. A versão tradicional suaviza a sua inclinação para a Maldade e abre a porta da redenção ao pior dos pecadores. Se não da redenção, pelo menos a do arrependimento. Ficamos a saber que ninguém é completamente mau ou que, pelo menos, Judas não o era. Se o fosse, teria pegado nos 30 dinheiros e gastado no que lhe apetecesse - isso sim, era do Judas do evangelho de João - sem o menor remorso. Sendo assim, e tendo-se arrependido, terá perdão?
Mas segundo o evangelho de Judas, como o conhecemos, também não há grande resposta para este mistério do arrependimento e do suicídio. Se Judas entrega Jesus convencido de que está a fazer a vontade de Deus, porque se suicida? Porque se arrepende?
O evangelho de Judas assenta como uma luva ao pensamento moderno porque dá a total liberdade de escolha ao indivíduo. Judas não parece ser um santo nem um diabo. Parece ser um homem que faz escolhas, mal ou bem influenciadas pelo que acredita, mas apenas um homem como os outros. O próprio suicídio, porque entretanto o mesmo homem mudou de ideias, é a prova dessa total liberdade de escolha, até a escolha absoluta entre a vida e a morte. O Judas do evangelho de Judas não parece ser o mártir nem o condenado; é apenas o indivíduo, na sua liberdade, na sua incoerência, nas suas convicções.
Vai ser difícil para a igreja, qualquer igreja, nos dias que correm, contrariar esta ideia, porque o tempo dos mártires e dos condenados acabou. (Pelo menos em certas partes do planeta.)

Como atalho de foice, é também por isso que "O Código de Da Vinci" tem a popularidade que tem. O ser humano atingiu a maior liberdade que alguma vez teve na sua história e já não aceita que o indivíduo se submeta a uma vontade maior do que a sua própria. O indivíduo divinizou-se. O homem já não aceita mais nada senão ser Todo-Poderoso em relação ao seu destino e acredita que já não precisa de se transcender para ser igual ao divino mas, pelo contrário, aceita que o divino se humanize sem por isso perder a sua divindade.

5 comentários:

Goldmundo disse...

Que texto fascinante! tenho que organizar ideias porque queria responder. Obrigado.

Musgo disse...

farei o mesmo que o Gold.

Klatuu o embuçado disse...

Também cortava a cabeça a esse... judas!:)=

katrina a gotika disse...

Quando responderem, avisem-me, tá?

Mourning Bride disse...

Sinceramente acredito muito nos evangelhos gnósticos mais atré do que nos evangelhos canónicos. Realmente a muitas contradições nos evangelhos canónicos, como a que te referistes, se Jesus ensinou-nos a amar o próximo como a nós mesmos, porque haveria ele de criticar Judas em vez de ajudá-lo a se libertar do mal que fazia?
Por isso acredito mais no evangelho de Judas e penso que o evangelho de João e Mateus foi muito modificado pela igreja. Quanto ao livre arbítrio e ao fim do teu post, sou um pouco mais pessimista. Para mim o livre arbítrio existe para todos nós porém obviamente que um homem materialista e cheio de paixões não tem liberdade nem capacidade alguma para tomar suas próprias decisões, logo é completamente previsível para Deus e para qualquer homem mais evoluído. E quanto ao que disseste nesse parágrafo:"O ser humano atingiu a maior liberdade que alguma vez teve na sua história e já não aceita que o indivíduo se submeta a uma vontade maior do que a sua própria. O indivíduo divinizou-se. O homem já não aceita mais nada senão ser Todo-Poderoso em relação ao seu destino e acredita que já não precisa de se transcender para ser igual ao divino mas, pelo contrário, aceita que o divino se humanize sem por isso perder a sua divindade".
Discordo completamente, onde está a divindade no materialismo, no egoísmo? como um ser que não se familiariza com a natureza, com a sua família e com o seu ambiente, não se precocupa com nada que passe alem do seu umbigo pode ser divino???
Na minha opinião a jornada do homem até a divindade está longe de acabar! Talvez se aprendessem com as culturas antigas, com a natureza e se conhecessem a si mesmos, a jornada se faria um pouco mais rápida...