domingo, 14 de agosto de 2005

Lengalenga

História contada pela minha avó à minha mãe e contada pela minha mãe a mim.
Eu acho uma pena que estas coisas se percam porque dependiam da tradição oral e a tradição oral perdeu-se. Já não há histórias ao serão à roda da lareira.


Formiguinha

Uma formiguinha andava com a carga às costas quando se fez noite. Meteu-se debaixo de uma folha mas deixou uma patinha de fora. De noite nevou e, de manhã, a formiguinha tinha a patinha gelada, toda branquinha, coberta de neve, e não conseguia sair de onde estava.
E perguntou a formiguinha ao sol:

- Sol, tu que és tão valente, não derretes a neve do meu pézinho?

E disse o Sol:

- Mais valente que eu é a Nuvem que me tapa.

E disse a formiguinha:

- Nuvem, tu que és tão valente, porque não destapas o sol, que não derrete a neve do meu pézinho?

E disse a Nuvem:

- Mais valente que eu é o Vento, que me empurra.

- Vento, tu que és tão valente, porque não espalhas a nuvem, que tapa o sol, que não derrete a neve do meu pézinho?

E disse o Vento:

- Mais valente que eu é o Muro que me detém.

- Muro, tu que és tão valente, porque deténs o vento, que não espalha a nuvem, que tapa o sol, que não derrete a neve do meu pézinho?

E disse o Muro:

- Mais valente que eu é o rato, que me fura.

- Rato, tu que és tão valente, porque furas o muro, que tem não no vento, que não espalha a nuvem, que tapa o sol, que não derrete a neve do meu pézinho?

E disse o Rato:

- Mais valente que eu é o gato, que me papa.

- Gato, tu que és tão valente, porque papas o rato, que fura o muro, que tem não no vento, que não espalha a nuvem, que tapa o sol, que não derrete a neve do meu pézinho?

E disse o Gato:

- Mais valente que eu é o Cão, que me morde.

- Cão, tu que és tão valente, porque mordes o gato, que papa o rato, que fura o muro, que tem não no vento, que não espalha a nuvem, que tapa o sol, que não derrete a neve do meu pézinho?

E disse o Cão:

- Mais valente que eu é o Homem, que me bate.

- Homem, porque bates no cão, que morde o gato, que papa o rato, que fura o muro, que tem não no vento, que não espalha a nuvem, que tapa o sol, que não derrete a neve do meu pézinho?

E disse o Homem:

- Mais valente é a Morte, que me mata.

Nisto, a formiguinha reparou que o tempo tinha passado, e o vento espalhou a nuvem, que destapou o sol, que tinha derretido a neve do seu pézinho. E pôde ir à sua vidinha.




Esta história lembra-me este país. É um jogo do empurra em que os mais fortes oprimem os mais fracos mas em que ninguém quer assumir a responsabilidade e onde se pensa que as coisas se resolvem por si próprias.

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