domingo, 22 de outubro de 2023

The Circle / O Círculo (2017)

[Facto irrelevante: esta foi a primeira vez que vi a Hermione (Emma Watson) depois de crescida.]

Mae é uma jovem com um curso de História que trabalha no atendimento ao cliente da Companhia da Água lá do sítio, um emprego ingrato e sem perspectivas. Quando uma amiga lhe arranja uma entrevista na empresa The Circle, Mae fica super entusiasmada e consegue o emprego, a princípio no Apoio ao Cliente também, mas que diferença! The Circle é uma empresa do tipo Facebook/Google/Apple com tiques de culto (se não mesmo um culto), com toda uma liturgia empresarial, palavreado e frases próprias. Os empregados são constrangidos a passarem lá o dia de trabalho, as horas de lazer e os fins-de-semana.
Vou fazer um parêntesis para explicar como é que estas monstruosidades surgiram, e aproveito para contar uma das minhas histórias de terror. Começou tudo com um inocente convívio empresarial para “reforçar os laços entre equipas”. Eu trabalhei numa produtora de televisão, nos anos 90, que pura e simplesmente não percebia que as pessoas tinham vidas para além do trabalho. Como estagiários sem grande escolha, éramos insidiosamente obrigados a ficar lá depois do trabalho (porque nos pagavam o jantar, porque nos pagavam o táxi se fosse preciso e fora de horas), a “conviver” com colegas e patrões por quem não tínhamos a mínima simpatia, quando a gente só queria ir para casa como pessoas normais. Entrávamos lá às 10h da manhã e podíamos sair depois da meia-noite, conforme os jantares de convívio se prolongassem e os patrões decidissem contar histórias e abrir mais uma garrafa. Todos nós, estagiários, tínhamos de os aturar de sorriso amarelo para conseguirmos o emprego. Só os mais velhos na empresa se podiam dar ao luxo de ir para casa a horas decentes. Era tortura. Penso mesmo que aquilo tudo era uma rampa de lançamento para o assédio sexual futuro: Agora ficam os estagiários todos, mais tarde ficamos só “tu e eu”. Obviamente, aquilo tudo me cheirava mal. O objectivo era que fôssemos uma “família”. Família o caraças. Na primeira semana de trabalho tive o azar de precisar de ir ao dentista de urgência para uma desvitalização e de ficar o dia em casa para recuperar (porque dói como o caraças e exige medicação que nos impede de funcionar). Mandaram-me embora por causa disso apesar de eu ter conseguido compensar o meu trabalho todo. Filhos da mãe! Só lhes desejo as dores que eu tive e que a produtora vá à falência (se calhar até já foi). Ainda por cima não me pagavam mais do que o ordenado mínimo, e a recibos verdes.
Mas este não é o caso de Mae, regressando ao filme, que recebe um ordenado chorudo bem como um plano de saúde. O pai de Mae sofre de esclerose múltipla e não tem meios para pagar a assistência de que necessita. A empresa é tão boazinha que inclui os pais de Mae no plano de saúde dela, o que a princípio os pais consideram um milagre. Mas, para ter direito ao plano de saúde, Mae tem de engolir um chip que, durante algumas horas, faz com que se consiga monitorizar tudo o que faz e por onde anda.
Mas isto não é nada. A empresa tem uma rede social, TruYou, que permite fazer movimentos bancários, compras e autenticações noutras plataformas que não têm nada a ver com redes sociais. Imaginem, por exemplo, que se podiam autenticar no vosso banco, fazer compras online, marcar consultas, matricular-se na escola, tudo com a conta do Facebook. (Que o Costa não leia isto, Céuzinhos, porque aquela da app COVID andou bem perto!)
Isto já é suficientemente arrepiante, mas há pior. The Circle já tinha desenvolvido um chip com geolocalização para ser implantado nos ossos das crianças dos empregados de modo a mantê-las “sempre controladas e seguras”.
De seguida, The Circle inventa uma mini-câmara esférica, pouco maior do que um berlinde dos grandes, que se pode colar onde se quiser. No “new speak” da empresa chamam-lhe SeeChange, uma maneira de manter uma vigilância permanente sobre os cidadãos sem que estes saibam que estão a ser vigiados, a princípio com a desculpa de detectar “criminosos e terroristas”. Mais uma vez a desculpa da segurança a sonegar liberdades e garantias. Eu chamo-lhe BIG BROTHER IS WATCHING YOU. A empresa diz que pode colocar as câmaras onde quiser, sem licença. (Não sei como é nos Estados Unidos, mas aqui não pode não senhor. Só as forças de segurança podem colocar câmaras de vigilância em lugares públicos. Os particulares só as podem colocar na sua própria propriedade. Ainda não chegámos à China.)
Parece que nenhum daqueles millenials que trabalha no The Circle, inclusive a licenciada em História, alguma vez leu “1984”, porque acharam uma excelente ideia. Ou, se não acharam, calaram-se. Afinal, é um bom emprego e um bom ordenado. É preciso não esquecer isso também.
The Circle faz-se paladino de causas nobres como a “transparência”, e convence Mae a dar o exemplo (a mesma Mae que precisa do plano de saúde para o pai). Mae vai passar a andar 24 horas com uma câmara SeeChange, e qualquer pessoa da rede social TruYou, em todo o mundo, a pode seguir/ver/comentar durante essas mesmas 24 horas, até a lavar os dentes.
Isto já me parece um filme de terror, especialmente porque é sub-repticiamente imposto aos empregados com uma lavagem cerebral progressiva, ao contrário dos concorrentes do “Big Brother” que estão lá porque querem. (Mas a gente devia pensar a sério no que anda a fazer com estes precedentes apresentados como diversão.)
Um dos followers de Mae faz um comentário engraçado: “Isto é o princípio de um filme-catástrofe?” Bem, que é o princípio de um filme de terror, é, e nem sequer original.
The Circle não fica por aqui. Com uma lógica retorcida, salienta que 80% dos americanos têm conta no TruYou, o que é muito menos do que os americanos que votam. E se, pelo bem da democracia, bastasse a conta TruYou para votar? E se, indo ainda mais longe, toda a gente fosse obrigada a ter uma conta TruYou e a votar? O processo de votação ficaria a cargo de The Circle, é claro, porque seria muito caro de implementar para o governo. Mas The Circle já tem a tecnologia, é só fazer com que o governo dê o aval.
E aqui temos, filme de terror completo. Imaginem votar pelo Facebook. Imaginem o Facebook a gerir as eleições de todos os países do mundo. Imaginem-nos a eleger quem eles quiserem. É aterrador.
Aconselho este filme a toda a gente que pensa que entregar a tecnologia das eleições a privados podia ser uma boa ideia. Aconselho a toda a gente que pensa que abdicar da privacidade em prol da segurança (ou seja do que for) é boa ideia. Aconselho a toda a gente que pensa que não tem nada a esconder e pode (e deve) mostrar tudo, seja qual for a razão que o move. Aconselho a toda a gente que apoiou a app COVID. Aconselho a quem não leu “1984”. Aconselho a quem não leu “1984” que faça um favor a si próprio e vá já correr a ler.
Voltemos novamente a “The Circle”. Havia aqui muitas consequências catastróficas a explorar, mas o filme não cumpriu a promessa. Sim, vemos uma das consequências, mas os resultados podiam ser (e seriam) muito piores. No fim, parece que o filme nos quer dizer “a tecnologia veio para ficar, não há volta a dar, mas os passos têm de ser bem medidos”. Lamento que “The Circle” não tenha sido mais ambicioso. Tinha tudo para o ser.

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