Únicos sobreviventes de um naufrágio, um rapaz e um tigre têm de aprender a viver em conjunto até chegarem a porto seguro.
É esta a premissa do filme e, apesar das improbabilidades, o filme convence. Eu sou daquelas que aceitam que aquilo que o filme mostra é aquilo que o filme me quer contar. A não ser que o filme me comece a dar sinais do contrário.
Pelo menos até ao aparecimento da ilha, estive perfeitamente convencida de que a história se centrava na simbiose forçada entre um rapaz e um tigre. O rapaz, Pi, náufrago e perdido no Pacífico, porque precisava da companhia do tigre (ou de salvar a vida ao tigre) para ter uma razão para viver e não desistir; o tigre, porque depois do primeiro mergulho fora do barco compreende muito bem que não consegue regressar ao barco sozinho, e que a criatura humana tem maneiras de o ajudar a sobreviver desde que não a coma. Os animais são inteligentes. E, com o tempo, os animais são capazes de estabelecer uma relação de igual para igual com o ser humano em que a ideia de o comer já não se põe. O humano e o animal tornam-se dois companheiros, na tal relação de simbiose a que alguns de nós gostamos de chamar "amizade" na falta de termo melhor. Só o sabe quem já o teve. Alguns, e a pena que tenho deles, nunca o tiveram nem vão ter (nem merecem tê-lo).
Acredito completamente que a partir do momento em que o tigre percebeu que o rapaz era capaz de pescar, para comerem ambos, o tenha passado a olhar como fonte de comida em vez de refeição. Pensando bem, o tigre não era 100% selvagem. Era um tigre de jardim zoológico já habituado a ver no ser humano a mão que dá a comida. Comida menos boa, agora que é peixe e não carne, mas comida, e água, que sem o humano o tigre não consegue obter sozinho. Quero acreditar que um tigre não é menos inteligente do que um gato doméstico que não consiga fazer esta dedução. Outro dado a ajudar à plausibilidade são as histórias verdadeiras de amizades improváveis entre homem e animal selvagem. Acontece.
E, até aqui, eu estava completamente convencida.
À medida que a situação se torna mais desesperada, a beleza das imagens arrebata-nos a alma. Este é um filme que vale a pena ver só pela beleza com que captura e recria a natureza, o mar, os animais marinhos, o céu, as estrelas, as tempestades, a luz, as nuvens. Tudo é sublime. Talvez até tão sublime que toca a fantasia, mas vale a pena ver mesmo assim.
(Alguém acredita que o tigre não é verdadeiro? O tigre não é verdadeiro. Só por causa disso o filme mereceu todos os Óscares, mas o filme tem mais do que imagens bonitas. E tem mais do que uma história bonita.)
Comecei a desconfiar quando os dois náufragos encalham no que parece ser uma ilha verde e misteriosa, e flutuante, repleta de sericatas (?!!!). Nesta altura, tanto o rapaz como o tigre já estavam muito desidratados e exauridos. Julguei que era um sonho ou uma alucinação. Algo na ilha não batia certo. É a nossa grande pista para nos perguntarmos se estamos a ver uma história verdadeira. Ou uma história verdadeira com uma alucinação pelo meio? Também é possível.
Desde o início sabemos que o rapaz sobreviveu. É este, já adulto, quem conta a história. Toda a nossa preocupação reside, agora, no tigre. Não tenhamos dúvidas, o tigre é a grande estrela de "Life of Pi".
O grande senão deste filme é que coloca muitas perguntas e não lhes dá nenhuma resposta. Afinal, esta é a história da amizade entre um rapaz e um tigre, ou é a alegoria de algo mais sombrio? Não sabemos, fica ao nosso critério.
Da mesma forma, o filme tenta colocar questões espirituais que nem sequer me atingem, nem ao de longe. O tio do rapaz, após este ter sobrevivido, conta a um escritor que o sobrinho tem "uma história que nos vai fazer acreditar em Deus". Lamento, mas não vi Deus nenhum aqui. A amizade entre rapaz e tigre não é um milagre. Nem sequer a sobrevivência é um milagre. O rapaz sobrevive, mas e os outros, o navio inteiro com a tripulação, os outros animais do jardim zoológico, a família de Pi? Todos estes morreram. Não houve milagre nenhum. É certo que durante o tempo em que está perdido Pi se dirige muitas vezes a Deus, uma das quais, delirante, em que julga ver Deus nos relâmpagos de uma tempestade e quase afunda o barco à conta desse momento de insanidade, mas não é nada estranho. "Não há ateus nas trincheiras", diz o ditado, e desde miúdo que Pi tinha genuíno interesse na religião. Nada de misterioso aqui.
O que eu penso que o filme tentou fazer foi isto: da mesma forma que Pi procurou muitas religiões para chegar a Deus, assim também nós devemos escolher em que história preferimos acreditar. Como Pi diz no fim, "é a mesma coisa com Deus".
Ora, isto pode ser um abre-olhos para alguém que nunca pensou em nada vagamente espiritual, ou para alguém que sempre considerou que só havia uma religião "certa" e esta era a sua, mas a mim soa-me uma mensagem pobrezinha, muito pobrezinha, miserável de tão pobrezinha.
E se a história verdadeira era a outra, e em vez disso Pi prefere relatar um conto de fadas para crianças, qual é a mensagem que tiramos disto? Que Pi não suportou a verdade e se refugiou na fantasia? Se a história era a outra não havia maneira melhor de a contar? (E aqui lembro-me de "Pan's Labyrinth" de Guillermo del Toro, para dar um exemplo do que quero dizer sem spoilers a este filme.)
Em suma, fiquei sem saber que mensagem o filme queria transmitir, e após duas horas de aflição e lágrimas senti-me ludibriada e de barriga tão vazia como o pobre do tigre, que pode ou não existir.
Como as outras perguntas ficam sem resposta, prefiro acreditar na história do tigre. É aquela que me diz alguma coisa.
Se me queriam contar uma história diferente, tivessem contado.
15 em 20
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