domingo, 6 de janeiro de 2019

O Touro Azul (Histórias da minha avó)



"O Touro Azul" era uma das minhas histórias preferidas de infância. Em parte porque combina elementos de duas outras histórias infantis, A Branca de Neve (o arquétipo da madrasta má) e A Gata Borralheira (o arquétipo da jovem pobre e/ou que perde tudo e acaba a casar com um príncipe). Mas o que mais gosto nesta história é a parte triste. A parte que me fazia vir lágrimas aos olhos. O sacrifício. Nunca achei que este sacrifício tivesse valido a pena e sempre pensei, ainda antes de saber que pensava, que este é um conto sombrio e cruel.
Aqui há uns anos andei à procura deste conto na internet e não o consegui encontrar. Decidi um dia escrevê-lo eu e publicar aqui. São contos da oralidade, passados de avós para mães para netas, que facilmente se perdem se ninguém os registar e divulgar. Desta vez, quando tive tempo, procurei e encontrei. O blog Contos da Minha Terra teve a iniciativa de o publicar. É de lá que o transcrevo, acrescentando outros pormenores da versão da história como eu a ouvi e conheço. E já se sabe como é. Quando ouvimos uma história em crianças só há uma versão possível e é a nossa. É a versão sagrada da nossa infância e não admitimos que se altere uma linha. Esta versão, no geral, está muito perto daquela que eu conheço.
Vou fazendo os apontamentos e a análise ao longo do conto.

Era uma vez  um rei e uma rainha, os quais tinham cada um, uma filha. Como ambos eram viúvos, resolveram casar-se, e assim fizeram.
A filha do rei era muito formosa, muito bonita e boa para toda a gente do reino. Ao contrário, a filha da madrasta era muito feia, muito desajeitada e muito malcriada para com toda a gente do palácio. Ninguém gostava  dela. Entregava-se o rei muito ao exercício da caça, e enquanto por lá andava, era a sua filha que o representava, sendo por isso o ídolo dos habitantes do reino.
A madrasta ardia de ciúmes por esta preferência e jurou por sua alma vingar-se da filha do marido. Nesse intento, numa ocasião em que o marido teve de se ausentar , ordenou a madrasta à enteada que fosse guardar um touro azul, que o pai desta comprara e que era muito bravo.


Na nossa versão da história não havia reis nem rainhas. Eram gente do povo, mas gente abastada, porque não compraram só um boi mas uma boiada toda, onde vinha o Touro Azul. 


A boa menina, toda transida de medo, cumpria as ordens da madrasta, recebendo desta uma pequena merenda para comer todo o dia.


A nossa versão é mais perversa. A madrasta entregava à enteada um pão inteiro mas exigia-lhe que o trouxesse para casa intacto. O objectivo era mesmo matar a enteada à fome. Com a ponta do corno, o Touro Azul fazia um buraquinho na côdea por onde a menina podia comer o miolo. Assim, a menina comia e o pão regressava exteriormente intacto. E lá iam resistindo à madrasta.
Para a proteger dos outros touros, o Touro Azul (que obviamente não é um animal mas alguém sob encantamento) deixava que ela o montasse quando estavam no campo.

Contra a sua expectativa o touro não só não a maltratou, mas até a olhava serenamente. No dia seguinte, voltou a menina, e quando se dirigiu para o touro, este ajoelhou-se diante dela e disse-lhe:
-“ Tira o guardanapo , que tenho por detrás da orelha, e estende-o no chão que logo te aparecerá comida e bebida consoante a tua condição.” A princesa fez o que o touro lhe ordenou, e logo viu na sua presença os melhores manjares. Satisfeito o apetite, tornou a colocar o guardanapo atrás da orelha do touro, que em seguida, se retirou, cortejando-a.

Esta parte também me parece estranha. Não me lembro de o Touro Azul cortejar a menina. Lembro-me de ele a ajudar porque tinha pena dela e porque se tinham tornado amigos.

E assim, se passaram alguns dias. A rainha admirada que o touro não atentasse contra a enteada e de que esta parecesse viver satisfeita, ordenou a um pagem que espreitasse a enteada. Em breve, este se certificou de toda a verdade e a comunicou à rainha.
Entretanto, voltou o rei da caça, e a rainha fingiu-se doente, de cama. Ficou o rei muito aflito e mandou chamar os médicos, que declararam achar-se a rainha muito enferma. A rainha fingiu grande fastio, mas como instassem com ela para que comesse, resolveu pedir um caldo da carne do touro azul. Ficou a filha do rei muito magoada com aquela exigência, e antes que o pai mandasse matar o touro azul, foi ela preveni-lo. Pela calada da noite, dirigiu-se à tapada onde logo viu o touro azul.
-“Já sei a que vens aqui: a rainha quer matar-me. Vem comigo, senão ela dá cabo de ti.” – disse o touro azul
E ambos fugiram. Depois de terem andado toda a noite e todo o dia seguinte, disse o touro:
- “Agora vamos entrar nesse jardim, onde há muitas flores de cobre. È guardado por um gigante com quem brigarei, e como ele é muito forte, talvez me mate. Tu repara se cai alguma flor.”

Outra diferença. Na nossa versão da história o Touro lutava contra um feiticeiro (não que altere o efeito ou o resultado). E entravam em pomares, não em jardins. Mas o Touro prevenia a menina para não tocar em nada e não fazer cair uma única folhinha. Dava-se a entender que haveria graves consequências se isso acontecesse.
Sem querer, a menina fazia sempre cair uma folha, e depois de o mal estar feito o Touro Azul dizia-lhe que a recolhesse no avental: "Avisei-te que tivesses cuidado. Mas já que aconteceu, guarda a folha no avental." Esta sequência de acidentes ou descuidos aparentam ser um "quebrar de regras" por culpa da personagem que faz adivinhar um desfecho trágico.


Apesar das súplicas da princesa, o touro encaminhou-se para o jardim. Logo aos primeiros passos viu a menina cair uma flor.
-“ Guarda-a no teu avental:” – disse-lhe o touro.
E a princesa assim fez. Quase ao mesmo tempo, apareceu o gigante e começou a lutar com o touro. Este ficou vencedor, mas muito ferido.
-“ Tira um frasquinho, que o gigante aí morto tem à cintura, e deita-me sobre as feridas o óleo nele contido.”- disse o touro
A menina cumpriu a ordem, e o touro ficou completamente sarado.
Mais adiante, chegaram a outro jardim em que as pétalas das flores eram de prata. Nele também havia um gigante, que foi morto pelo touro, sendo as feridas que ele recebera, curadas com o licor contido no frasquinho que pendia da cinta do gigante. Aqui, também caiu uma pétala de prata que a menina recolheu no seu avental..
Mais adiante, apareceu outro jardim em que as pétalas eram de ouro. De guarda estava um formidável gigante que trazia à cinta um frasco e uma faca de mato. Lutou o gigante com o touro e este matou o gigante.
Então disse o touro à princesa: -“ Deita-me nas feridas o líquido do frasco e guarda a faca de mato.”
A menina assim fez. Mais adiante pararam, e disse-lhe o touro: - “ Que vês acolá?”
-“ Vejo uma ribeira e lá no cimo do monte uma casa” – respondeu a menina
O touro azul disse-lhe: - “A casa que vês é um palácio; aí vive uma rainha com o seu filho. Agora farás o seguinte: com a faca que trazes tira-me a pele, guarda nela as três pétalas que apanhaste, e vai meter tudo debaixo daquela lage ali ( aponta-lha), a qual às três pancadas, se levantará. Depois suja-te na ribeira e vai-te oferecer como criada àquele palácio. Quando ouvires dizer que há aqui perto alguma festa, faze-te parva e pede que te deixem lá ir. Debaixo da lage encontrarás o que desejares para te vestires.”
Bem contra a sua vontade, a menina fez o que o touro lhe ordenou.

Esta é a parte mais dramática do conto e aqui é apresentada quase sem relevância nenhuma. Na nossa versão, não é a menina que mata o touro. O Touro Azul venceu a batalha com o último feiticeiro mas desta vez ficou tão ferido que já não consegue recuperar. Sabendo-se a morrer, dá indicações à menina de onde se dirigir. A menina não o quer deixar, mas ele convence-a. Porque é que o Touro Azul morre? Porque enfrentou feiticeiros a mais? Porque demasiadas regras foram quebradas? Porque já não é possível reverter o encantamento? O que o levou a ir enfrentar estes adversários? Tanto na versão aqui transcrita como na que conheço, a história nunca dá resposta. E a que dá não me convence, como explicarei no fim. Mas a verdade é que por amizade ou amor o Touro Azul desiste de si próprio e sacrifica a sua vida pelo futuro da menina.

Foi enfim a princesa suja e com os cabelo em desalinho, oferecer-se por criada ao palácio, dando-se o nome de Maria.
Foi recebida por criada. Daí a dias, pediu o príncipe um pente. Foi a criada levar-lho. Ele atirou fora o pente dizendo:
-“Já não tinham por quem mandar o pente, senão pela Maria Suja!...”

A nossa versão da história era mais bruta. O príncipe não atirava só o pente como atirava também a Maria Suja pela escada abaixo.
Mas temos também outro pormenor mais bizarro. Ao despedir-se, o Touro Azul dá à menina um fato todo de pau, bem como sapatos de pau. (Debaixo da lage encontrarás o que desejares para te vestires.) Quando o príncipe a atira pelas escadas abaixo ela não se aleija devido a este fato protector, mas a queda faz um grande barulho.
De onde terá vindo este pormenor? Não foi de certeza invenção da minha avó. A contaminação (de outro conto?) terá sido anterior. Será que este fato de pau estapafúrdio e todo o episódio de rolar pelas escadas abaixo, e a barulheira, servia como comic relief para distrair e divertir as crianças depois da morte do Touro Azul? Actualmente não acho graça nenhuma. Pelo contrário. Isto do fato e da violência lembra-me algo entre o BDSM consentido e o abuso explícito.

Passado tempo, realizou-se naqueles arredores uma festa. À custa de muitos pedidos, deixaram ir a criada à festa. A criada dirigiu-se à lage e logo, diante dela, surgiu uma carruagem de cobre e juntamente uma vestimenta completa do mesmo metal. Maria dirigiu-se na carruagem às festas, onde deu nas vistas de todos, sem excepção do príncipe, seu amo, que lhe perguntou de onde era.
-“ Da terra dos pentes!” – respondeu-lhe a Maria
De outra vez, mandaram pela mesma criada ao príncipe uma toalha que ele pedira para se limpar. O príncipe recusou a toalha dizendo:
-“ Não quero toalhas da Maria Suja!”
Daí a poucos dias, houve outras festas às quais a criada Maria, seguindo os processos indicados, se apresentou em carruagem de prata e vestida do mesmo metal.
- “ De onde é? – perguntou o príncipe
-“ Da terra das toalhas.” – respondeu a Maria
Numa outra ocasião, o príncipe pediu um copo e foi a Maria levar-lho. Este , muito enojado por ver que quem lhe trazia o copo era a Maria Suja, disse que não o queria.
Dias depois, houve outra festa a que Maria assistiu vestida de ouro, em carruagem do mesmo metal e toda coberta de jóias de grande valor.
O príncipe, com os seus ares mais namorados e respeitosos, perguntou-lhe de onde era.
“Sou da Terra dos copos “– respondeu a Maria e começou a fugir da festa
Desta vez o príncipe não ficou calado nem pasmado. Correu atrás dela e conseguiu apanhar-lhe o sapato que ela tinha deixado cair, levou-o para o palácio, como uma relíquia preciosa.

Da mesma forma, a nossa versão da história não termina com o sapatinho da Gata Borralheira. Esta é uma contaminação mais óbvia. Na nossa versão o príncipe acaba por perceber sozinho que a menina dos copos e das toalhas é a criada do palácio e casa com ela. E acaba assim.

Convocou todas as princesas daqueles arredores, resolvendo casar com aquela a quem o sapato servisse. Entre as diversas princesas apareceu a filha da madrasta de Maria Suja . Ela calçou o sapato e disse que lhe ficava bem, embora a magoasse a ponto de lhe rasgar a pele do pé, deixando-o todo ensanguentado.
Como o sapato lhe servia, foi logo ali marcado o casamento. Sucedeu porém, haver no palácio uma pega, que foi a razão de se descobrir o engano. Com efeito, quando os dois noivos estavam já dentro da igreja, entrou a pega na igreja dizendo: “ – Olha como ela vai toda inchada com o sapato que pertence à Maria Suja!”
Parou imediatamente a cerimónia e o príncipe tratou de se certificar se o que a pega dissera, era verdade. Todos verificaram que o sapato não servia àquela princesa, que agora o calçava. Chamaram a Maria Suja e verificaram que ela o calçava muito bem, pois era dela o sapato. Em visto de tudo isto, o príncipe casou com a Maria Suja, pois que o príncipe era nem mais nem menos que o touro azul.

FIM

Revista A Tradição Setembro 1901(texto adaptado)

Aqui está a parte que não me convence. Como é que este príncipe besta, fútil e arrogante pode ser o Touro Azul que sacrificou a vida por amor e amizade?
Nem vamos tão longe. Como é que um pode ser o outro se nunca nos é dito que o príncipe esteve desaparecido ou ausente do palácio enquanto estava encantado como Touro Azul? Enorme plot hole.
É claro que por artes mágicas tudo é possível. O príncipe pode ter sido "desdobrado" num duplo Touro Azul. E aqui teríamos duas hipóteses:
1, ou o príncipe se lembra da experiência quando o encantamento é quebrado, o que não parece ser o caso porque não reconhece a Maria Suja;
ou,
2, o príncipe não se lembra de nada e foi como se não tivesse acontecido com ele. O que nos leva à estaca zero: de uma forma ou de outra, o príncipe e o Touro Azul não são a mesma pessoa. Este fim foi ali metido à martelada para justificar a morte injustificável do Touro Azul.
Sempre me perguntei se não haveria mais pormenores nesta história que de geração em geração se foram perdendo. O conto lembra-me muito "As Mil e Uma Noites". A origem do Touro Azul (quem é, de onde veio, quem o encantou e porquê, porque tem de morrer) parece um desses contos que continuam de outros anteriores. A minha teoria, baseando-me só no que a história apresenta, é que o Touro Azul era ele próprio um feiticeiro que foi castigado/derrotado pelos outros três. Afinal, ele sabe muito bem onde ir e como se vingar. Mas isto é apenas uma conjectura.

O conto é infeliz. No fim, todos perdem. A madrasta ganha (livra-se da enteada). O Touro Azul morre. E até a menina acaba casada com uma besta de um rapazinho fútil que só repara nela quando está coberta de ouro. Que ela melhora a sua condição social? Talvez melhore. Mas que aceitação tão cínica pressupõe este conto. Os bons não vão longe. O dinheiro, a posição social e as aparências são o que mais conta. O sacrifício altruísta não tem qualquer recompensa. Aposto que no futuro, com aquele marido, a menina foi muito infeliz apesar de coberta de ouro.
Não posso considerar um final feliz nem nada que se pareça. "O Touro Azul" é uma história triste, desencantada, cínica e deprimente. E é se calhar por isso que era uma das minhas histórias preferidas na infância.


6 comentários:

Maria Perguntadeira disse...

A minha avó contava-me uma história do touro azul, mas não era esta. Também tinha duas meninas, uma boazinha e bonita, e outra má e feia, e uma madrasta/mãe. Envolvia uma troca de corpos entre as meninas e a madrasta a maltratar a menina bonita que julgava ser a enteada mas era a sua filha. Mas não me lembro de pormenores, e a minha avó está velha e não consegue recordar-se das histórias que me contava.

A minha história favorita não era a do touro azul, era a do gato e do chouriço. Começava com um gatinho que fugia de casa e, no meio das suas aventuras, encontrava uns lobos a assar um chouriço. Todos os dias pedia à minha avó que ma contasse, e não me importava nada que repetisse.

katrina a gotika disse...

Troca de corpos? Essa versão nunca ouvi.

Também não conheço o gato e o chouriço. Hei-de pesquisar.

Unknown disse...

Na minha infância também me contavam a história do Tourinho Azul e da Maria do Pau, que, em linhas gerais, tem uma trama semelhante às histórias apresentadas. Algumas semelhanças e diferenças: O pai da menina boa não é um rei, é um lavrador rico e também casa com uma mulher que tem uma filha. Mas uma diferença fundamental é que o Tourinho Azul foi deixado em herança pela falecida mãe à menina com a função de a proteger, o que faz com que o sacrifício do tourinho tenha sentido. Nas florestas que os fugitivos atravessam, o touro tem que lutar com 3 animais ferozes e, após a última luta e já bastante ferido, pede à menina que o mate e enterre debaixo de uma laje. Mas antes de morrer dá-lhe uma varinha de condão e diz-lhe que, quando precisar de alguma coisa, bata com a varinha de condão na laje e diga: "Varinha de condão, pelo condão que Deus te deu faz-me isto e aquilo". O primeiro uso que a menina faz da varinha é pedir-lhe um vestido de pau, talvez para precaver de futuros assédios, mais tarde pedir-lhe-á os 3 vestidos que leva ao baile.. Não há qualquer episódio de violência da parte do príncipe. Quando o príncipe vai casar com a irmã feia, um passarinho sai debaixo da pedra do tourinho azul e alerta-o para a meia rota e o calcanhar feito em sangue da noiva. Por conseguinte, nesta narrativa o tourinho azul é a protecção da mãe, que mesmo depois de morta continua a zelar pela segurança e felicidade da filha. A minha história não acaba com o desmascarar da impostora, o príncipe regressa ao palácio mas não sabe quem a dona do sapato, que, segundo o passarinho, está no palácio. Desconfia que é a Maria do Pau e, para confirmar, finge-se doente pede um bolo feito pela menina. Ela (contaminação da pele de burro) mete dentro do bolo um anel riquíssimo e, quando instada a ir à presença do príncipe, enverga um dos maravilhosos vestido. Depois, foram felizes para sempre.

katrina a gotika disse...

É muito giro como as histórias tradicionais eram transmitidas oralmente e transformadas por quem as contava. Obrigada pela sua versão!

Anónimo disse...

Obrigada ao Unknown por contar a versao mais parecida com a que a minha mãe me contava, inclusivamente era a história do tourinho azul, nao do touro azul.
Há 2 ou 3 dias lembrei me desta história e agora resolvi googlar, para ver se era conhecida. Obrigada, boa noite a todos

Anónimo disse...

Conheço a história assim