domingo, 13 de janeiro de 2019

Os três valentões e a velha (Histórias da minha avó)

Ao contrário de “O Touro Azul”, versões desta história já não são tão difíceis de encontrar. Mas aqui vou contá-la como me foi contada na infância, como a reconheço e como gosto dela.
“Os três valentões e a velha”, título que lhe dei, é uma história divertida com um elemento de sobrenatural de meter medo a criancinhas de outros tempos. Hoje em dia já nem as criancinhas têm medo de tão pouco.

-§-


Era uma vez o João Valentão. Antes de ganhar esta alcunha, o João era um menino como os outros. Como a mãe não tinha leite, em pequenino teve de mamar nas tetas de uma burra. Chamavam-lhe o Mama-na-Burra, mas talvez por isso tenha adquirido uma força tão sobre-humana que ao chegar à idade adulta não havia quem a igualasse. Para mostrar como era forte, João Valentão Mama-na-Burra mandou fazer um cacheiro de ferro que erguia no ar como se nada pesasse.
Mas João Mama-na-Burra sentia-se só, o único com essa força que o separava dos seus semelhantes. Na esperança de conhecer alguém igual a ele, decidiu correr mundo.
Depois de muito andar, encontrou um homem igualmente forte, que com uma única cavadela arrasava uma montanha. Chamavam-lhe o Arrasa-Montanhas.
– Tu és forte como eu. – disse-lhe o João Valentão. – Porque não vens correr mundo também e talvez encontremos outros como nós?
O Arrasa-Montanhas concordou e acompanhou o Mama-na-Burra.
Correram e correram mundo até encontrarem outro como eles. Era um homem tão forte que arrancava um pinheiro do solo só com uma mão. Chamavam-lhe o Arranca-Pinheiros. Igualmente interessado em conhecer o mundo, o Arranca-Pinheiros seguiu viagem com eles.
Chegando a uma aldeia, precisaram de um sítio onde pernoitar e perguntaram às gentes da terra onde podiam passar a noite. Falaram-lhes de uma casa abandonada onde podiam ficar à vontade, se tivessem coragem. Porque a casa estava assombrada por uma velha que lá aparecia à noite e ninguém se atrevia a chegar perto. Os três valentões riram-se dos aldeões e instalaram-se na casa abandonada.
Enquanto os outros dois iam à caça, o Arranca-Pinheiros ficou ao fogão a preparar a ceia. Estava ele a fazer sopa no caldeirão quando a velha lhe bateu à porta.
– Ai que frio! Ai que frio! – disse a velha, e aproximou-se do fogão. Mas quando chegou perto do lume, pegou numa mão cheia de cinza e atirou-a para dentro do caldeirão, estragando a comida.
– Ah velha duma figa! – exclamou o Arranca-Pinheiros, e atirou-se a ela para lhe bater.
Mas a velha deu-lhe uma coça tão grande que quando os seus dois amigos chegaram a casa o encontraram todo aleijado, deitado na cama sem se poder mexer. Muito envergonhado, contou-lhes que tinha sido a velha a pô-lo naquele estado.
– E onde está essa velha? – perguntaram os outros. Mas o Arranca-Pinheiros não sabia. Era como se ela se tivesse evaporado no ar.
A noite passou-se, e no dia seguinte ficou o Arrasa-Montanhas ao fogão. Novamente apareceu a velha.
– Ai que frio! Ai que frio!
O Arrasa-Montanhas já estava avisado, mas mesmo assim a velha se chegou ao fogão, pegou numa mão cheia de cinzas e atirou-a para dentro do caldeirão. Também o Arrasa-Montanhas não teve melhor sorte do que o amigo na véspera. Levou uma tareia tão grande que ficou de cama.
– Amanhã fico cá eu. – disse o João Valentão.
E ficou, com o cacheiro de ferro a seu lado enquanto aquecia o caldeirão. Só que desta vez a velha não bateu à porta. Apareceu-lhe já dentro de casa, pendurada da chaminé.
– Ai que eu caio! Ai que eu caio! – disse velha, e caiu-lhe uma perna. – Ai que eu caio! Ai que eu caio! – e caiu-lhe um braço.
O João Mama-na-Burra já estava à espera dos truques da velha e não se deixou intimidar.
– Ó velha, não caias aos bocados! Cai lá toda de uma vez!
A velha assim fez. Caiu da chaminé e pegou na cinza para atirar ao caldeirão. Já lhe conhecendo a manha, o Mama-na-Burra deu-lhe com o cacheiro de tal feição que lhe arrancou uma orelha.
A velha gritou, porque afinal não era assim tão fantasmagórica que nada a aleijasse, e desapareceu tão de repente que o João Valentão não viu para onde ela se escapuliu. Mas como a velha foi deixando pingas de sangue por onde passou, conseguiu seguir-lhe o rasto até um buraco no chão.
Quando chegaram os seus dois amigos, decidiram descer todos pelo buraco a ver onde ia dar. O primeiro foi o Arranca-Pinheiros. O Mama-na-Burra e o Arrasa-Montanhas ficaram a descê-lo com uma corda, só com a força dos braços porque não precisavam de outros apetrechos. Mas quando ia a meio do buraco, o Arranca-Pinheiros foi atacado por numa nuvem de mosquitos. Picavam tanto e tão ferozmente que o Arranca-Pinheiros teve de gritar para o tirarem dali. Assim eles fizeram, e de seguida desceu o Arrasa-Montanhas. Não se deu melhor e também não suportou os mosquitos.
Mas o Mama-na-Burra estava tão furioso com a velha que nada o faria desistir. Por muito que sofresse, não pediria ajuda. E como pensou melhor fez. Padeceu os mosquitos e chegou ao fundo do poço.
No subterrâneo encontrou toda uma série de aposentos, como se alguém ali morasse. Já muito espantado, ainda mais espantado ficou quando lhe apareceram três meninas.
– Viveis aqui? – perguntou-lhes.
– Sim, vivemos. Mas estamos à guarda de uma velha que não nos deixa sair.
Percebendo que as meninas estavam encantadas, o Mama-na-Burra resolveu logo ajudá-las. Uma a uma, mandou-as subir pela corda.
Lá em cima, o Arranca-Pinheiros e o Arrasa-Montanhas ficaram tão embasbacados ao ver surgir as três bonitas meninas que se esqueceram do amigo e foram-se embora com elas.
O Mama-na-Burra esperou e esperou, mas ninguém descia a corda. Ficou por ali, a pensar no que fazer, e começou a explorar o subterrâneo à procura de saída. Mas passou-se tanto tempo que a certa altura teve fome e não encontrava que comer. Lembrou-se então da orelha da velha, que tinha enfiado no bolso. Cheio de repugnância, acabou por decidir que sempre era melhor comer a orelha do que morrer de fome.
Assim que lhe deu uma dentada, apareceu-lhe a velha à frente, implorando:
– Ai não me comas! Faço tudo o que quiseres, mas não me comas!
– Ah é assim, velha d’um raio? Então leva-me já daqui para fora!
A velha tomou-o às cavalitas e subiu com ele pelo buraco acima até à superfície. (Porque a velha, é bem de ver, era o Diabo.)
– Agora leva-me aos meus amigos! – exigiu João Mama-na-Burra.
– Ai, mas não posso, não posso! – desculpou-se a velha.
– Olha que eu como-te a orelha! – ameaçou de novo o Mama-na-Burra.
Num esfregar de olho, a velha amansou e levou-o até aos amigos e às meninas. O Mama-na-Burra estava zangado com eles, mas o tempo tudo fez perdoar.
E assim se acabou o encantamento. Conta-se que cada um dos amigos se casou com uma dessas meninas e viveram felizes para sempre.
Não se sabe onde pára a orelha da velha.

FIM


Análise
Como eu gostaria de saber a origem deste conto. Cheira-me que tal como n’“O Touro Azul” há aqui qualquer coisa de “As Mil e Uma Noites”. A explicação do Diabo foi inserida depois para explicar o elemento de maravilhoso aos ouvintes cristãos. Outras versões que vi ainda carregam mais neste tom de sermão, transformando as meninas em tentadoras que insistem em seduzir os três amigos com maçãzinhas de ouro. (Como Eva.) A mulher é representada como a encarnação do Mal, e quanto mais velha mais sabida e ardilosa. A velha, então, só pode mesmo ser o Diabo.
Gosto mais da "nossa" versão, em que se contava que “a velha era o Diabo” como um piscar de olho, como quem diz “vamos fingir que sim para isto fazer sentido mas não é para levar a sério”.

2 comentários:

CEAO disse...

Muito estranha esta versão com uma velha a substituir o diabo (ou gigante). Esta figura está longe de ser o diabo cristão, é simultaneamente o que tem as princesas cativas e, depois, o ajudante mágico do herói, depois deste ser traído pelos seus companheiros. Também é estranho a este conto o motivo da maçã. Porventura estamos em presença de uma versão - esta sim - com fortes traços cristãos. Uma coisa é certa, esta versão não terá descendência, uma vez que se encontra fora da tradição oral portuguesa. è impossível saber a origem dos contos de tradição oral, mas circula praticamente por todo o globo.

Literature/Variants:
Finnish:Finnish-Swedish: Estonian: Latvian: Arjs/Medne 1977, Nos. 301A, 301B; Lithuanian: Livonian: Lappish: Karelian: Wotian: Syrjanian: Swedish: Norwegian: Danish: Faeroese:Icelandic: Scottish: Irish: Ó English: French: Spanish: Basque: Catalan: Portuguese: Dutch: Frisian: Flemish: Walloon: German: Austrian: Ladinian: Italian: Corsican: Sardinian: Maltese: Hungarian: Czech: Slovakian: Slovene: Serbian: Croatian: Bosnian: Rumanian: Bulgarian: Greek: Sorbian: Polish: Russian: Byelorussian, Ukrainian: Turkish: Jewish: Gypsy: Ossetian: Adygea: Cheremis/Mari: Chuvash: Mordvinian: Armenian: Yakut: Mongolian: Georgian: Syrian: Lebanese: Palestinian: Jordanian, Iraqi, Persian Gulf, Oman, Kuwaiti, Yemenite: Iranian: Afghan: Indian: Sri Lankan: Chinese: Korean: Japanese: English-Canadian: French-Canadian: North American Indian: US-American: French-American: Spanish-American: Mexican: Guatemalan, Costa Rican: Panamanian: Puerto Rican: Mayan: Chilean: Argentine: West Indies: Egyptian: Libyan: Tunisian: Algerian: Moroccan: Sudanese: Namibian: Malagasy

katrina a gotika disse...

Pois, eu não inventei isto. Foi como me contaram a mim.
Saliento que aqui a velha (o diabo) não é uma “ajudante” voluntária. É obrigada a ajudar devido à astúcia do herói. Conheço outras histórias assim em que o diabo é derrotado pela manha do herói e sai a perder. O diabo das histórias populares é um diabo de trazer por casa, fácil de derrotar.
Obrigada pelo comentário e opinião.