quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Gotika: arquivos Março 2004

março 02, 2004

Tragédias

Duas. Ontem, no telejornal da TVI, duas situações, duas tragédias, ambas comentadas com o rigor e a isenção de Manuela Moura Guedes*.

Mas eram de facto tragédias. A primeira, a do “menino azul”. Uma criança de 7 anos tem uma doença cardíaca rara e incurável. A insuficiência de oxigénio no sangue dá-lhe à pele uma cor azulada (assim como ficam as nossas mãos quando está frio). Alimenta-se por um tubo. Leva cerca de 50 injecções por dia. Precisa de mais de 20 medicamentos para se manter vivo. O Estado comparticipa metade dos medicamentos mas não dá um tostão para as pomadas para a pele. A mãe não trabalha, nem pode, com o filho a exigir tantos cuidados. Gasta 1000 euros por mês em medicação. Sem possibilidade de pagar tanto, escreveu a pedir que o Estado pague a totalidade dos medicamentos. Viu o pedido recusado.
Esta criança vai morrer. Disso não há dúvida. Para a mãe, cada dia é mais um dia. E o pior é que a criança, sorridente, alheia ao que se passa com ele, vive intensamente cada dia apesar da pobre qualidade da sua vida. Numa nota de humor negro, imagino dizerem àquela mãe o que o veterinário disse do meu gato: “Ò minha senhora, isto... Isto... Isto não tem cura... Podemos dar injecções mas não tem cura.”, que se pode interpretar como “anda a gastar dinheiro em vão”. Pois foi isso mesmo que o Estado disse àquela mãe.

Pensamentos:
Tirando o facto de que o Estado não devia ser paizinho nem mãezinha de ninguém, mas que a situação dos portugueses é de facto esta e que os pobres, com os seus ordenados e pensões de miséria, não sobrevivem sem o Estado...
- em Portugal, uma criança rica vive mais tempo do que uma criança pobre, em pleno século XXI, na União Europeia.
- a vida de uma criança devia ser mais importante do que a de um gato, mas isso depende do recheio da carteira dos pais.
- a situação vai resolver-se de uma de duas maneiras terceiro-mundistas: ou o Estado arranja à pressa um subsídio para o menino porque o caso apareceu na televisão ou, não sei o que é pior, algum rico vai pagar os medicamentos ao menino com caridade(zinha).
- num país onde se constróem 10 estádios de futebol para entreter os pobres, se calhar os pobres têm culpa e é bem feita.
- os pobres só percebem quando lhes toca a eles (preguiça, falta de pensamento, insensibilidade aos problemas alheios?)
- há administradores de empresas públicas a ganhar 9000 contos por mês e não há dinheiro para mais uns dias de vida de uma criança.
- isto está bonito.
- e não é caso único, vejam o post no Caccaocino sobre as crianças com trissomia 21 (síndrome de Down): “Recentemente, saiu uma lei que obriga a filha da Catarina se quiser receber benefícios fiscais a obter uma nova declaração que prove que a criança é portadora de deficiência de cinco em cinco anos como se a trissomia 21 se curasse!...”
- isto de ter filhos é só para os ricos.


Segunda tragédia. 60 mil licenciados desempregados em Portugal, com testemunhos, a viverem de biscates e trabalho temporário. Nesta estou eu incluída. Nos testemunhos revi-me eu. Por isso também sei do que falo.
Todos tinham tido um empregozinho durante uns tempos após a conclusão da licenciatura, na área para a qual estudaram. Depois ficaram sem ele e nunca mais conseguiram outro. Eu explico porquê. As empresas contratam jovens “estagiários”, não remunerados ou quase, e não querem gente com experiência. Quando o trabalhador começa a exigir um aumento porque já lá trabalha há uns tempos valentes, é posto na rua por dá cá aquela palha. E não volta a ser contratado por outras empresas da área porque todos os anos sai das universidades uma fornada nova de trabalho escravo. Se um estagiário não remunerado não consegue dar conta do recado, metem-se dois. O custo é igual. O resultado é o mesmo.
Enquanto isto estiver assim, a malta com alguma experiência fica na prateleira. A taxa de natalidade tem descido nos últimos anos, hão-de acabar-se os pimpolhos recém-licenciados às catadupas. Talvez aí se consiga arranjar um emprego decente...
Gostei do cinismo com que a reportagem foi conduzida, provavelmente por uma jornalista estagiária a ver a vida a andar para trás, quando uma licenciada em Ciências da Comunicação afirmou ter realizado um estágio não remunerado numa televisão durante três meses e, sublinhou, não na TVI. Como se na TVI não se passasse o mesmo! Aliás, a situação não é mais trazida a público porque os meios de comunicação social vivem da exploração do trabalho escravo e ingénuo. É por isso que ainda há gente a dizer: “Quando cheguei cá fora, ao mercado de trabalho, é que me apercebi da situação”. Antes, não. De outra forma não teriam ido encher o cú aos professores que sustentam a criação de cursos de lápis e caneta (não os de ciências, porque requerem investimento) sem a mínima hipótese de saídas profissionais, para se auto-financiarem antes que os pimpolhos escasseiem ou abram os olhos.
Resta a estes homens e mulheres de 20 e tal, 30 anos, viverem com os pais, sem vida privada, sem independência, sem autonomia, e assim se castra uma geração.

É por estas e outras que eu não tenho dinheiro para mandar o gato fazer quimioterapia. Talvez se curasse. Mas se neste país já é tão difícil salvar uma criança pobre, quanto mais um gato...

E assim, tudo está interligado. É uma grande conspiração cósmica contra a minha pessoa. Imagino o que devo ter feito em vidas passadas para merecer este castigo. Devo ter feito caridade(zinha)...

* Temos de admitir que a senhora é rigorosa e isenta no que toca a fazer subir as audiências.

Publicado por _gotika_ em 08:35 PM | Comentários: (17)


Quem não gosta de um cão?

Gosto de ouvir as patas do cão da vizinha de cima, tec tec tec, tec tec tec, de um lado para o outro, e depois ladra “bú! bú! bú!”.
Faz-me sentir segura enquanto durmo. Faz-me sentir segura sempre.
Quem é que não gosta de um cão? Como diria o vampiro Lestat, um ser que é todo Bondade?
Não é humano não gostar de um cão.*

* Tirando certas fobias, que infelizmente também são humanas.

Publicado por _gotika_ em 08:34 PM | Comentários: (6)


A dor desde os primórdios

Não tenho dúvidas de que foi o facto da morte que deu origem à necessidade da religião. Deve ter acontecido em tempos remotos, pré-históricos, quando o homem se deu conta de que os mortos não voltavam. Por isso pergunto: o que veio primeiro, a expressão de dor ou a superstição? E mais uma vez não tenho dúvidas de que o luto, como dor, já existia antes. Bem antes de o homem ter desenvolvido qualquer tipo de criatividade abstracta. Bem antes de o homem ser ainda homem.
Mais tarde, talvez para afugentar essa dor, o homem apercebeu-se da necessidade de acreditar que o morto não morreu de facto, mas que vivia em espírito. Nesse dia deve ter sido investido o primeiro feiticeiro da tribo. O medo que os vivos têm da morte transferiu-se para o medo do espírito do morto. Era preciso, então, apaziguá-lo, aquietá-lo, espantá-lo, para que fizesse a travessia em sossego e não voltasse atrás pelos vivos.
O espírito do morto tornou-se mais temido do que a morte, mas no fundo o espírito do morto não representava mais do que a própria morte.
À medida que as civilizações se desenvolviam, o processo de espanta-espíritos tornou-se cada vez mais evoluído. Não bastava o feiticeiro da tribo. Toda a família do morto, toda a comunidade, devia chorá-lo. Usar roupas especiais, cobrir-se de cinzas, chorar alto, contratando se necessário carpideiras para o fazer. Era necessário fazer barulho para assustar o espírito do morto - tradição da qual ainda guardamos o sino da igreja a bater lúgubre a finados.
Muitas vezes o luto já não exprime dor, mas apenas superstição. Condicionalismo social. Porque fica mal não vestir preto, porque rir é uma falta de respeito a quem partiu. Definiram-se períodos de tempo para o luto a apresentar socialmente, consoante o grau de parentesco ou proximidade com o defunto. Aos pais, esposa e filhos cabendo os períodos de luto mais alargados. Para sossegar o morto. E para sossegar a comunidade de que o morto não voltaria devido a qualquer afronta da sua família. Chorado convenientemente, o espírito não teria razão para voltar. Era necessário ainda convocar o feiticeiro da tribo, o padre, para completar o ritual ao sétimo dia, não fosse o diabo tecê-las.
Este luto tornou-se obrigatório para todos os falecimentos, os dos mortos amados e não amados. Se não se sentia, era preciso fingi-lo.

A comunidade primitiva, penso eu, deve ter começado o luto pela dor, uma dor que muitas vezes não se sente no luto “institucionalizado”. Quando perder um membro da comunidade, ou uma “cria” em quem se investia muito, era de facto uma perda irreparável para a sobrevivência de toda a tribo.
Mas vai mais longe. Os animais sentem o luto. Por menos tempo, é verdade. Tirando os elefantes. Vi num documentário que nas comunidades de elefantes se passa uma coisa verdadeiramente espantosa. Os elefantes, como é largamente conhecido, vão morrer aos cemitérios de elefantes. Aqui ficam os ossos de gerações e gerações de membros da comunidade. E então, ao passarem por ali, os elefantes vivos param, detêm-se, e iniciam um ritual absolutamente incrível. Remexem, com as trombas, nas ossadas. Passam os ossos de membro em membro da comunidade, dos maiores aos mais pequenos, e ficam naquilo durante algum tempo, a provar aos mais cépticos que o ser humano não está assim tão longe dos seus primórdios quanto isso. Não há razão nenhuma de ordem natural que os leve àquele comportamento ritualístico. Não serve para se alimentarem nem para se reproduzirem. Servirá para reforçar a coesão da manada? Quase diria, da “tribo”, porque não estamos habituados a associar as palavras “ritual” com “manada”. E a coesão social faz parte da ordem civilizacional, e já não natural, das coisas. Os seres humanos necessitavam dessa mesma coesão, desde a pré-história, para resistirem aos predadores mais equipados. Actualmente ainda necessitamos dessa mesma coesão para manter a sociedade em funcionamento. Nós e as formigas. Não é, portanto, uma necessidade puramente humana, mas também já não é puramente natural porque muitos animais de hábitos solitários sobrevivem sem ser em comunidade.

Agora vou contar uma história que é verdadeira, e que se não visse não acreditava. A partir daí percebi que de facto a dor veio primeiro e só depois surgiu uma religião que a apaziguasse.
Fui sair à noite. Antes ainda de chegar à paragem de autocarro, vi uma gata branca morta, atropelada, no passeio. Ao lado dela, um gato preto, naquela posição entre o sentado e o deitado (de esfinge) em que se põem os gatos, como se esperasse que ela acordasse. Isso levou-me a pensar que a gata ainda não estava morta, porque se estivesse, pensava eu, o outro já teria desertado o cadáver.
Aproximei-me. O gato preto rosnou-me, ameaçador. Mas não se afastou da gata branca. Perplexa com o que estava a ver, tentei acalmar o gato e mostrei-lhe que vinha para ajudar. Baixei-me a apalpei o corpo da gata morta. Ainda estava morno. Tinha sido recente. Mas estava morto.
Ao perceber que eu viera ajudar, o gato desatou a miar à minha volta. A pedir. O que pedia ele? Que lhe desse a companheira. E pedia-o com mais aflição do que pediria um prato de comida. Eram sons estranhos e cortantes que o gato emitia.
Peguei na gata morta e fui colocá-la no outro lado do passeio que me pareceu mais seguro para o gato que ainda estava vivo e não fazia tenções de sair dali.
Vendo que não podia fazer nada, fui à minha vida. O gato ficou.
Quando voltei, seriam quase cinco da manhã, fiquei estarrecida por encontrar o gato preto deitado ao lado da gata branca. Ainda estava à espera.
Com pena do gato preto, resolvi tirar dali o cadáver. Peguei na gata branca e dirigi-me a casa para ir buscar um saco de plástico. O gato seguiu-me, e miava. Como se acreditasse que eu tinha o poder de restituir a vida à companheira. Afinal, nós fazemos aparecer comida não se sabe de onde... Somos divinos.
Testei. Coloquei a gata dentro de casa e fechei a porta. Agora é que o gato não se calava. Queria entrar também.
Depois meti o cadáver num saco plástico e fui pô-lo num contentor ao fundo da rua. O gato seguiu-me e ficou lá. Aquilo estava a tornar-se aflitivo.
Não costumo deitar-me logo. Umas horas depois voltei a espreitar, era quase manhã, já raiava o sol cor de rosa da aurora, e lá estava ele, o gato preto, a velar o contentor. Preocupei-me por causa dos carros, porque quando viesse a carrinha do lixo não tenho dúvidas de que o gato iria atrás também... Por isso pedi ajuda para uma manobra de diversão. Enquanto eu encaminhava o gato para o sítio onde o tinha encontrado, ali perto, transportando um saco semelhante mas sem o cadáver, outra pessoa se encarregou de ir pôr o verdadeiro cadáver num outro contentor, mais longe.
Evidentemente, o gato não me largou. Depois da voltinha de engodo, voltei ao caixote do lixo perto de casa, que estava num lugar onde não passavam carros, e deixei lá o falso embrulho. O gato caiu no equívoco. Pensava que era ali que estava o cadáver da “amiga”. E ali ficou. Mas já não em perigo.
Disseram-me que esteve ali o dia inteiro, a velar o caixote. Esperava. Depois, já ao pôr-do-sol, deve ter tido fome e lá se foi embora.
Mais uma vez, se eu não tivesse visto não acreditava.

Publicado por _gotika_ em 04:28 PM | Comentários: (4)


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Comentário:
Saliento o post sobre Portugal, este e os que se seguem. Parecem completamente actuais mas na altura foram recebidos como delirantes. Quem só se indigna agora indigna-se tarde e não pode dizer que não foi avisado.
Mas não queriam acreditar.
Se tivessem acreditado talvez tivessem feito alguma coisa mais cedo. Mas a vida corria bem, não corria? Eram os outros que estavam malucos.

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