fevereiro 29, 2004
Um filme: “Inferno”, de Joaquim Leitão
É um filme de 1999 mas vi ontem pela primeira vez. Com aquele pé atrás que tenho sempre em relação aos filmes portugueses, foi com agrado que percebi, após a primeira meia hora, que de facto a coisa me estava a interessar.
A terapia dos traumatismos da guerra no Ultramar tem sido feita no cinema português, muito à semelhança do que se passa no cinema americano em relação à guerra do Vietname. (Também é verdade que os realizadores têm todos a mania de filmar uma guerra. É uma espécie de “escrever um livro, plantar uma árvore e ter um filho” na versão cinematográfica. Cada um aproveita as guerras que tem.)
O filme foca uma realidade absolutamente real, coisa rara no cinema português. É verdade que no final perde as estribeiras, mas lá iremos.
Alguns homens, ex-combatentes, reúnem-se ocasionalmente na casa de um deles, no Alentejo. A linguagem, as personalidades, as vidas, é que é mesmo assim. Real. Sem tirar nem pôr. Homens a beber, a conduzir à maluca nas estradas portuguesas, ainda por cima a falar ao telemóvel. Depois ainda se admiram...
Homens que sofrem, traumatizados com uma guerra de que ninguém fala, com um sofrimento que se cala neste país. Também é verdade que eles próprios são os primeiros a contribuir para esse silêncio, aliás, como se expressa no filme e muito bem. Todas as recordações dos momentos mais dramáticos são interrompidas com um “foda-se, não nos queremos lembrar disso!” São homens de barba rija, homens que não choram, homens que se metem nos copos e fumam charros e andam à porrada para purgarem a violência que os consome.
Confesso que me ri durante a parte da casa do Alentejo, com as piadas deles, e que aquilo me fez lembrar algumas das minhas noites mais malucas com malta da minha idade que não foi a guerra nenhuma mas que já está tão amarga e desejosa de esquecer como aqueles homens. Curioso, não? Alguma coisa neste país andou a matar os jovens nos últimos anos. Por dentro. E não tenho a certeza mas suspeito muito que somos a verdadeira geração “no future” de Portugal, com uns aninhos de atraso em relação à Inglaterra. Mas adiante, que isto são outras guerras.
A interpretação de Nicolau Breyner e outros actores que estamos habituados a ver nos “Malucos do Riso” é absolutamente brilhante. Marlon Brando não faria melhor, até porque Marlon Brando jamais saberia interpretar um português. Júlio César é um drogado maluco fantástico. Joaquim de Almeida teima em falar para dentro - mas a isso já estamos habituados.
Adorei a cena em que os dois bêbedos dançam “Smoke on the Water” dos Deep Purple, num bar de alterne espanhol, fazendo uma triste figura mas completamente nas tintas porque se estavam a divertir. Também já passei por isso. Mas aquilo era mesmo pessoal da pesada, e bem pesados os dois.
Adorei a Ana Bustorff com a maquilhagem borrada, à “Corvo”. Não esperava encontrar ali um toque gótico. Não numa feira de Verão do Alentejo. (Ele surge onde não se espera.)
Gostei da linguagem e do realismo. Por isso não gostei, quando por causa de um conflito com traficantes espanhóis, o filme se transforma numa cóboiada à americana, com metralhadoras e tudo, algures entre Beja e Badajoz. Pronto, delirámos! Tínhamos de estragar, não era?... Estava a ir tão bem... Quando é que se convencem que em Portugal não há Rambos nem Norris?... Ainda se fosse na Cova da Moura, seria convincente... Os despistes de automóvel, por exemplo, são completamente convincentes! E não é preciso explicar porquê, pois não? Aquilo é o pão nosso de cada dia. Agora o aparato militar, a negociação de reféns, um padrinho mafioso à espanhola... Mafioso à espanhola?! Isto diz tudo. Enganaram-se no país. A Sicília é mais ao lado, mais um bocadinho.
Conclusão final, os portugueses ainda não aprenderam a fazer um filme completo, com princípio, meio e fim. E é pena, porque estava a ir tão bem...
Publicado por _gotika_ em 08:03 PM | Comentários: (1)
1 comentário:
Recentemente descobri que "na outra vida" entrevistei Joaquim Leitão acerca deste mesmo filme! Tinha-me esquecido completamente!
A conversa não deixou qualquer lembrança.
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