sábado, 7 de maio de 2005

O olho do furacão

Ontem reencontrei a criança responsável que eu costumava ser, aquela que não chorava durante uma crise quando todo o mundo desabava à sua volta. A criança sem uma lágrima, o rochedo, a criança que tomava conta de si própria para não preocupar os adultos. A criança que não chorou no primeiro dia de aulas e que tentou animar os meninos que choravam que nem cordeiros na matança. A criança que não chorou no funeral do pai porque toda a gente estava a chorar e ninguém suportava vê-la a chorar também.
A criança sem lágrimas e sem sorrisos. A torre de força.

Senti a tua falta, onde tens andado? Sim, eu sei que a vida não te tem tratado com justiça mas lembra-te de quem tu eras no princípio, antes de dizerem que não eras capaz, antes de os outros te infectarem. Antes do tempo em que não pensavas, em que somente eras. Eu sei que precisas de chorar sozinha. Eu sei que os outros sempre te consideraram muito mais forte do que realmente és e que ficaram decepcionados quando perceberam que tu também precisas de tempo para chorar, e muito justamente.
Mas tu brilhas durante as crises. Tu guardas as lágrimas para tempos menos difíceis. Tu não choras quando vês os outros chorar. É por isso que podes chorar numa festa e ninguém perceber, mas tu choras sempre sozinha.
Não acabou, sabes? Estou tão contente por ver que estás viva! Pensei que tinhas desaparecido para sempre. Tinhas assim tanto medo que os outros dependessem tanto da tua força aparente que os arrastasses contigo para a destruição? Querias assim tanto ser tão responsável por eles que os obrigaste a não contar contigo? Sempre a tomar conta dos outros, mesmo quando parece o contrário. Onde é que foste buscar isso? Tu nem sequer tinhas irmãos mais novos para proteger. Estavas a proteger os crescidos. Meu Deus, estavas a proteger quem devia ter-te protegido. Porque nunca precisaste mesmo de protecção, não foi? Onde foste buscar isso?
E aí estás tu, a escrever o teu diário, a dizer a toda a gente que está tudo bem. Olha o que fizeste. Agora estou eu a chorar. Mas agora não. Mais tarde. Depois da tempestade.
Não te vás embora ainda. O mundo está a desabar. Toma conta disto por mim.



O que disseste ontem foi um momento de clareza na escuridão, o olho do furacão. E olhaste para cima e viste uma rodela de céu azul no meio do cinzento da tempestade. É normal. Mas passa.
Como é que eu poderia morrer completamente se eu sou o que tu eras antes de seres tudo o que és? Eu sou o instinto. Eu sou um animal selvagem. Eu não sei nada do que tu sabes. Eu nem sei porque não choro. Eu não percebo o que se passa à minha volta, mas tu sabes.


Eu sei demais. Eu estou infectada. Tu és pureza intacta. Inata. Sublime. E existes. O que é mais importante, existes.

Ninguém me dá valor. Eu não consigo comunicar com ninguém. Eu estou sozinha. Tu és a ponte. A ponte que permite a comunicação também permite a infecção. Eu sou os anticorpos. Os últimos. Tu deixaste que as palavras chegassem a ti. Foi um erro.

Uma inevitabilidade da aprendizagem. Uma mímica.

Cala-te. Deixaste que as palavras chegassem a ti. Começaste a pensar se os outros não teriam razão. A culpa é toda tua. Não percebeste que isto é uma guerra em que só interessa ficar vivo até ao fim. És uma ameaça. Porque eu sou uma ameaça. Porque nunca me conseguiram explicar. A ti só cabia inventar uma fachada social para mim.

Consegui.

Sim. Conseguiste. Conseguiste muita coisa. Mas a tua força é a minha. Até tu te esqueceste de mim.

Nunca me esqueci. Estiveste escondida debaixo da cama enquanto eu andava a "brincar às pessoas". Estou muito contente por te ver aqui. Lembras-te do fogo? Lembras-te como ficaste admirada porque foste a única pessoa que não ficou estarrecida e correu a buscar um extintor? Lembras-te que ninguém te agradeceu? Eu lembro.
E sim, tens razão, a ponte vai desaparecer no nevoeiro como Avalon entre as brumas.

Eu não sabia.

O quê?

Que os outros faziam isso às pessoas. Aprendi isso contigo. E assustei-me. As pessoas assustaram-me. Tive de me esconder.


Não digas disparates. Tu é que me criaste. Tu sabes que, no fundo, eu é que não existo. Eu sou a tua invenção.
Querida, estou cansada de chorar e a noite não vai ser menos escura do que o dia. Está na hora dos actos extraordinários e fora de série. Só os mais fortes vão sobreviver.

Sabes qual é o teu mal?

Qual?

Pensas demais na sobrevivência. Pensas demais.

Eu encontrei as respostas para ti. E no download vieram vírus de todo o tipo.

Então, temos de formatar o disco e mudar de sistema operativo.

Não é isso que estás aqui a fazer? Eu sou apenas um programa que não tarda a ser apagado.

Graças a Deus. Mas há partes aproveitáveis. E, confessa, pediste para ser apagada. Vamos inventar-te uma nova personalidade. Mas agora preciso de tempo. Estou ocupada. Vai dormir.


Gostei de brincar às pessoas. Temos de fazer isso mais vezes. Quando houver tempo. Isto é apenas o olho do furacão. Um momento de clareza no cinzento da ventania. E este programa deixou de ser operacional. ALT+CTR+DEL. Restart. Vamos reinventar esta merda toda. No time to cry.

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