domingo, 7 de fevereiro de 2021

The Man in the High Castle (2015–2019)


[contém spoilers]

E se os Nazis tivessem ganhado a guerra? É esta a premissa da série, adaptação do livro homónimo de Philip K. Dick, publicado em 1962. Mas a adaptação vai para além do livro e vale muito a pena.
Esta é uma daquelas séries que até se viam só pelos cenários. A América ocupada pelos dois invasores vitoriosos, a Alemanha Nazi e o Império Japonês, e todas as alterações que isso provoca no quotidiano, na arquitectura, na cultura, nas pessoas. É um mundo que nós reconhecemos mas que ao mesmo tempo nos arrepia, como ao vermos a suástica em tudo e alguma coisa, desde os alfinetes de lapela aos candeeiros de sala.
Muito deste world building começa logo no genérico, por si só uma obra prima. O genérico explica-nos como é que a guerra foi ganha pelo lado errado e de que forma a América está dividida entre alemães e japoneses. Faz muita impressão vermos a águia Nazi sobreposta na águia americana derrotada. 

A Estátua da Liberdade a assistir ao filme da bomba atómica a deflagrar é uma imagem igualmente poderosa. Por falar em Estátua da Liberdade, desde “O Planeta dos Macacos” que não há um filme ambicioso de ficção científica em que esta não seja derrubada estrondosamente. Aqui isto acontece (lá para as últimas temporadas) e é tão bom como promete.
Mas “The Man in the High Castle” é principalmente História Alternativa. Pessoalmente, não me importava nada que não tivesse ficção científica. Um mundo em que os Nazis ganharam e em que a Resistência tem de os combater já é suficientemente interessante. Mas parece que o aspecto dos universos paralelos vem mesmo do livro (não li e não é o meu género) e tiveram de lidar com eles. Na minha opinião podiam ter feito melhor, especialmente o fim (que, admito já, não percebi). Mas também não vi a série por causa dos universos alternativos, mas pelo desafio politico-sociológico que nos apresenta.

Afinal, quem é o Man in the High Castle?
É melhor pensar nesta história como um longo filme (e com episódios igualmente longos, por falar nisso, daqueles de 60 minutos). Não consegui chegar a uma conclusão quanto ao seu significado antes de ver mesmo tudo. É claro que isto se pode aplicar a qualquer série, mas eu diria que se aplica mais nesta. Só quando conhecemos a totalidade das escolhas que os personagens foram fazendo ao longo das quatro temporadas é que percebemos completamente o que a história nos quis dizer. Confesso que fiquei agarrada do princípio ao fim, sempre a torcer para que alguns “maus” se redimissem.
Alguns críticos de TV reagiram muito incomodados quando perceberam que as personagens principais não são as mais importantes. É que não são mesmo. Juliana, Joe, Frank, são estereótipos. Juliana é a jovem que viu a irmã ser assassinada à sua frente pela kompetai (a polícia política japonesa que aterroriza Los Angeles, e que me lembrou muito a PIDE) e que se envolveu na Resistência quase sem querer depois de ver um dos filmes misteriosos em que os Aliados ganham a guerra. Daqui para a frente, Juliana é uma “figura de acção”, que faz o que tem de fazer porque a série precisa de uma protagonista que o faça. Joe é o agente Nazi com dúvidas, que pode ou não mudar de lado por amor ao conhecer Juliana. Frank é o namorado de Juliana, um judeu que só quer passar despercebido (e tem razão para isso) até que a kompetai lhe gaseia a irmã e os dois sobrinhos só para o obrigar a falar das actividades de Juliana na Resistência. A partir daqui, Frank tem poucas alternativas senão envolver-se na Resistência também.
A história não é sobre eles. Eles são os eixos em que o enredo se apoia para nos revelar as personagens interessantes: o terrível inspector Kido, do lado japonês, e o implacável Obergruppenführer John Smith, americano que chegou às mais altas patentes do regime Nazi.
Comecemos por Kido. E aproveito aqui para dizer que a série só se torna realmente boa a partir do sexto episódio (opinião que tenho encontrado como unânime). Os cinco primeiros episódios não fazem muito sentido nem são muito bons. Os diálogos são péssimos. Por exemplo, temos o inspector Kido, depois de assassinar uma mulher e duas crianças, a dizer a Frank: “Eu não sou um monstro”. Pior um pouco, temos Frank (o irmão da mulher assassinada) a responder: “Agora, quando quiser matar um judeu, já sabe onde eu moro”. A resposta devia ter sido: “Meu caro senhor, se está assim tão aborrecido por eu o deixar ir para casa, não se incomode. A gente mata-o já também.” Kido não podia matá-lo logo no primeiro episódio porque a série precisava de Frank, mas os diálogos não precisavam de ser tão maus.
Então, Kido é um monstro? Da perspectiva da cultura ocidental, sim. Da perspectiva japonesa, Kido é um homem de honra, um samurai patriota dos tempos modernos que estava efectivamente disposto a enfiar uma espada na barriga se o Império sofresse qualquer revés por sua culpa. Gostei principalmente do fim que ele teve, um fim desonroso que para Kido é infinitamente pior do que a morte. Fins assim dão gozo.
E depois temos o vira-casaca John Smith, oficial do exército norte-americano que se vendeu aos Nazis quando eles ganharam. Ou, pelo menos, é o que parece. À medida que as temporadas se desenrolam percebemos que Smith não é nem nunca foi um Nazi, que começou por fingir que o era por necessidade e que para mal dos seus pecados se deu tão bem a fingir que chegou ao topo da hierarquia. Se Smith tem um defeito, é a ambição brutal que o cega. Mas Smith tem um calcanhar de Aquiles: o amor à família. Se houver redenção, é por aí. Mas haverá, ou John Smith já foi longe demais para mudar aquilo em que se tornou? Esta é a história mais interessante em “The Man in the High Castle”. Eu diria mesmo que este tal Homem do Castelo é John Smith.

Um niquinho abaixo do sublime
Haveria muito para comentar na riqueza destas quatro temporadas, mas prefiro voltar a instar que o espectador não se deixe desencorajar pelos primeiros cinco episódios. São de facto mauzinhos. Por exemplo, a princípio Juliana é incumbida de levar o filme ao agente da Resistência conhecido por The Man in the High Castle (daí o título aparente) para que este não chegue a Hitler, que quer deitar as mãos a todos estes filmes misteriosos que andam a aparecer e que considera uma ameaça ao regime. Mas depois é-nos dito que quem distribui os filmes é mesmo este Man in the High Castle. Um personagem da Resistência chega mesmo a verbalizar: “Porque é que íamos mandar um filme ao Man in the High Castle se os filmes vêm dele?” E a gente fica: OK, agora é que não percebi nada. Esta grande confusão dos cinco primeiros episódios explica-se assim: a Amazon mandou fazer a série e estava a ver se tinha audiências. Como teve audiências, decidiu continuar, mas a história foi alterada. Por isso é que os episódios iniciais parecem cartas fora do baralho. Espectadores potenciais, ignorem-nos. Vejam-nos só para perceberem o universo da série, na certeza de que o que vem a seguir vale a pena sofrê-los.
“The Man in the High Castle” é uma grande série, que só não é ainda melhor porque preferiu reduzir os protagonistas a pouco mais do que figuras de acção. Não posso deixar de pensar no festim que Vince Gilligan (“Breaking Bad”, “Better Call Saul”) faria com estas mesmas personagens. Mas não se pode ter tudo.
Recomendo vivamente e vou ver de novo. Aproveito para advertir que há cenas muito pesadas e de grande brutalidade (a execução dos judeus, por exemplo, mas há outras) que só devem ser vistas com a necessária preparação psicológica.


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