domingo, 3 de setembro de 2023

Dark (2017 – 2020)


[Contém spoilers!!!]

Tal como “The X-Files” e “ Lost” (e não vou colocar aqui “Twin Peaks” e “The Walking Dead” porque são inteiramente outro género), “Dark” é daquelas séries de mistério/ficção científica que só aparecem uma vez por década, se tanto. Desta forma, e sem esquecer os títulos mencionados, “Dark” é das melhores séries que já vi na vida. Paralelismos com “Stranger Things” também têm sido apontados, mais para promover “Dark” do que outra coisa. “Stranger Things” é uma matinée para miúdos; “Dark” é um filme para adultos para se ver depois da meia-noite.
Não existe tradução portuguesa para este “dark”, e se calhar também não existe em alemão, língua falada na série. Não é apenas “escuridão” ou “sombrio”, é um conjunto a que chamaríamos pesado, pessimista, desesperado, trágico, negro, ou mesmo malévolo em certos contextos. Esta série não é para amantes de finais felizes. Aqui as personagens morrem mesmo e para sempre e nós sofremos por elas. Eu chorei no último episódio.
Fazer a crítica a uma série com este nível de mistério é muito complicado. Tudo são spoilers. Mas fica a sinopse: após o desaparecimento de um adolescente, na pequena cidade de Winden aparece o corpo mutilado de um miúdo mais novo em circunstâncias muito estranhas. De seguida, desaparece outro miúdo, o filho de um polícia.
A princípio “Dark” parece um policial e é assim que nos prende a uma “história normal”. A partir do meio da primeira temporada já levantou voo para outros níveis que nem nos passavam pela cabeça e que incluem viagens no tempo, realidades e linhas temporais alternativas, wormholes, campos de Higgs, a Partícula de Deus, e mundos pós-apocalípticos. Acontece que têm desaparecido pessoas na cidade de Winden desde há mais de 100 anos sem que os desaparecimentos tenham sido notados, talvez por se tratarem de adultos que podiam simplesmente ter-se ido embora.
O enredo principal é sólido e consegue desenvencilhar-se sem plot holes, o que é difícil nestes casos. “Dark” é uma série verdadeiramente épica que começa como um drama policial e acaba num paradoxo existencial e apocalíptico antes que nos dêmos conta.
A nível de sinopse fico-me por aqui, mas não sem um alerta: esta série não é para espectadores preguiçosos, e nem sequer me refiro à ciência da coisa (que, estranhamente, acompanhei muito bem embora nunca tenha estudado estes conceitos). A parte realmente difícil prende-se com reconhecer os personagens. Acompanhamos algumas famílias durante várias gerações desde o século XIX a 2053! Cada personagem é interpretada por um actor diferente na infância, na idade adulta e na idade madura. Para compreender a totalidade do enredo é essencial decorar os nomes das personagens, o que é um desafio e peras! A minha estratégia foi ver a primeira temporada duas vezes e fazer um esforço para os fixar. Façam isso. Tomem notas, qualquer coisa. É mesmo necessário. Sim, parece complicado, é um desafio, mas quanto maior o desafio mais saborosa a recompensa.
Último aviso antes dos spoilers: quem quiser ver “Dark”, a melhor série da última década que quase passava ignorada na torrente de produção americana, faça o favor de parar de ler aqui e voltar depois. Não aviso novamente.

[SPOILERS!!!]

Não sem defeitos
“Dark” é uma grande série, mas tem defeitos. Se fosse um filme dava-lhe 18 em 20 porque não poderia dar o máximo. O enredo principal aguenta-se, mas ficaram muitas pontas soltas e situações mal explicadas, como, por exemplo, quando é que a máquina do tempo passa de um personagem para outro. Vi esta série quatro vezes, quatro! Alguns destes pormenores consegui deslindar sozinha. Alguns, e isso é que é trágico, só estão explicados na internet, no site oficial ou por comentários de fãs. Os comentários/teorias dos fãs não me preocupam, o que me irrita é só ficarmos a saber quem é o pai de certa personagem, por exemplo, se formos ao site. Não é assim que a narrativa televisiva/cinematográfica deve funcionar. Um filme ou série deve conter em si todos os elementos (ou pelo menos pistas) para nos dizer tudo o que temos de saber. Era mesmo necessário conhecer quem era o pai desta pessoa? Não, mas isto explicou muita coisa secundária que até aí não estava a fazer sentido para mim. A série tem três temporadas com episódios de uma hora. As duas últimas temporadas têm apenas 8 episódios cada. Talvez não fosse má ideia fazer antes 10 episódios de 40 minutos em que coubessem estas explicações que só existem na internet. (E já agora cortando as canções pop/triste que ninguém devia ter de aturar.)
Outras queixas. Não percebo porque é que o pai de Jonas teve de morrer. Isto não é um spoiler, é a primeira cena da série. Nessa altura ele ainda nem sabia que a mulher andava a dormir com o polícia. (Também não é um spoiler, é a segunda cena.) Não teria feito a mais pequena diferença se o pai de Jonas tivesse simplesmente decidido ir-se embora e deixar tudo para trás, já que, sabendo ou não do affair, aquele casamento estava mais morto do que um cão atropelado há três dias à beira da estrada. Bastava que deixasse uma carta diferente ao filho: “Olá filho, estou farto. Mudei-me para Berlim. Vou pedir o divórcio à tua mãe. Depois mando-te a morada. Um abraço do Papá.” Jonas podia à mesma ter andado a vasculhar a oficina do pai à procura de compreender o divórcio e podia à mesma ter encontrado o mapa das grutas, e tudo seria igual porque afinal ele não descobriu a passagem à procura do pai (que estava morto) mas de Mikkel, o último miúdo a desaparecer (e a quem Jonas foi o último a ver, note-se!). Mas isto não teria o efeito dramático de um gajo a enforcar-se, pois não? Vamos lá enforcar o pai de Jonas para as audiências.
Aliás, ao contrário de muitas outras séries sobre viagens no tempo, algumas personagens vão ao passado na tentativa de mudar as coisas e não alteram nada de relevante para o futuro ou apenas acrescentam um mero apontamento de rodapé. Terá sido uma manobra inteligente para dar que fazer aos actores que de outra maneira não teriam ocupação depois da primeira temporada?

Demasiado off screen
Sei que muito do que estou a dizer não vai ser percebido por quem não viu a série, mas não quero mesmo avançar spoilers e estragar o prazer de descobrir o mistério. Direi que “Dark” é também uma história de amor impossível e trágico. Direi mesmo que todos os personagens, incluindo e especialmente os vilões, agem por amor. Quando percebemos isto temos de compreendê-los, embora não possamos concordar com os seus métodos.
Para além das inúmeras gerações que temos de decorar, “Dark” é complicado a outros níveis. Por exemplo, muitas cenas são-nos mostradas fora de ordem temporal, o que nos exige que as reconstruamos mentalmente. Para complicar ainda mais, a certa altura alguns dos protagonistas mais velhos mentem aos seus Eus-Mais-Jovens para os manipular a fazer o que eles querem. Por exemplo, dizem-lhes que se fizerem X acontecerá Y, mas não acontece. O personagem fica confuso e frustrado. Nós ainda ficamos mais. Tal como os personagens, também nós temos de descobrir em quem confiar (o que me lembra muito de “Lost”). Nem sequer estou a falar de Noah, um dos “jogadores” mais importantes, porque tudo o que sai da boca dele é mentira e fácil de perceber que é mentira. Noah envolve as suas confabulações num discurso religioso que era importante no tempo dele (Deus, o Paraíso, o sacrifício, a salvação, etc) e que não tem nada a ver com aquilo que vemos que ele faz. Mas se eu vos disser que Noah acredita mesmo no que diz? Isto torna-o tridimensional, o que não podemos dizer do vilão principal.
Aqui está a minha maior queixa. O vilão final. Nunca percebemos como é que o personagem mais novo se torna naquele monstro. A transformação acontece off screen, o que nunca é bom. Não vi UMA ÚNICA MOTIVAÇÃO que o tivesse feito dar uma volta de 180º daquela maneira. Aproveito também para me queixar da personagem que aparece com a solução no último episódio. Novamente é tudo descoberto off screen. Sim, temos alguns flashbacks, pouquíssimos, e temos de acreditar no que foi descoberto sem termos o prazer de descobrir também (ou de nos serem dadas pistas para chegarmos lá). Lembrou-me aqueles livros da Agatha Christie em que o detective diz: “Ah,mas eu sei que foi Monsieur X quem matou Madame Y, porque o vi esfaqueá-la repetidamente”. Isto é sempre má escrita, não há volta a dar-lhe. “Dark” merecia melhor. Novamente retorno à ideia de 10 episódios mais curtos. Já agora também não percebi porque é que Regina tinha de morrer. Não de cancro, da outra coisa. A mulher devia ter um ou dois meses de vida, se não semanas ou dias, era mesmo necessário? Penso que é outro caso como o pai de Jonas. Efeito de choque para a audiência.
Já agora, uma outra queixa minha e de muitos fãs: porque raio é que Noah teve de fazer aquelas experiências se ele sabia muito bem como viajar no tempo, de várias maneiras e para a frente e para trás? Não digo que não haja explicação. Tenho a certeza de que há, mas não a vimos. Neste caso era importantíssimo que víssemos e percebêssemos, ou lá se vai a primeira temporada toda.
Mas não se deixem enganar pelas minhas queixas de quem viu a série quatro vezes e analisou isto tudo. “Dark” nem nos dá tempo para pensar nestes pormenores secundários tal é a voragem da velocidade que move a acção.
Direi, finalmente, que as viagens no tempo resultam em famílias sem começo nem fim. Por exemplo, a mãe de uma filha descobre que é filha da sua própria filha, o que a torna avó de si mesma. Isto foi a coisa mais doentia e perturbadora que já vi na vida, e já vi muita coisa doentia e perturbadora.
Como a própria série faz questão de explicar, o enredo baseia-se na simetria passado/presente/futuro/mundo paralelo/linha temporal alternativa. Ninguém diria, ao ver os créditos de abertura da primeira temporada, que é ali que está a origem, mas sei que ninguém me vai perceber se não vir o último episódio.
Por último, deixem-me falar de H.G. Tanhaus e do gato de Schrödinger. Schrödinger é um sádico e nunca percebi aquela experiência intelectual. (Se calhar nunca a encontrei no contexto certo. Era muito mais giro meter o próprio Schrödinger dentro da caixa e teorizar se está morto ou vivo. Era melhor até não voltar a tirá-lo de lá nunca mais, para termos mesmo a certeza de que está morto, morto, morto. Nenhuma verificação necessária.) Mas, enfim, H.G. Tanhaus é um professor, parece-me (não são teorias que qualquer pessoa consiga compreender), que tem um programa de televisão sobre Física Quântica onde expõe a ideia de Schrödinger. “Dark” explicou melhor as linhas temporais alternativas do que Schrödinger alguma vez fez. A certa altura um personagem adulto diz não se lembrar do mundo paralelo porque nunca lá foi quando era novo. E de facto não foi. O que aconteceu foi que enquanto ele estava preso no passado o seu Eu-Futuro viveu e experimentou coisas que o Eu-Passado não experimentou, logo, não pode lembrar. O tempo bifurcou-se. O que era um único homem são agora dois, cada um com experiências e memórias diferentes em linhas temporais separadas.
“Dark” foi feito para nos pôr os neurónios todos a funcionar, até alguns que nem sabíamos que tínhamos. É para ver com urgência e contar aos amigos.


ESTA SÉRIE MERECE SER VISTA: 1+(2+3)+1 (ou as vezes necessárias)

PARA QUEM GOSTA DE: Twin Peaks, The X-Files, Lost, Stranger Things, viagens no tempo, wormholes, realidades paralelas, linhas temporais alternativas


Sem comentários: