18 de Dezembro de 2003
Under reconstruction
Nunca pensei que um diário online, pessoal e intimista, tivesse algum interesse para os outros. Sempre pensei que fosse a curiosidade, e não o interesse, que levava as pessoas a ler sobre a vida dos outros. Com certeza que também existe a curiosidade mórbida mas existe igualmente a escolha dos diários que lemos, os diários das pessoas que nos interessam.
Pergunto-me o que quero escrever aqui, e para quem. Não sei se escrevo para os amigos. Nem tenho a certeza se quero que os amigos saibam. Afinal, aqueles que merecem já sabem. Os outros, nao importa.
Ultimamente tenho sentido uma grande necessidade de solidão. Ao contrário de muitas pessoas, para mim é difícil estar sozinha. São muitas as solicitações. Parece que sou uma companhia agradável e tenho sempre assunto de conversa. Multiplicam-se os amigos e os conhecimentos. Torna-se difícil passar umas semanas sem os ver. Já para não falar nos amigos online. A única forma de os evitar é não abrir a caixa de correio.
Solidão, esse bicho temido, é aquilo que mais preciso. Sou um ser under reconstruction.
Veremos o que sai da metamorfose.
E acrescentei:
20 de Dezembro de 2003
Prazer da solidão
O que eu gosto mais nos weblogs é a possibilidade de falar sem que alguém responda. Ao contrário de trocar mails, conversar com os amigos ou participar em fórums, no blog podemos expressar a nossa opinião sem entrar em diálogo. Sabemos que eventualmente alguém vai ler. Eventualmente alguém vai comentar. Mas não é um diálogo. É também por isso que gosto de ler os blogs dos outros. É como ler um bom livro. Nem sempre te apetece conversar com o escritor.
E ainda mais:
20 de Dezembro de 2003
"No-people mood"
Foi como lhe chamou uma amiga de outras paragens.
O que me apetecia mesmo era isolar-me, ir para o alto de uma montanha onde não pudesse comunicar com absolutamente ninguém. Só eu, os meus animais, uma televisão, alguns livros, e de preferência muitas garrafas de vodka. Ou de vinho. Não importa.
Poderia passar as noites a ver televisão, ou a ler, podia apanhar grandes bebedeiras e ninguém tinha nada a ver com isso, podia dar-me ao luxo de não tomar banho durante uma semana, podia até dar-me ao luxo de ouvir música em altos berros. À minha volta só bicharada, pássaros incomodados e curiosos, ervas, árvores, pedras.
O que eu sinto é exactamente o contrário da solidão mas é curioso que não haja uma palavra para descrever este estado de ter companhia a mais.
Sempre foi a mesma coisa, não foi?
Continua a não haver uma palavra para "companhia a mais".
Notei que as palavras parecem-me agora as de uma adolescente. Já sabia que tinha mudado muito mas não esperava ver tão nítida reflexão dessa mudança.
9 de Janeiro de 2004
Nós podemos ser aquilo que quisermos
(...) Ultimamente tenho sido o Louco do Tarot, esfarrapado e inconsciente, irresponsável, vagabundo. Nem preciso de ler as cartas para saber isso. É tão óbvio!
Tal como o Louco, não faço a mínima ideia de para onde vou nem para onde quero ir. O que eu queria não consegui e tudo indica que não conseguirei, de modo que qualquer caminho é caminho. Por isso citava outro dia o poema, “só sei que não vou por aí”. Parece-me só ter a certeza dos caminhos que não quero e por onde não vou de maneira nenhuma. Tudo o resto, em linguagem letrada, tornou-se tremendamente cagativo. (...)
Isto foi o princípio de alguma coisa.
Estou também surpreendida com a importância que eu dava às questões sociais, quando comecei a escrever o blog. As relações interpessoais, a SIDA, a ignorância, a auto-ajuda. Acho que a certa altura passei para a política e me desinteressei por isso tudo. Terá a ver com a idade?
14 de Janeiro de 2004
O nevoeiro
(...) No que estive a pensar para ficar tão deprimida? Talvez neste estudo que analisei. Nos sem abrigo que vi a dormir na rua quando vinha para casa. Que pensei em aproveitar o meu desemprego para me juntar a esses voluntários que distribuem comida pela noite de Lisboa. Mas que não, não pode ser, porque esses voluntários são todos muito "bem" e me não iam gostar de me ter lá no meio. Que afinal são pessoas. Que é por isso que não gosto de pessoas. No que li nos outros blogs sobre o estado do país. No estado do país. Que tenho pensado que devia ter emigrado mas no fundo eu sei que não, que ia ser tão feliz lá fora como aqui. Que não valeu de nada ter tirado o curso. Que devia ter ido para cabeleireira. Mas que não, que eu sei que não ficava satisfeita. Que pelo menos tentei. Que a culpa é minha. Que a culpa NÃO é só minha. Que tive azar na altura, no tempo em que nasci. Que tive uma porra de azar em tudo. Que ter azar é mais deprimente do que ter culpa. Que ter azar não se percebe, não se racionaliza. Que tive azar em nascer inteligente. Que só tenho a ganhar em queimar neurónios. E que ainda não queimei bastantes.
E que às vezes finjo que não me preocupo para não explodir. Mas que lá por dentro a máquina trabalha e pergunta "e agora?", e não encontra resposta. O coração acelera, a ansiedade é um sinal de alerta e de mau estar e de repente acordo e estou deprimida. Não, não é "por nada". É por coisas. Coisas em que não vale a pena pensar mas que me se pensam sozinhas quando me apanham distraída. Coisas que por si só merecem um comprimido ou um copo de whisky. Coisas que têm de ser anestesiadas. Rapidamente. Antes que cresçam. (...)
Ora aqui está outra que eu devia ter num poster:
21 de Janeiro de 2004
Todos os dias tenho de me lembrar de não ser a pior crítica de mim própria. Não faz bem à auto-estima.
E como eu escrevia sobre mim nessa altura! A necessidade que eu tinha de escrever sobre mim! E de responder aos comentários também! Como isso tudo mudou!
E finalmente atirei-me à análise social do país para concluir que ele é vaidoso e vive de aparências:
5 de Março de 2004
Fazer figura de merda grande
O que me irrita mais neste país nem é o caso do menino azul, nem os licenciados no desemprego, nem a miséria que alastra pelas ruas na figura dos sem abrigo, nem nada disso. Pior que nós estão os países africanos, dilacerados pela guerra e pela fome e por cabecilhas mafiosos que se alimentam do povo ignorante.
O que me irrita neste país é a mania de fingir que é mais do que é. Desde Cavaco Silva (raios o partam!) que se gerou uma atmosfera de pseudo-optimismo cego que me repugna. Já não se pode dizer que o país está mal. Está mal, mas quem o diz é apedrejado na rua. O país pré-Cavaco era uma merda, mas uma pequena merda. Uma merda insignificante. Agora o país faz parte da Europa, logo, tornou-se numa grande merda. A merda continua a ser insignificante mas inchou de gases e agora faz-se grande.
O país parece aqueles parolos que não têm onde cair mortos mas gostam de fingir que têm dinheiro. Deixam de comer para pagar as prestações do Mercedes. Vão almoçar fora mas em casa comem massa. Vão às feiras comprar imitações de roupas de marca e em casa estão às escuras para não gastar luz. Tomam banho de água fria para poupar no gás. Emprestam dinheiro a quem o pede e depois não têm para eles, só para não mostrar que precisam.
Parece-me que na altura eu estava muito disponível para conversar com as pessoas. Vivia numa espécie de louca irresponsabilidade de quem ainda não tinha aceitado o seu estatuto de escravidão, e gostava das novas possibilidades que todo este mundo abria. Era como se acreditasse que as minhas palavras de aviso iam servir para alguma coisa. Mais tarde descobri que não, que as pessoas só acreditaram quando lhes tocou na pele. Naquela altura a escuridão ainda não tinha caído sobre a terra, e notava-se. Ninguém a tinha cheirado ao longe.
Eu começava a perceber tudo, mas recusava-me a acreditar no que me estava a acontecer:
5 de Março de 2004
Memórias do cárcere presente
(...) Há muito tempo que eu percebi que para me livrar desta prisão, deste cárcere, desta sentença, tinha de deixar o passado para trás e fazer por mim. Mas, alas!, fracassei por alguma razão! Ou será que no meu destino está delineado este cárcere, esta prisão, por pecados na outra vida? Eu quero acreditar nisso. De outra forma, a minha existência seria muito mais dolorosa. (...)
Ora, tendo em conta tudo isto, é fácil perceber porque me queria (e ainda quero) meter nos copos. Esquecer. Esquecer tudo. Desligar. Desligar o cérebro. Antes disso, faça-se justiça, tentei desligar a vida. Bem, mas desligar o cérebro é quase a mesma coisa, se calhar ainda mais prazeroso. Porque só se morre uma vez mas podemos apanhar uma grande cadela todos os dias.(...)
Por volta de Abril eu começava a perder-me em livros de Anne Rice e conversas existenciais comigo própria. Era preciso decidir o que fazer. Não havia respostas. As pessoas começavam a irritar-me com as suas soluções miraculosas de quem não faz ideia do que está a falar: "se vier uma tsunami, fazemos bodyboard". Como a igorância é misericordiosa!
Terá sido por aqui que comecei a perder a paciência? Bem, os comentários deixaram de ser permitidos. Essa foi uma decisão que ainda hoje aplaudo.
17 de Abril de 2004
(...) Estou perturbada. Estou muito perturbada.
Toda esta semana andei fora de mim, talvez até fora da realidade - até que ponto é que eu sei? - e hoje dei por mim a fumar à janela ao pôr-do-sol. É que eu raramente apareço à janela. Para aparecer à janela, a fumar um delicioso cigarro e a apreciar o pôr-do-sol, é porque me estou perfeitamente a cagar para quem pode passar e pensar o que raio estou eu a fazer que o meu olhar está tão perdido e tão fora. Uma semana sem beber álcool. Sem falta dele. Com falta de tudo.
Ultimamente tenho reparado em pequenos aborrecimentos que não reparava antes. Aborrece-me a forma como o fumo emarelece a minha roupa branca e os meus livros. Livros bons. Livros caros. Cobertos por uma camada de amarelo de anos e anos de fumo, primeiro do meu pai e agora meu.
Estava a ler “O Vampiro Armand”, uma passagem no tempo da Renascença, e tive vontade de ir um a bom livro procurar um quadro de que ele fala, representando Lorenzo de Médicis, quando reparo que a capa do livro está irremediavelmente manchada pelo tempo, pelo fumo, pela humidade. Por isso queria ter uma casa onde pudesse ter uma daquelas imensas estantes de biblioteca, fechadas com portas de vidro, e poder admirar os volumes e volumes, preservados, incólumes, eternos.
Há livros demasiado bons para viverem nesta casa tão pouco protegida. Há livros que não deviam passar pelas mãos dos pobres. E muito menos ficarem por lá.
Eu gostava de me dar por contente com os pedaços belos do mundo que já consegui vislumbrar, mas eu sei que há tanto, mas tanto mais, que jamais será para mim... (...)
E depois comecei a contentar-me com menos ou, por outras palavras, a conformar-me:
19 de Abril de 2004
(...) Eu vou apreciar os momentos de felicidade como se fossem os últimos. Este fim de semana, por exemplo, quando estava a beber uma xícara de café e a minha gata, em cima da mesa, a olhar lá para fora da janela, ao meu lado. A luz natural brilhava nos olhos dela, no pêlo dela, e eu senti-me em paz, num cantinho da Terra onde não se ouvem tiros nem explosões, onde posso relaxar com um café na companhia dos animais que tanto amo e ainda ter a janela aberta para deixar entrar a luz. Resolvi não pedir mais. Naquele momento, era a felicidade.(...)
E a perder o interesse:
4 de Julho de 2004
(...) Quero ir viver no mundo dos espíritos.
E continuou, já me tinha mudado para aqui, numa sequência em, que sem dar conta, começo lentamente a desaparecer destas páginas que são em vez disso preenchidas com teorias e contemplações da mortalidade e da imortalidade:
11 de Outubro de 2004
Não, não estou deprimida. Estou aterrorizada. (...)
26 de Outubro de 2004
(...) Tem-me custado perceber que nunca serei livre. Os amigos estranham que eu não ceda a mais concessões. Já me bastam os grilhões que tenho. Eu sonho com a liberdade, como é que podem conceber pedir-me mais prisões? Pelo menos, na minha solidão eu sou livre. Livre das pessoas, livre dos afectos, até livre das restrições do amor, mas é a única liberdade que me é permitida. Não abdicarei dela.
(...)
Não irei lutar mais. Até porque não há campo de batalha. Nasci no sítio errado, no local errado, no tempo errado.
Ou, por outra perspectiva, no sítio certo, no local certo, no tempo certo para deixar de gostar da vida. Estou pronta a deixá-la. Agora vi o lado negro da existência. Bebi da taça da injustiça. Percebi a inutilidade de todas as paixões humanas. Compreendi a beleza da morte. Talvez todo este sacrifício fosse necessário. Sabe-se lá a menina mimada que eu seria de outra forma. Agora vi. Agora compreendo.
As palavras são mais pesadas e medidas. Há uma inevitabilidade em aceitar a catástrofe, mas eu continuo a resistir.
Durante meses, quase nada se lê de mim mas continuo a alertar os outros. Depois, desisto. Sei que já não falta muito para verem com os próprios olhos. Em breve já não precisarão das profecias. Começam a acordar; todos os dias acorda um.
2005 foi um ano medonho. A minha Delayed Sleep Phase Syndrome (em português, para os entendidos, simplesmente "atraso de fase"), causou-me mais problemas do que eu estava à espera. Estava mais doente do que imaginava e era mais tarde do que poderia supôr. Estava a envelhecer. Isso notou-se nas páginas deste blog.
28 de Junho de 2005
Não me sinto sozinha. Sozinha seria dizer pouco. Sinto-me abandonada, esquecida, sem valor, inútil.
Algo que a sociedade adoraria fazer desaparecer do seu meio.
E hoje até acontece que os meus pensamentos coincidem com os deles.
A jovem desapareceu. Eu própria desapareci. Mais tarde ia ser pior. Deixar de falar com amigos para eles não perceberem como a minha situação era complicada. Foi por esta altura que os posts se tornaram cada vez mais esparsos, porque não podia dizer nada a ninguém. Até já tinha contado demais. Não podia suportar a incompreensão que se lia nos comentários.
Os meus posts tornavam-se cada vez mais impessoais. Como é que isso aconteceu? Isto era para ser um diário, mas eu desapareci dele.
11 de Setembro de 2005
Shut the fuck up
Eu perdi amigos porque não tinha dinheiro para acompanhá-los.
Eu desisti de falar com gente que não ouve.
A escuridão tinha chegado. O próprio templo gótico foi devastado e as pessoas desapareceram também. Continua assim até hoje.
As conversas começaram a ser paralelas, às escondidas, em segredo. Caiu a sombra sobre tudo. Os posts começaram a ser codificados para serem inócuos. Comecei a ter medo das consequências de escrever. E, ao mesmo tempo, confortava-me a ler "O Senhor dos Anéis" e a tirar dele metáforas para a minha vida. Ia precisar delas.
18 de Dezembro de 2005
2 anos
Este blog faz hoje dois anos.
Quando comecei nunca pensei que se passassem dois anos inteiros de muita escrita e muitos desabafos.
Neste ponto da minha vida, falta-me a criatividade para escrever. Falta-me a paciência para partilhar. Acima de tudo, falta-me tolerância para ouvir. Tenho coisas muito sérias e urgentes a considerar. Coisas em que penso 24 horas por dia mas que não desejo registar aqui.
O blog está semi-abandonado. Tenho esperança de voltar a uma situação em que a criatividade tenha espaço e floresça. Neste momento está asfixiada pelas necessidades mais primárias da vida.
Haverá alguns, mais experientes, que compreenderão estas palavras. A esses deixo a certeza de que não pretendo desistir, nem do blog nem de nada, se bem que já não saiba onde ir buscar força. Ao instinto de sobrevivência, talvez.
Outros serão demasiado novos para compreender exactamente o que digo.
A todos quero agradecer o terem-me acompanhado durante estes dois anos.
It can't rain all the time.
De 2006 não há muito a dizer. Penso que isto explica tudo:
16 de Maio de 2006
Acho que nunca mais vou sorrir na minha vida.
Nunca.Mais.
Fiz um interregno, e voltei, mas voltei diferente. Para isso contibuiram razões exteriores:
2 de Junho de 2006
(des)Abril em Junho
Os tempos são de escuridão quando uma pessoa receia perder o emprego ou a vida, ou ambos, quando tem que pensar duas vezes se é seguro dizer o que pensa contra os poderes verdadeiramente instituídos.
Nunca pensei ter que dizer isto. O tempo chegou.
Para bom entendedor estas palavras bastam.
E o blog ficou mais deserto, e os posts raros cada vez mais repetitivos ou ausentes de intimismo. Fez-se sentir o peso da escravidão. Há muitas formas de silenciar um homem, e até de silenciar uma mulher como eu. A melhor continua a ser pelo desespero.
29 de Outubro de 2006
ser ou não ser? não ser
(...) Sinto as minhas energias esvaírem-se aos poucos, em fluido espesso, como se tivesse um vampiro colado ao pescoço noite e dia. O meu rosto cansado e envelhecido de profundas olheiras cadavéricas não conta história diferente. A idade, dizem, e com razão, é um estado de espírito. (...)
Daqui para a frente, não sei. Não me vou preocupar. Voltarei aqui quando tiver tempo, quando me apetecer escrever alguma coisa que mereça ser partilhada.
Há muito lá para trás sobre o movimento gótico. Sobre este está quase tudo dito. Às vezes penso que ele se encontra também moribundo, pelo que vejo e ouço e sinto. Mas sei que não é apenas o movimento gótico. É tudo a cheirar a podre por todos os lados debaixo de uma fachada que ainda se mantêm de pé mas já não consegue conter o fedor. Talvez faça tudo parte da mesma coisa, da sombra que caiu.
Porque é que este blog seria diferente? Manter-se-à de pé enquanto eu me importar. É simples como isso.
4 comentários:
It can't brain all the time.
dark kiss, sim.
Essa foi gira.
um beijo e uma vénia*
gostei, gostei muito
dá vontade de mandar tudo pó caralho, dá vontade de gritar na rua as tantas da manhã. sentido.
Enviar um comentário