“Mythos” é um novo programa da RTP2 em que José Pedro Serra nos conta a história e as origens dos mitos mais basilares da tradição clássica.
A linguagem é erudita e académica e não vai ser fácil de acompanhar por todos. O programa é apenas isto: José Pedro Serra a falar, com alguns exemplos da representação pictórica do mito em questão ao longo dos séculos, e pode ser considerado aborrecido por quem não esteja muito interessado. Lembra-me um pouco os programas de História do saudoso Professor José Hermano Saraiva, mas ainda mais parado.
Mesmo assim, recomendo a todos os amantes dos grandes mitos (muitos deles reflectidos na tradição cristã, até mais do que eu pensava) e da filosofia em geral.
Encontra-se a passar na RTP2 presentemente.
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domingo, 29 de janeiro de 2023
Mythos
domingo, 1 de novembro de 2020
Maria Theresia (2017–2019)
“Maria Theresia” é um drama ficcional sobre a vida da
arquiduquesa Maria Teresa de Áustria, última governante da casa dos Habsburgos,
soberana da Áustria, Hungria, Croácia, Boémia, e outros tantos títulos que não vou citar. Pelo seu casamento com Francisco Estêvão, duque de Lorena, tornou-se
igualmente imperatriz consorte do Sacro
Império Romano-Germânico. Esta é a história de uma mulher forte que teve de se
impor numa época em que as mulheres não eram consideradas capazes de governar.
Era esperado que Maria Teresa cedesse a governação ao marido e em seguida ao
filho mais velho, mas ela não o fez e governou durante 40 anos.
Um pormenor que eu não sabia: Maria Teresa foi a mãe de
Maria Antonieta (essa mesma). A arquiduquesa teve 16 filhos, dos quais Maria Antonieta
foi a filha mais nova. Isto de ser a última filha (e da última governante da
casa dos Habsburgos) quase que prenuncia um destino fatídico desde o berço.
Mas voltando a “Maria Theresia”. Gostei muito desta
mini-série de duas partes, de produção europeia e falada em alemão (isto é, parece-me que é maioritariamente alemão). Os quatro episódios são longuíssimos,
duas horas cada um, mesmo à europeia, mas eu cá acho que não se perdia nada se
a série tivesse mais episódios e mais curtos. Acabei por dividi-los eu, de
acordo com a minha disponibilidade.
Não conheço a família Habsburgo tão bem como devia
conhecer, tendo em conta a sua importância na história da Europa moderna. Vi a
série e consultei a Wikipedia para conferir os factos, mas não encontrei todos
os pormenores que dramatizaram a vida de Maria Teresa. Deste modo, tudo o que
vou dizer a seguir é um comentário à série ficcionada.
Que Maria Teresa foi uma mulher forte não há dúvida
nenhuma, uma daquelas que só faz o que quer e que sabe o que fazer para atingir
os seus fins.
Maria Teresa não foi preparada para a governação pelo seu
pai Carlos VI, ainda à espera de um herdeiro varão que nunca chegou a ter. Na
série, Maria Teresa estuda História e Política às escondidas, preparando-se
autodidacticamente para a posição que ia ocupar muito em breve. Mesmo assim,
apesar dos seus esforços, Maria Teresa cometeu erros de principiante no início
da sua governação, que acabaram por não ser culpa sua mas de toda uma estrutura
política que não a preparou. Ingenuamente, Maria Teresa julgou que os reinos
aliados, que tinham acordado com o seu pai Carlos VI aceitar uma mulher como sucessora,
cumpririam a sua palavra. Não cumpriram, e em breve declaravam todos guerra à
Áustria, cada um a tentar conquistar territórios para si. Maria Teresa percebe
então que tem um exército pequeno, mal equipado e mal treinado. Apesar do apoio
da Hungria, onde foi coroada rainha, os Habsburgos estavam a perder a guerra e
os seus territórios. Isto tornou Maria Teresa uma mulher endurecida, que
compreendeu a necessidade de governar com mão de ferro. Não sei até que ponto a
série foi fiel aos factos, mas no seu desespero Maria Teresa alia-se ao barão
von Trenck, conhecido mercenário e criminoso de guerra que cometeu atrocidades
por onde passou. Mas, como diria Maria Teresa, “ele luta e ganha, e mais
ninguém luta por mim”. Neste aspecto, Maria Teresa foi maquiavélica como uma
verdadeira Cercei Lannister (ou melhor, George R. R. Martin é que se inspirou,
consciente ou inconscientemente, em Maria Teresa ou alguém semelhante),
não acreditando ou não querendo acreditar no mau comportamento do seu melhor
chefe de guerra. Assim que deixou de precisar dele, contudo, mandou-o prender
por todos os crimes cometidos. Maria Teresa podia ser maquiavélica, invocando a
razão de Estado acima de tudo, mas não era um monstro sem coração.
Uma relação complexa
Mas o mais interessante neste drama ficcionado é sem
dúvida a sua relação com o marido Francisco Estêvão. Tudo indica que casaram
por amor, o que por si só já era estranho à época. Mas conhecendo esta Maria
Teresa, muito capaz de levar a água ao seu moinho, até não é assim tão
estranho. Francisco Estêvão também era o que se chama “torcido”, isto é, não
muito fácil de manusear, o que estava à altura dela. Durante os primeiros
tempos foram felizes, até ao momento em que Maria Teresa sucedeu ao seu pai. Aí
é que começaram os problemas, numa versão de “love will tear us apart”. Assim
que Maria Teresa se torna governante e é declarada a guerra, esta deixa de ter
tempo para o marido e até para os filhos. Segundo a Wikipedia, Maria Teresa
terá dito que “se não estivesse quase sempre grávida teria ido sozinha para a
batalha”. Mas apesar de “sempre grávida”, Maria Teresa não parava de governar
nem no momento de dar à luz. Francisco Estêvão compreende-lhe a posição, mas sente-se
diminuído ao lado da mulher. Por exemplo, não o deixam entrar no Conselho
Privado porque não tem a linhagem que lhe garanta lá um lugar. Sem o desejar, Francisco
Estêvão ressente-se da situação. Dedica-se
então a criar uma indústria de tecidos que tinha por objectivo rivalizar com a
da Flandres, e ao que parece foi muito bem sucedido e um grande empresário do
seu tempo. Longe de viver à sombra da mulher, Francisco Estêvão começou por
usar os seus negócios para equipar o exército. Sem que ela soubesse, arriscou
mesmo vender uniformes ao inimigo, que assim, sem o saber, estava a financiar o
exército de Maria Teresa. Isto é traição, claro está, mas Francisco Estêvão
também tinha uma costela maquiavélica, como a esposa. O que os separou a pouco
e pouco foi o orgulho ferido de Francisco Estêvão, que arranjou amantes
inconsequentes para se entreter na ausência da mulher, talvez julgando que era
aceitável e comum à época, e o orgulho ferido de Maria Teresa ao descobrir que
ele as tinha. Mas Maria Teresa não o confrontou nem lhe fez uma cena. Se calhar
por ser comum à época, se calhar porque sabia que o perderia se o confrontasse
(que ele também não era homem de aturar críticas e Maria Teresa tinha a
perfeita consciência de que o negligenciava por motivos de Estado), Maria
Teresa sofreu em silêncio. Depois, de forma egoísta e novamente maquiavélica,
iniciou uma perseguição às prostitutas e a todas as mulheres de pouca virtude, mesmo
as nobres, ambicionando assim atingir as amantes do marido. Com isto, pondo os
jesuítas a agirem como espiões e polícia de costumes (Maria Teresa era
católica), estes acabam por descobrir que Francisco Estêvão não apenas pertence
a uma loja maçónica como é o seu grão-mestre! Muitos dos seus contactos com as
ditas mulheres nem sequer eram de natureza íntima, mas a maneira de comunicar com os maridos delas sem os comprometer com a maçonaria. Finalmente, Francisco Estêvão
conta a Maria Teresa tudo o que ela não sabe, da maçonaria, do financiamento do
exército (de onde é que ela pensava que vinha o dinheiro?), e que ele nem
sequer acredita em Deus. Foi um choque, mas mais uma vez Maria Teresa reage de
uma forma muito madura e moderna e propõe que passem a viver separados.
Francisco Estêvão aceita, mas volta a dizer-lhe que só a ama a ela e que as
outras não significam nada.
Neste período de separação, na série, pelo menos, outros
acontecimentos na vida de Maria Teresa fazem-na perceber que errou em muitas
coisas. Principalmente na questão das perseguições à falta de virtude, que
abandona. E ainda não é tarde para se reconciliar com Francisco Estêvão.
Gostei desta relação complexa e quase moderna, sem o
banal “felizes para sempre”, sem conflitos artificiais para criar tensão. Tenho
algumas dúvidas de que as coisas se tenham passado assim na realidade, mas do
ponto de vista ficcional foi muito bem feito. A relação entre o casal é a alma
da série.
Parece-me que a série não era para ter uma segunda parte.
Se calhar a primeira parte teve tanto sucesso que decidiram continuar. Mas
mudaram muitos dos actores, incluindo a própria Maria Teresa, o que me fez
ficar ali completamente perdida durante uma boa meia hora. Felizmente não lhe
mudaram a mãe nem o marido, ou a minha desorientação teria sido total. Não me
importo que o mesmo actor interprete vários papéis na mesma série (“American
Horror Story”) mas mudar os actores que interpretam o mesmo papel não ajuda a
criar uma ligação com a personagem.
“Maria Theresia” passou na RTP2 e recomendo a toda a
gente que gosta de História em geral e de mulheres fortes em particular.
Labels:
crítica tv,
George R. R. Martin,
Maria Theresia,
RTP2
domingo, 10 de maio de 2020
La guerre des trônes, la véritable histoire de l'Europe / A verdadeira guerra dos tronos
Como o nome indica, este documentário aproveita o sucesso da série para nos apresentar a História da França à moda da “Guerra dos Tronos”: batalhas sangrentas, envenenamentos, traições e facadas nas costas, sexo escandaloso. E muita, muita ambição.
De forma modesta e engraçada, até o genérico final tenta “imitar” o da “Guerra dos Tronos”, mas com castelos a sério. Achei giro, mas também podiam ter feito uma brincadeira com os brasões das principais famílias: o Leão, a Flor-de-Lis, as Rosas…
Porque, de certa forma, o documentário acerta em cheio. É esta História, a História real (e não apenas a História medieval), que inspira os escritores de Fantasia. Com mais ou menos dragões, com mais ou menos magia, vai-se a ver e tudo começa aqui, nos livros de História, mais ou menos transformada de acordo com a imaginação do autor. Porque a História é interessante, mas há sempre maneira de a reinventar ainda mais interessante.
O documentário conta o enredo muito depressa em quatro episódios, desde a Guerra dos Cem Anos (que afinal duraram mais tempo: 1337-1453) até Francisco I de França (1494-1547), e eu fiquei com uma grande vontade de ver aquilo tudo numa série propriamente dita, com os personagens bem desenvolvidos e os acontecimentos bem mostrados. É claro que já foram feitas adaptações cinematográficas e televisivas deste ou daquele personagem e/ou acontecimento histórico, mas assim, numa extensão de tempo tão longa e com um enredo que se vai entrelaçando de personagem em personagem, do princípio ao fim, desta maneira nunca vi. E gostava muito de ver.
Depois de andar por aí na net a pesquisar este documentário descobri que deve ter tido sucesso, porque fizeram mais temporadas. Por este motivo não sei se esta crítica vai ser justa, por isso ressalvo que a seguir me refiro à primeira temporada. A série focou-se demasiado na História de França para se poder chamar “História da Europa”. A não ser que voltem atrás, agora nas temporadas seguintes, porque nem sequer mencionaram alguns dos episódios mais sumarentos da História: os Bórgias, os Médicis, o fanático Savonarola, e o meu querido Maquiavel. Como é que é possível fazer uma História da Europa à moda da “Guerra dos Tronos” e não falar de Maquiavel? Parafraseando: “Mais vale ser temido do que amado, porque os homens traem quem amam, mas obedecem a quem temem”. Até a Daenerys Targarien sabe disto e nunca leu “O Príncipe”.
(E, já agora, podiam também falar daquele paisinho da ponta da Europa que teve um império mas perdeu-o por causa de um rei adolescente que quis ir caçar mouros. Foi um massacre, maior do que a Batalha dos Bastardos.)
Gostei muito deste documentário e queria ver mais. Boa ideia terem feito mais temporadas.
“A Verdadeira guerra dos tronos” passou na RTP2.
RTP2, repete lá isto mais vezes e, já agora, passa as novas temporadas!
domingo, 12 de janeiro de 2020
Les Misérables (2018-2019)
Tirando algumas raras excepções, geralmente as adaptações de romances ao cinema ou à televisão conseguem desmotivar-me completamente de ler o livro. Esta mini-série da BBC, adaptação do clássico de Victor Hugo “Os Miseráveis”, é uma das raras excepções. Depois de ver esta série decidi mesmo ler o livro.
Não é a primeira adaptação que eu vejo deste clássico. Lembro-me principalmente de filmes. Mas não sei porquê, se calhar porque o livro é muito grande e o enredo muito extenso, todas as adaptações que vi me pareceram apressadas, sem que houvesse tempo para explorar os pormenores, e algo falhou em arrebatar-me. Esta série conta tudo como deve ser porque não tem essas limitações de tempo.
“Les Misérables”, como é típico destes clássicos com mais de mil páginas, tem vários enredos simultâneos, mas o principal é a história de Jean Valjean, condenado foragido mas intimamente boa pessoa, na sua busca de redenção. Encontra-a ao resgatar a pequena órfã Cosette de uma vida de miséria.
Para mim, a história mais comovente é a de Fantine. Assalariada numa casa de costura (hoje chamar-lhe-íamos operária), Fantine e duas colegas aceitam os convites de três fidalgos que as convidam a passear e jantar. Uma das colegas, mais sabida, avisa-a de que estes fidalgos só querem divertir-se e que vão deixá-las para casar com as donzelas bem nascidas que os pais ricos escolherem para eles.
Mas Fantine julga-se amada. Quando o amante a abandona com uma filha pequena nos braços (como a colega avisou) Fantine tem de procurar um emprego que sustente a ambas. Entretanto, deixa a filha, Cosette, numa estalagem no campo, onde os anfitriões, os Thénardier, prometem cuidar dela como se fosse de uma filha. Longe disso, a menina é maltratada, transformada em criada da estalagem, obrigada a trabalhar noite e dia e a carregar baldes de água do rio até à estalagem em pleno inverno. Estes Thénardier são um casal de patifes, dispostos a explorar a pobre Fantine o mais que puderem, fazendo pedidos de dinheiro cada vez mais elevados para “o bem da pequena”, e chegando mesmo a mandar por carta a Fantine que a menina se encontra às portas da morte e precisam de uma enorme soma para a salvarem. Fantine não tem este dinheiro e no seu desespero vende os dentes e o cabelo. Mas os Thénardier ainda pedem mais. Fantine tem de recorrer à prostituição. Aqui, Jean Valjean também é culpado, porque a despede apenas porque Fantine não revelou que tinha uma filha a seu sustento, razão que dificilmente justifica um despedimento. Espero que o livro explique melhor esta passagem.
Seja como for, Fantine tem tuberculose e morre. No seu leito de morte, Jean Valjean promete-lhe tomar conta da pequenita. Mas o tenaz inspector Javert, que há muito tempo persegue Valjean, acaba de o encontrar e leva-o de volta para as galés.
Valjean consegue fugir, ainda mais agora que tem uma promessa a cumprir, e usa a sua fortuna roubada para resgatar Cosette. Começa aqui a segunda parte mais comovente da história. Valjean e Cosette encontram abrigo num convento, onde ela se torna mulher e ele trabalha como jardineiro. Cosette habitua-se a chamar-lhe Papá, e com razão. Nunca aquela infeliz teve alguém tão semelhante a um pai, e Valjean adora-a como a uma filha.
Não vou contar mais do que isto, mas segue-se um romance entre Cosette e um revolucionário. Espero que o livro não nos aborreça com política revolucionária do século XIX (penso que são republicanos, mas a série, graças a Deus, não nos massacrou com isto).
Os episódios são bem equilibrados a nível da acção e deixam-nos sempre em suspense à espera do próximo. A série foca-se no que é realmente importante, os personagens e o seu desenvolvimento.
Só tenho um reparo a fazer. Parece que a BBC decidiu incluir uma “quota” de actores de cor nas suas produções, independentemente do tempo histórico em que elas se passam. Em “Les Misérables” temos um dos protagonistas negro, o inspector Javert, e um em cada cinco parisienses é negro. Curiosamente, o politicamente correcto não incluiu asiáticos. Sinto-me na legitimidade de perguntar porquê. Ora, não acredito nem por sombras que existisse tanta população negra na França do séc. XIX. Inclusive fui investigar, e outros tantos como eu, se era possível que um inspector da polícia na altura fosse negro. Parece que sim, mas em circunstâncias muito excepcionais. Não era, de todo, normal. Pelo contrário. Ainda há pouco tempo vi um documentário sobre os zoos humanos. Este ainda era o tempo em que Paris tinha um “Jardim de Aclimatação” onde se exibiam os “selvagens” das colónias francesas, embora os organizadores destas exibições soubessem muito bem que estavam a lidar com pessoas normais e até lhes pagavam para fazerem de selvagens. Estes selvagens, portanto, eram actores. Mas isso não implica que a população parisiense não os visse como selvagens e que se organizassem passeios, aos domingos, para ir ver os “selvagens”, tal como hoje em dia vamos ver os animais ao Jardim Zoológico. (Se puderem, vejam o documentário. É muito elucidativo. E isto não se passou só em França como em todas as metrópoles europeias “civilizadas” e até nos Estados Unidos.) Neste clima racista, um inspector da polícia negro seria um acontecimento raro, mas ainda assim possível. Tanta população negra nas ruas de Paris é que não.
Será uma questão de habituação? Afinal, o teatro tem uma grande tradição de usar actores não convencionais nos seus papéis. Napoleão pode ser interpretado por um negro, por um asiático, ou até por uma mulher. Aliás, todos os actores podem ser homens ou mulheres em papéis masculinos e femininos. Estamos habituados. Mas o teatro, por outro lado, foca-se na interpretação, não no realismo histórico. Não estará a reconstituição histórica a ser sacrificada ao politicamente correcto? Gostaríamos de ver um D. Afonso Henriques negro, ou asiático, ou mulher (fora do teatro)? Fica a questão.
É claro que os actores não-brancos não têm culpa que certos dramas históricos não os representem porque as suas etnias não estiveram envolvidas neles. Mas isto não é verdade para todos os dramas históricos. Assim de repente estou a lembrar-me da série “Spartacus”, onde havia gente de todas as cores e feitios, do negro da Núbia ao nórdico loiro e de olhos azuis. Sim, também é verdade que eram todos escravos dos romanos, mas é essa a verdade histórica. A História não pode ser branqueada. Qualquer branqueamento, mesmo aquele feito com “boas intenções”, é mais grave do que todos os “politicamente correctos” da actualidade. No que concordo é que podia haver maior produção de dramas a representar várias etnias. E aqui recordo-me de outro exemplo, “Shogun”, passado no Japão feudal. Se a série fosse produzida hoje pela BBC será que íamos ver lá pelo meio samurais africanos? (Se calhar íamos, transformando um drama numa paródia.)
Polémicas à parte, “Les Misérables” é uma excelente série. Gostei principalmente do fim. Depois de os protagonistas chegarem a um final satisfatório, deixando de ser pobres e desgraçados, a série termina com dois meninos a mendigar na rua sem que ninguém lhes dê esmola. Ou seja, sempre haverá miseráveis. Já não os chamamos assim, mas eles existem, muitas vezes onde não desconfiamos.
Recomendo vivamente. Mas conhecendo a RTP2, onde passou a série, será difícil que repitam.
RTP2, se me lês: não é vergonha nenhuma repetir programas, especialmente quando são de qualidade. Nem toda a gente os apanha à primeira.
Não é a primeira adaptação que eu vejo deste clássico. Lembro-me principalmente de filmes. Mas não sei porquê, se calhar porque o livro é muito grande e o enredo muito extenso, todas as adaptações que vi me pareceram apressadas, sem que houvesse tempo para explorar os pormenores, e algo falhou em arrebatar-me. Esta série conta tudo como deve ser porque não tem essas limitações de tempo.
“Les Misérables”, como é típico destes clássicos com mais de mil páginas, tem vários enredos simultâneos, mas o principal é a história de Jean Valjean, condenado foragido mas intimamente boa pessoa, na sua busca de redenção. Encontra-a ao resgatar a pequena órfã Cosette de uma vida de miséria.
Para mim, a história mais comovente é a de Fantine. Assalariada numa casa de costura (hoje chamar-lhe-íamos operária), Fantine e duas colegas aceitam os convites de três fidalgos que as convidam a passear e jantar. Uma das colegas, mais sabida, avisa-a de que estes fidalgos só querem divertir-se e que vão deixá-las para casar com as donzelas bem nascidas que os pais ricos escolherem para eles.
Mas Fantine julga-se amada. Quando o amante a abandona com uma filha pequena nos braços (como a colega avisou) Fantine tem de procurar um emprego que sustente a ambas. Entretanto, deixa a filha, Cosette, numa estalagem no campo, onde os anfitriões, os Thénardier, prometem cuidar dela como se fosse de uma filha. Longe disso, a menina é maltratada, transformada em criada da estalagem, obrigada a trabalhar noite e dia e a carregar baldes de água do rio até à estalagem em pleno inverno. Estes Thénardier são um casal de patifes, dispostos a explorar a pobre Fantine o mais que puderem, fazendo pedidos de dinheiro cada vez mais elevados para “o bem da pequena”, e chegando mesmo a mandar por carta a Fantine que a menina se encontra às portas da morte e precisam de uma enorme soma para a salvarem. Fantine não tem este dinheiro e no seu desespero vende os dentes e o cabelo. Mas os Thénardier ainda pedem mais. Fantine tem de recorrer à prostituição. Aqui, Jean Valjean também é culpado, porque a despede apenas porque Fantine não revelou que tinha uma filha a seu sustento, razão que dificilmente justifica um despedimento. Espero que o livro explique melhor esta passagem.
Seja como for, Fantine tem tuberculose e morre. No seu leito de morte, Jean Valjean promete-lhe tomar conta da pequenita. Mas o tenaz inspector Javert, que há muito tempo persegue Valjean, acaba de o encontrar e leva-o de volta para as galés.
Valjean consegue fugir, ainda mais agora que tem uma promessa a cumprir, e usa a sua fortuna roubada para resgatar Cosette. Começa aqui a segunda parte mais comovente da história. Valjean e Cosette encontram abrigo num convento, onde ela se torna mulher e ele trabalha como jardineiro. Cosette habitua-se a chamar-lhe Papá, e com razão. Nunca aquela infeliz teve alguém tão semelhante a um pai, e Valjean adora-a como a uma filha.
Não vou contar mais do que isto, mas segue-se um romance entre Cosette e um revolucionário. Espero que o livro não nos aborreça com política revolucionária do século XIX (penso que são republicanos, mas a série, graças a Deus, não nos massacrou com isto).
Os episódios são bem equilibrados a nível da acção e deixam-nos sempre em suspense à espera do próximo. A série foca-se no que é realmente importante, os personagens e o seu desenvolvimento.
Só tenho um reparo a fazer. Parece que a BBC decidiu incluir uma “quota” de actores de cor nas suas produções, independentemente do tempo histórico em que elas se passam. Em “Les Misérables” temos um dos protagonistas negro, o inspector Javert, e um em cada cinco parisienses é negro. Curiosamente, o politicamente correcto não incluiu asiáticos. Sinto-me na legitimidade de perguntar porquê. Ora, não acredito nem por sombras que existisse tanta população negra na França do séc. XIX. Inclusive fui investigar, e outros tantos como eu, se era possível que um inspector da polícia na altura fosse negro. Parece que sim, mas em circunstâncias muito excepcionais. Não era, de todo, normal. Pelo contrário. Ainda há pouco tempo vi um documentário sobre os zoos humanos. Este ainda era o tempo em que Paris tinha um “Jardim de Aclimatação” onde se exibiam os “selvagens” das colónias francesas, embora os organizadores destas exibições soubessem muito bem que estavam a lidar com pessoas normais e até lhes pagavam para fazerem de selvagens. Estes selvagens, portanto, eram actores. Mas isso não implica que a população parisiense não os visse como selvagens e que se organizassem passeios, aos domingos, para ir ver os “selvagens”, tal como hoje em dia vamos ver os animais ao Jardim Zoológico. (Se puderem, vejam o documentário. É muito elucidativo. E isto não se passou só em França como em todas as metrópoles europeias “civilizadas” e até nos Estados Unidos.) Neste clima racista, um inspector da polícia negro seria um acontecimento raro, mas ainda assim possível. Tanta população negra nas ruas de Paris é que não.
Será uma questão de habituação? Afinal, o teatro tem uma grande tradição de usar actores não convencionais nos seus papéis. Napoleão pode ser interpretado por um negro, por um asiático, ou até por uma mulher. Aliás, todos os actores podem ser homens ou mulheres em papéis masculinos e femininos. Estamos habituados. Mas o teatro, por outro lado, foca-se na interpretação, não no realismo histórico. Não estará a reconstituição histórica a ser sacrificada ao politicamente correcto? Gostaríamos de ver um D. Afonso Henriques negro, ou asiático, ou mulher (fora do teatro)? Fica a questão.
É claro que os actores não-brancos não têm culpa que certos dramas históricos não os representem porque as suas etnias não estiveram envolvidas neles. Mas isto não é verdade para todos os dramas históricos. Assim de repente estou a lembrar-me da série “Spartacus”, onde havia gente de todas as cores e feitios, do negro da Núbia ao nórdico loiro e de olhos azuis. Sim, também é verdade que eram todos escravos dos romanos, mas é essa a verdade histórica. A História não pode ser branqueada. Qualquer branqueamento, mesmo aquele feito com “boas intenções”, é mais grave do que todos os “politicamente correctos” da actualidade. No que concordo é que podia haver maior produção de dramas a representar várias etnias. E aqui recordo-me de outro exemplo, “Shogun”, passado no Japão feudal. Se a série fosse produzida hoje pela BBC será que íamos ver lá pelo meio samurais africanos? (Se calhar íamos, transformando um drama numa paródia.)
Polémicas à parte, “Les Misérables” é uma excelente série. Gostei principalmente do fim. Depois de os protagonistas chegarem a um final satisfatório, deixando de ser pobres e desgraçados, a série termina com dois meninos a mendigar na rua sem que ninguém lhes dê esmola. Ou seja, sempre haverá miseráveis. Já não os chamamos assim, mas eles existem, muitas vezes onde não desconfiamos.
Recomendo vivamente. Mas conhecendo a RTP2, onde passou a série, será difícil que repitam.
RTP2, se me lês: não é vergonha nenhuma repetir programas, especialmente quando são de qualidade. Nem toda a gente os apanha à primeira.
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