domingo, 31 de julho de 2022

Snu (2019)

Este foi um filme que adiei ver, e um filme que me custou a ver com imparcialidade. Por esta razão, vou pôr as cartas todas na mesa. Tinha apenas 8 anos quando Sá Carneiro morreu, mas a verdade é que já nessa idade nunca gostei da pinta dele. Também é verdade que raramente gosto da pinta de qualquer político, mas este em particular, que era primeiro-ministro e que eu via na televisão todos os dias, não me dava boas vibrações. Nem sequer estou a falar da ideologia que o político preconizava porque era demasiado nova para a compreender. Estou a falar do homem, da antipatia que sentia por ele. (Embora eu esteja perfeitamente convencida de que o homem foi de facto assassinado, mesmo que a bomba não fosse para ele. Veja-se sobre isto outro filme controverso, “Camarate”.)
Em 1980 não sabia nada da Snu Abecassis, nem tinha idade de saber. Tínhamos acabado de sair da ditadura, não era coisa que se falasse na Crónica Feminina. Os mais velhos também não falavam do assunto, e depois de Sá Carneiro morrer muito menos, para “não falar mal dos mortos”. Só descobri já na adolescência.
Mas este filme não é sobre política, mas sobre a história de amor entre Sá Carneiro e Snu. Mesmo assim, tive muita dificuldade em abstrair-me das ideias políticas, ainda por mais quando o filme mostra constantemente intervenções reais do verdadeiro Sá Carneiro na televisão da altura. Numa delas, ele dizia que o PPD estava a fazer tudo para que os “mais jovens tivessem um futuro melhor”. Eu ri-me, ri-me às gargalhadas. Não por culpa dele. Se calhar ele até estava a ser sincero (não tenho razão para pensar o contrário). Mas tanta gente se colou a ele, tanto energúmeno ao longo da história do PPD/PSD, incluindo o senhor Passos que mandou os jovens saírem da zona de conforto e imigrarem. Se calhar Sá Carneiro não merecia lapas destas agarradas à sua memória, mas os mortos não falam. A verdade é que, para além da antipatia que eu já sentia por ele, Sá Carneiro me lembra todos estes figurões que vieram a desfilar depois dele pelo PPD/PSD e foi difícil ver o filme sem ter isso sempre presente.
Mas vou pôr a política de lado e vou tentar.
“Snu” funciona como um documento histórico preciso, tão preciso que me irritou. Irritou-me aquela gente rica toda, aqueles betos que tratam os paizinhos por você e vice-versa, aquela gente de famílias opulentas que tinha grandes casas de banho onde tomar banho ou duche numa altura em que o povo passava mal, mesmo muito mal, e ainda se lavava num alguidar. Lá está, novamente, a dificuldade em avaliar o filme de forma imparcial. Ver o filme deu-me vontade de arrancar os cabelos, o que só significa que está muito bem feito. Foi pena não termos ao mesmo tempo a outra face da moeda: aquela gente pornograficamente rica enquanto o povo vivia na miséria.
Mas esta é uma história de amor trágico. Ainda antes da tragédia propriamente dita, o casal teve de enfrentar o grande problema das mentalidades. Nos anos 80, O PPD ainda cheirava a igreja. Este cheiro foi progressivamente passando para o CDS (RIP) e por lá ficou. (Sim, eu não queria falar de política, e estou a conter-me, mas é difícil quando o protagonista foi um antigo primeiro-ministro.) Na altura, PPD e CDS mal se distinguiam, daí a AD (Aliança Democrática) com outro partido improvável visto do nosso tempo: o PPM (Partido Popular Monárquico). Este era um Portugal profundamente salazarento, pidento, todo ele a cheirar a igreja católica. Um primeiro-ministro não podia apaixonar-se, e muito menos divorciar-se. (Ainda há alminhas, em Portugal de 2022, que não querem divorciar-se porque é pecado, tenhamos isto em atenção! O cheiro a igreja impregna-se no cérebro e depois custa a sair, quando alguma vez sai.)
Snu e Sá Carneiro, ambos casados, tiveram o azar de se apaixonarem naquela altura. Não chegou a ser um escândalo público porque, tragicamente, não houve tempo para que toda a gente soubesse. Algumas notícias em alguns jornais, mas nunca o falatório que seria agora.
O filme chama charmoso a Sá Carneiro bastantes vezes. Ora, eu não podia discordar mais. A carantonha que aparecia na televisão era tudo menos charmosa. Mas, quem sabe? O que somos em público é muito diferente do que somos em privado, e o que somos na intimidade ainda pode ser mais charmoso. Snu e Sá Carneiro eram um amor proibido para a altura, o que talvez ainda os tenha aproximado mais. A eterna tragédia de Romeu e Julieta.
Se nunca achei Sá Carneiro charmoso, não posso dizer o mesmo do actor que o representou, Pedro Almendra. Tão charmoso que se calhar até me convencia a votar nele! A personagem Snu (nunca conheci, nem sequer vi a pessoa real) faz um retrato muito convincente de alguém que se apaixona por um homem pelo seu ideal. Não é o meu ideal, mas compreendo. Até compreendo todas as boas intenções daquele tempo, embora discorde delas profundamente.
Sá Carneiro quer casar com Snu, mas isso implica divorciar-se da mulher que é a mãe dos seus não-sei-quantos-filhos. De acordo com a mentalidade da época, a mulher não lhe quer dar o divórcio. Acredito que seja daquelas que ainda hoje não daria o divórcio. Aqui posso fazer também o meu juízo de valor e perguntar-me porque é que um homem de visões mais largas casou com alguém de visões tão estreitas? Porque dava jeito ter uma esposa “bem”, muito honrada e católica? Reparem, não estou a falar mal dos mortos. Estou a dizer que sempre, em todas as épocas, a gente se deita na cama que faz. Às vezes há quem se deite na cama que parece mais fácil só para descobrir que é uma cama de picos. Vamos esquecer que estas personagens são pessoas reais. Vamos imaginar que são ficcionais. Quando ele casou com ela, como ela diz, colocou-lhe um anel no dedo e disse-lhe que era até que a morte os separasse, sabendo bem que ela levava essa promessa muito a sério. Também compreendo que algumas pessoas mudam, divergem, e não se tornam a encontrar. Mas aqui há culpa para toda a gente e para ninguém. E sim, sei que estou a dizer isto do conforto de 40 anos depois. E, mesmo assim, ainda há quem não tenha percebido estas coisas básicas: as pessoas mudam, divergem. Nada é para sempre. Que este filme sirva ao menos para abrir alguns olhos ainda embaciados de incenso de sacristia.
A nível das interpretações tenho de dar dois grandes parabéns:
À actriz Ana Nave, que fez uma Natália Correia tão real que até me esqueci de que não era a própria. (A Natália Correia eu tive muitos anos para conhecer.) Trabalho extraordinário. Até fiquei arrepiada.
À actriz Joana Brandão, que fez uma Manuela Eanes exactamente como eu me lembro dela. Fiquei igualmente arrepiada.
Já outros personagens não foram tão bem conseguidos. Só percebi que era Mário Soares quando Snu lhe chama Mário. Maria Barroso, Freitas do Amaral, Ribeiro Telles, Helena Roseta, etc, etc, não os reconheci. Mas o filme também não era sobre eles.
Tirando tudo isto à parte, este é um documento histórico (e político) sobre a vida da alta sociedade portuguesa à saída dos anos 70. Reconheci tudo, vi tudo. Do outro lado da história, mas vi. De tal forma que é difícil fazer as pazes com o que se passa aqui, por muito que queira. A história de amor é bonita e trágica, Romeu e Julieta, que não tinha de acabar assim, e não devia ter acabado assim porque ninguém o merece. Mas este era também um mundo bafiento e fechado, um mundo que Snu e Sá Carneiro, na maturidade das suas vidas, queriam arejar. Era inevitável abrir as janelas.
Uma das melhores partes do filme é quando se mostram imagens reais da Revolução de Abril misturadas com filmagens actuais e “envelhecidas” de Snu e Sá Carneiro. Portugal precisava dessa Revolução de Abril, mas ainda precisava mais da outra, da revolução de mentalidades que seriam Snu e Sá Carneiro. Que ainda precisa, 40 anos depois. Se foi isto que o filme quis fazer, e acredito que foi, então fez bem.

(Não vou dar nota ao filme porque não consigo ser imparcial.)


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