Este conto é a história de Esben, um rapaz cuja mãe foi queimada por bruxaria. A acção passa-se algures em terras nórdicas, o que sabemos pelos fiordes, pela toponímia e pelos nomes dos personagens (o autor é dinamarquês). Nunca nos é dada uma data. Mas nada disto realmente interessa excepto que aconteceu, e aconteceu em todo o lado.
A mãe de Esben era uma curandeira, conhecedora de medicina popular. As pessoas iam procurá-la quando estavam doentes. Certa vez alguém lhe levou uma menina com tuberculose e a Mãe disse que não a conseguia curar. A menina morreu. A mãe da menina foi ao padre dizer que a Mãe era uma bruxa. Para “piorar” a situação, Esben e a Mãe tinham uma vaca que era a inveja dos vizinhos. Também o facto de a vaca dar mais leite do que as outras foi considerado prova de pacto com o demónio. A Mãe foi queimada viva e a vaca foi leiloada.
Esben tem de fugir, porque já o queriam apanhar também por ser “filho do Diabo”, e na sua fuga encontra Hans, um homem sábio e solitário que vive na encosta do fiorde. É a ele que Esben conta a sua história, aos bocadinhos de cada vez, uma história dolorosa de contar e de ler. Hans é igualmente um curandeiro e sabe que um dia virão por ele também. Mas Hans fugiu a vida toda e não quer fugir mais. “Talvez um dia haja lugar para aqueles que são diferentes. Talvez.” Mas ainda não será tão cedo, e quando vêm efectivamente buscar Hans, na febre da caça às bruxas, Esben tem de fugir outra vez.
Eu adquiri este livro através do Círculo de Leitores quando era ainda miúda. A tiragem é de 1981, o que significa que o li quando tinha uns 10 anos. Esta é uma leitura pesada e perturbadora que não é de todo para crianças, e eu sabia disso, e preparei-me psicologicamente para o que ia ler, mas sempre tive um fascínio pelo Mal. Não um fascínio no sentido em que me atrai. Pelo contrário, um fascínio no sentido em que o Mal tem de ser compreendido e explicado. A perseguição a estas pessoas que praticavam medicina, sob a alegação de bruxaria e pacto com o Diabo, sempre foi uma coisa que me fez muita confusão. Anos mais tarde li um longo livro espanhol dedicado à Inquisição e outras perseguições, e foi o mesmo em todo o lado. Superstição e ignorância, sim, mas estas perseguições foram também motivadas por invejas, cobiça e conflitos entre vizinhos. Por causa de uma vaca que dava mais leite do que as outras, por exemplo.
Neste livro, Hans diz que “todos nós temos um bocadinho de caçador de bruxas”. Eu diria que todos nós temos uma natureza negra e perigosa, debaixo da normalidade, que só precisa de uma desculpa para vir à superfície. Não conhecer isto é não conhecer nada da natureza humana.
Há pouco tempo, e de repente, lembrei-me novamente deste livro, assim do nada. (Nunca nada vem do “nada”, mas quase pareceu assim.) Ao longo dos anos tive de dar vários livros por questões de espaço, e senti-me tomada de pânico de ter dado este também. Mas não dei. Assim que abri o baú (é mesmo um baú) encontrei-o logo à minha frente, como se quisesse saltar-me para as mãos. Era um livro em que eu não pensava há décadas. Ainda bem que o guardei porque a segunda leitura ainda me disse mais do que a primeira, como era de esperar. É curioso como naquela altura eu fiquei com a ideia de que o livro era muito maior. Afinal é um conto que nem chega às 20 mil palavras, num livro decorado por ilustrações igualmente sombrias como a da capa, que se lê numa hora. Mas apesar de ser um livro curto é um grande livro.
Aconselho a toda a gente que gosta de conhecer a natureza humana, nem que seja preciso encontrar este livro em segunda mão.
domingo, 15 de novembro de 2020
A Febre das Bruxas, de Leif Esper Andersen
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