terça-feira, 10 de novembro de 2020

O método resulta! – como nasceu “Nepenthos”

“The method works!” é uma faixa da banda sonora do filme “O Perfume, história de um assassino”. Aconselho vivamente, tanto a banda sonora como o filme como o livro homónimo de Patrick Süskind. “The method works!” é um tema ao mesmo tempo sinistro e empolgante, o tema em que o protagonista descobre como preservar o perfume das suas vítimas.
Mas este post não é sobre nada disto, excepto que também fala sobre o momento eureka que um criador sente quando descobre o método que funciona.
Começou com uma troca de ideias sobre métodos de escrita com a autora Patrícia Morais, que usa o método do planning. E depois a conversa foi por ali fora.


O conceber de um livro
Vou também revelar o meu método, ou pelo menos tentar. Já conhecia o método de planning, mas, honestamente, só de olhar para ele me dá arrepios. Isto não quer dizer que eu seja desorganizada, embora a alguém de fora pareça irracional e caótico. Mas até não. Eu gosto de chamar ao meu método de escrita “apaixonado”. Pode não parecer mas sou uma pessoa muito apaixonada. Sem paixão não consigo fazer grande coisa, em todas as áreas da minha vida.
Como é que isto se aplica à minha escrita? Também só consigo escrever uma história que me apaixone. Às vezes tenho ideias que nunca chego a desenvolver porque falta ali o “clic”, a química, a necessidade de escrever para contar a história.
Começo por ver a história na minha cabeça como se fosse um filme. Ou melhor, uma série de episódios. Começa com uma pequena cena, depois vou vendo mais cenas, como quem está a ver uma série, e deixo que a história toda chegue até mim. Nunca escrevo nada sem saber o fim. Acho que nem sequer um post do blog eu escrevo sem saber o fim. Se calhar é este o meu grande “segredo”.
Por falar em segredo, enquanto estou a conceber a história esta é um segredo só meu. Acho que é isto a que alguns escritores chamam “dar à luz” um livro. Quando chega a um certo ponto de maturação, a história tem de nascer. Pode ser um parto fácil ou pode demorar dez anos. Algumas cenas até podem ser concebidas, como embriões, mas perdem-se pelo caminho sem que se tornem histórias. Prefiro que fiquem em segredo.
Só falo nas histórias quando elas já estão escritas. Até lá, são o meu prazer secreto, o visionamento do “filme” em exclusivo só para mim, em que começo a conhecer os personagens, a ver os cenários, a sentir o ambiente, a ouvi-los falar. Escrever é pôr tudo isto no papel, quando já vi o filme todo e gostei. Às vezes tenho a sensação de que as histórias me são transmitidas e me aparecem na cabeça. Charles Dickens também dizia isto.
Pode demorar meses ou anos. “Nepenthos”, ou melhor, a história de Reena, na suas versões mais antigas, foi algo que eu comecei a inventar (ou a “ver”, prefiro assim) desde os doze anos. À medida que eu ia crescendo as primeiras versões do filme já não me agradavam, mas a ideia continuava lá, em semente, à espera de ter terreno fértil onde se desenvolver. Esse “terreno fértil” só chegou com a maturidade.
Mesmo assim, apesar deste método demorado, escrevi o primeiro draft em três meses. Trezentas mil palavras, o que dá uma média de cem mil palavras por mês. E já lá estava tudinho, até estavam coisas a mais que tive de cortar…
Na altura eu não sabia nada de técnicas de escrita. Ia pelo instinto. A história estava muito mais contada do que mostrada. Passei nove anos a corrigir, e a ler sobre escrita (em inglês) e a aprender com as dicas que encontrava. Fiz o percurso ao contrário: primeiro escrevi, depois é que fui aprender porque não estava satisfeita com o draft e não sabia como resolver. Andei doida à procura de beta readers. Encontrei alguns, poucos mas bons.
Agora já consigo escrever um primeiro draft muito mais limpo e apresentável, mas também demora mais tempo. Mas o método de escrita, quando me sento para escrever, não se alterou. Quando começo, nada me faz parar. Desapareço durante meses, ponho tudo em stand by, não falo com ninguém. É como viver uma paixão, tal e qual, entre mim e a história. Só nós duas, em segredo. Desta paixão resulta o tal nascimento, que é o livro.
Só depois é que partilho o meu “bebé” com os outros. Com os beta readers, primeiro, e só muito mais tarde, depois de muitas revisões, quando o meu trabalho está completo e não consigo melhorar mais, com o público. Não chega ao público sem um trabalho que demora sempre anos. Mas não espero que um leitor entenda isto.
O que eu tenho em comum com o planning, embora eu nunca pense nisto racionalmente quando estou a ver o “filme”, é o personagem começar num ponto A e acabar num ponto B. É como se eu visse a primeira cena, e me contassem como vai ser o fim, e eu fizesse a pergunta: o que é que lhe acontece para ele chegar do ponto A ao ponto B? E então começam-me a ser transmitidos mais “episódios” que eu vou vendo, como numa série de televisão, como se eu não tivesse influência no enredo e fosse apenas uma espectadora. Quando gosto muito do “filme” tenho de o escrever e partilhar, porque o filme não se encontra em mais lado nenhum senão na minha cabeça. Posso demorar muito tempo a começar a escrever (ou não), mas quando começo é para escrever tudo de uma vez e até ao fim.
Sem ser uma planner, também não estou a improvisar. Está tudo organizado, no tal filme que vi na minha cabeça. O complicado é escrever o filme em palavras. Imagina o teu filme preferido. Imagina que o viste numa realidade paralela. Imagina que gostaste tanto do filme que tens de o partilhar com a nossa realidade nem que seja a última coisa que fazes na vida, mesmo que não saibas se alguém mais vai gostar tanto como tu. É assim que funciona para mim.
Eu “culpo” por este método duas coisas:
1, sou filha única. Não sei o que é a experiência de ter irmãos, mas todos os filhos únicos sabem que tinham de arranjar coisas com que se entreter sozinhos. Se calhar foi assim que comecei a ver os “filmes”, para me entreter. Ainda hoje arranjo desculpas para ficar sozinha e abstraída e ligar a minha “televisão mental” para ver os filmes “exclusivos”, feitos de propósito para o meu gosto pessoal. Dito assim, até pode parecer que eu tinha vontade era de fazer filmes em vez de escrever livros, mas não. Ao contrário dos filmes, os livros permitem entrar dentro da mente dos personagens e contar as coisas que os filmes não conseguem mostrar.
2, sou da geração em que a televisão era a nossa baby sitter. Punham-nos em frente à televisão e nós ficávamos ali entretidos o dia todo, a ver tudo, a absorver tudo, até coisas que não eram para a nossa idade mas que naquela altura passavam sem preocupações a qualquer hora do dia. Há quem diga que a televisão estupidifica mas para mim a televisão é como uma mãe. Quando não a tenho, sinto tanta falta dela. Por televisão, aqui, estou a dizer écran. Écran onde ver coisas. Se calhar esta educação “televisiva” teve influência na forma como a minha imaginação se manifesta em filmes e cenas e episódios, com uma narrativa mais visual do que escrita. É bem possível. Mas agora já é uma questão para a psicologia. Como cobaia criada à frente da televisão, acho que não me prejudicou nada.
Gostei tanto de escrever este email que acho que o vou aproveitar para um post. Há muito tempo que eu queria contar isto a alguém para ter “desculpa” de escrever isto tudo.

E contei, e aqui está.

 

 

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