domingo, 4 de outubro de 2020

The Walking Dead [décima temporada]


[contém spoilers; não revela o final;
nem podia revelar porque, no momento em que escrevo, o último episódio ainda nem foi filmado]


E assim aconteceu que o apocalipse zombie durou tanto tempo que foi atropelado pelo apocalipse Covid. Mas não percamos a esperança. Já aí está o Covid. Talvez ainda venham os zombies.
Comecei a ver esta temporada sem saber que não tinham conseguido filmar o último episódio devido à pandemia. Curiosamente, quando acabou o penúltimo episódio também não me preocupei muito que não existisse o próximo. A qualidade da série melhorou, sim senhor, a olhos vistos, depois da saída de Scott M. Gimple (que foi estragar “Fear the Walking Dead”). Mas já tenho muita dificuldade em acompanhar o que se passa e, principalmente, em importar-me com as caras novas que só conheço há meia dúzia de episódios. Para fazer esta crítica estou a usar a cábula dos resumos dos episódios do IMDB, porque assim de repente nem me lembro de nada. Quando uma série atinge este ponto (e uma série que já foi inesquecível) é doloroso falar dela.
Pois a Michonne lá se foi embora também, o que não é um spoiler para quem acompanha as notícias em torno da série. Michonne não morreu. Simplesmente abandonou os filhos (Judith e o pequeno Rick Jr.) em Alexandria e foi atrás de uma ténue pista de que Rick possa estar vivo. Alguma vez a Michonne que eu conheço agiria assim, abandonar dois filhos no meio do apocalipse zombie? Mas nem pensar. A Michonne que eu conheço ficou enlouquecida quando o filho dela morreu. Não ia abandonar os filhos por uma pista obscura.
As personagens vão tendo flutuações de personalidade conforme o enredo (e os contratos) obrigam, e a certa altura até as personagens que já conhecemos há muito tempo começam a agir “out of character”. Isto cria um fosso, uma dissonância entre o espectador e as personagens, como se subitamente elas fossem possuídas por extraterrestres (mas menos interessante), em que já nem as reconhecemos. Este novo “Walking Dead” é uma série diferente, e até compreendo a necessidade de evolução, mas transformar as personagens numa coisa que elas não são arranca-nos a última âncora que nos agarrava à história. Hoje em dia vejo “The Walking Dead” e já não sei muito bem o que estou a ver.
Muitos problemas foram resolvidos com a direcção de Angela Kang, mas alguns dos mais irritantes persistem. O mais irritante de todos, julgo que é opinião unânime, é a mania de pôr os personagens a fazer coisas estúpidas para avançar o enredo.
Sim, as pessoas cometem erros e os personagens ficcionais não são diferentes, mas os acessos de estupidez momentânea dos personagens de “The Walking Dead” já são lendários. Desta vez calhou a sorte a Carol (uma das personagens mais respeitadas exactamente por estar sempre um passo à frente dos outros) de se comportar como uma imbecil. Isto porque perdeu o outro miúdo, Henry, a quem deviam dar um prémio qualquer por ter conseguido ser o personagem mais estúpido de todo o cast de “The Walking Dead”, e não apenas momentaneamente (o miúdo era constantemente imbecil). Mas Carol é uma personagem que já perdeu muito, que já perdeu tudo, e aguentou-se. Que não ia perder a cabeça agora, a esta altura do campeonato. Foi doloroso de assistir.
E depois temos Negan, uma batota completa. O Negan que nós conhecemos era um sociopata sem remorsos. Este Negan está cada vez mais bonzinho. Querem à força que a gente esqueça como ele esmagou à cacetada os crânios de Abraham e de Glenn com a Lucille. Aliás, já nem se fala da Lucille, para as pessoas não se lembrarem. E como se não bastassem os homicídios e a megalomania, ainda houve aquela vez em que ele queimou vivo um médico só porque desconfiou que este se andava a fazer a uma das suas “esposas”, “esposas” estas todas obrigadas a serem esposas de Negan, mercê de ameaças às famílias delas. E é este o personagem que querem reabilitar. Negan não tem redenção possível. A única vez que concordei com Carol nesta temporada foi quando ela disse: “O Negan também podia desaparecer”. Ah, se podia. Esta é que é a Carol que eu gosto. Admito que o Negan tenha uma qualidade redentora. Sempre foi bom com miúdos e adolescentes, o que se manifestou logo quando ele interagiu com Carl. Isto faz parte da personagem como ela nos foi apresentada. O resto é fabricação para ver se conseguimos começar a suportá-lo. (Ó Rick, para onde te levou a senhora da lixeira, que não vens enfiar um balázio na cabeça deste gajo?)
Pelo menos não sou a única que não esquece. Aaron e alguns outros habitantes de Alexandria também não esquecem. Negan só está vivo porque eles estão a honrar a “última vontade” de Rick, a quem julgam morto, de que Negan deve ser preso e não executado sumariamente, porque eles são “melhores do que isso”.
Estranhamente, Negan e Alpha foram protagonistas da cena de sexo mais explícita que já se viu na série toda. Uma cena pervertida como só podia acontecer entre Alpha e Negan, mas aconteceu. Até os vimos aparentemente nus, ao longe. “The Walking Dead” nunca quis perder tempo com isso, mas nesta última temporada temos algumas cenas de sexo, incluindo entre duas lésbicas. Definitivamente, a série está mesmo a mudar com uma mulher ao leme.
Por falar em sexo. Outra batota, o padre Gabriel. Onde é que este personagem é o mesmo que a gente conheceu na temporada cinco? Andar com a Rosita deve ter-lhe feito muito bem à auto-estima. O homem agora parece um autêntico Rick Grimes. Até manda e fala grosso.
E por falar em Rosita, que tem uma filha com Siddiq. O que aconteceu a Siddiq foi uma manobra bem orquestrada como eu já não via há muito tempo em “The Walking Dead”. Não estava mesmo à espera daquilo, se bem que o espião dos Whisperers me tenha parecido uma pessoa implausível de sofrer uma lavagem cerebral por parte da Alpha. Mas os Whisperers, percebemos nesta temporada, já não eram simplesmente um grupo de sobreviventes, eram acima de tudo um culto. E nós sabemos o que os cultos fazem à cabeça das pessoas, e aquela Alpha era sinistramente carismática, portanto até vou admitir que deu a volta à cabeça ao médico Dante.
A nível de choques, penso que o Siddiq foi mesmo o choque da temporada. Conseguiram que a gente gostasse dele (não havia muito para não gostar, tirando o facto de que foi praticamente responsável pela morte de Carl por causa de um disparate de matar walkers para respeitar uma crença da mãe de Siddiq de que matar zombies era libertar-lhes as almas). Conseguiram que tivesse impacto. Isto acontece cada vez menos em “The Walking Dead”.
Do mal o menos, o nosso Daryl continua o mesmo de sempre. O disparate de adulterar a personalidade das personagens consoante convém ao enredo ainda não o atingiu. (Mas temo que venha a atingir.) Algumas das melhores cenas são entre Daryl e Carol, os veteranos da série, a conversar e a fumar um cigarro e a mandar bocas um ao outro como nos velhos tempos. O que só nos lembra de como esta série era boa quando o núcleo de protagonistas era sólido e coeso, mas já não é nada disso.
Houve alturas em que tive de fazer um esforço para me lembrar de quem era aquela cara que ali aparecia, de tal maneira já nem sei quem é que está na série e quem é que já morreu ou se foi embora. Por exemplo, não me lembrava nada que a Enid e a Tara tinham morrido na última “leva”, na temporada anterior, de tão insignificantes se tornaram os seus papéis. (Ou se calhar foram as actrizes que pediram para sair.)
O penúltimo episódio podia chamar-se “O gato que traiu Alexandria”. Sim, houve um gato, e ficou muito mal explicado como é que o Beta percebeu que o gato significava onde estavam os sobreviventes. Boo! Má escrita! Devíamos ter visto que havia um espião exclusivamente designado para espiar o gato, e aquele gato, pela sua importância, devia ter sido um personagem mais desenvolvido. Por exemplo, qual é a relação do gato com a Carol, com o Daryl, com o cão do Daryl, Dog? Como é que o Beta sabe que o gato é amigo de Lydia? Ou será que não é? A Lydia falou do gato de forma tão ambígua que eu fiquei na dúvida. E o Negan, a quem a Lydia falou do gato, o que é que ele sente pelo felino? Despertar-lhe-á pesadelos com Shiva, a tigra, que em tempos lhe comeu bastantes Salvadores? Tudo mal explicado. Aquele gato nunca se tornou um personagem tridimensional. Mal o deixaram dizer um mio. Nem sabemos se o vamos ver outra vez. Oportunidade desperdiçada de mergulhar na mente do cão do Daryl e de aprofundar o conflito com o gato, cujo nome deve ser Cat.
E assim acabamos mais uma temporada de “The Walking Dead”, que não chegou a terminar, na paródia. Já não dá para ver de outra maneira. É aceitar ou procurar outra série. Mas os zombies de Nicotero continuam tão bons, é difícil parar de ver.

§


Já depois de escrever este artigo li a notícia de que ”The Walking Dead” tem finalmente uma data marcada para acabar, lá para 2022 se a pandemia não atrapalhar. Talvez isto seja bom. Talvez a série desenvolva, agora que há um fim à vista. 
Também li por alto que estão planeadas mais spin offs, mas já houve tantos anúncios neste sentido, sem que se concretizassem, que nessas só acreditarei quando as vir.


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