domingo, 19 de abril de 2020
(The Adventures of) Merlin / Merlin (2008–2012)
[contém spoilers; revela o final]
Hesitei muito em fazer a crítica a esta série (as cinco temporadas), porque basicamente só tenho a dizer mal, mas cá vai. “Merlin” deve ser a série mais mal feita que eu já vi na vida. Quando comecei a ver os primeiros episódios julguei, palavra de honra, que era uma série muito antiga, daquelas que se faziam nos anos 80, tipo “Os Três Duques” ou “Buck Rogers”, destinadas a um público muito jovem e estruturadas em episódios do género “aventura da semana” sem que tivessem qualquer história de fundo a desenvolver-se ao longo da série. “Merlin” começou assim, pelo menos, e assim se manteve até ao final da terceira temporada.
Fiquei muito desapontada logo com o primeiro episódio. Esperava um drama arturiano e saiu-me uma série infanto-juvenil sobre o jovem feiticeiro Merlin que embirra com o jovem príncipe Arthur, mas que acaba por se tornar criado dele. Para terem uma ideia, nada aqui é realista nem segue a história clássica. Estes acontecimentos deviam ter acontecido no século V mas Camelot parece uma cidade do século XVII, inclusive com um físico da corte, Gaius. Guinevere não é uma nobre mas sim uma criada de Morgana. Morgana não é meia-irmã de Arthur mas sim uma protegida de Uther, o rei. Ao ver isto, percebi que ia ser uma versão para crianças do conto arturiano, em que todos os personagens são amigos e lutam contra o vilão da semana. E de certa forma até foi. Em quase todos os episódios, estes quatro partiam em aventuras, derrotavam os maus e voltavam a casa.
Agora vamos à história principal de “Merlin”, que durante três temporadas serviu apenas de móbil para este ou aquele enredo semanal. Uther, o actual rei de Camelot, tem ódio à magia. Logo no primeiro episódio um qualquer desgraçado é decapitado por praticar magia (mas não se preocupem porque não se vê nada de perturbador; aliás, as espadas de Camelot têm o condão de serem enfiadas numa qualquer barriga e saírem como entraram, sem uma gota de sangue. Sinceramente, acho que nunca vi sangue nesta série, do princípio ao fim, apesar das batalhas e do elevado número de mortos nas últimas temporadas. Neste aspecto, a série nunca perdeu o seu cariz infantil. E as mortes nunca foram realistas, excepto a última, mas já lá vamos.) Uther é um rei fanático em relação à magia, justificando que em tempos esta foi usada para grandes males, o que o levou a fazer a Grande Purga em que matou toda a gente que tinha dons mágicos: homens, mulheres e crianças. Só isto já dá uma ideia do tipo de homem que aqui está. O que descobrimos depois, e o que o torna execrável, é que Uther é também um grande hipócrita. Quando se vê em apertos, e apesar da sua própria lei anti-magia, o hipócrita recorre a quem o salve, mesmo com magia.
Mas, como se não bastasse, Uther é também um péssimo pai para Arthur, sempre e constantemente a deitá-lo abaixo. Quase todos os episódios eu acabava a abanar a cabeça e a dizer “Pobre Arthur” e admito que foi isto que me agarrou à série. Pobre Arthur, eu só queria que finalmente aquele desgraçado tivesse uma chance de ser feliz. Desgraçadamente, tudo lhe aconteceu e todos lhe mentiram e o traíram a torto e a direito, até aqueles que o amavam e o queriam proteger.
A Merlin é atribuído, desde o primeiro episódio, o destino de proteger Arthur. Quem lho diz é o Dragão, o último da sua espécie, aprisionado nas masmorras de Uther para servir de exemplo da sua cruzada anti-magia. Honra seja feita a “Merlin”, este é um dragão como deve ser, um dragão sábio e falante, cheio de profecias e segredos, que não tem nada a ver com as criaturas acéfalas da “Guerra dos Tronos”. Isto é que é um dragão, um dragão à Tolkien. E durante a série inteira o Dragão foi a única personagem coerente. Já as outras…
Desde cedo se percebeu que Arthur e Guinevere iam mesmo casar um com o outro. Ora, isto é problemático porque Guinevere é uma serva. E Uther, evidentemente, opõe-se. O homem é tão mau que mandou matar o pai de Guinevere só porque este falou com um feiticeiro, e ameaçou expulsar Guinevere de Camelot quando percebeu que Arthur tinha sentimentos por ela. Mas, estranhamente, por culpa dos autores da série que a escreveram tão mal, Guinevere aceita isto tudo, inclusive a execução do próprio pai, como se nada fosse. Por fim, depois da morte de Uther, a série lá arranjou maneira de os casar, justificando que o povo de Camelot só queria que o seu novo rei, Arthur, fosse feliz. Se é uma série infanto-juvenil, aceita-se.
Mas esta Guinevere, não é só para dizer mal por dizer, é uma oferecida. Não houve ninguém a quem ela não se tivesse feito. A Merlin, logo no dia em que o conheceu. A Lancelot, o primeiro grande amor da vida dela. Até a Gawaine, quando o viu. Quando ela diz a Arthur “eu sempre te amei”, deve ser para rir. Sempre o amou, ou ficou com ele porque foi o único que, pelo contrário, a amou sempre, ou porque ele ia ser rei? É que tudo isto pareceu muito mal para o lado da Guinevere. E mais uma vez eu abanei a cabeça: pobre Arthur!
E depois temos Morgana. A princípio ela era boa pessoa, amiga de Arthur, de Gaius e de Guinevere. Chegou a ir com eles em aventuras em que arriscou a vida para os salvar. Ao mesmo tempo, Morgana vai descobrindo que também ela tem dons mágicos, o que a coloca numa situação periclitante perante Uther, que chega mesmo a enfiá-la numa masmorra e tudo indica que até a mandava matar se fosse preciso. Começa assim a revolta de Morgana contra Uther e ninguém pode dizer que não é justificada. Mas de repente, golpe de teatro!, os autores da série decidem que Morgana afinal não é apenas uma protegida de Uther, que é mesmo uma filha ilegítima (logo, meia-irmã de Arthur, como na história clássica), e para lhe salvar a vida Uther até recorre à magia certa vez. Então, Uther, não estavas disposto a mandá-la matar quando desconfiaste que ela tinha magia? Esqueceste-te de que ela é tua filha? Os autores da série, de certeza, esqueceram-se, ou nunca tiveram intenção de a tornar filha de Uther.
Isto é apenas um das dúzias de exemplos de como os escritores da série andaram a patinar, como se não soubessem para onde levar a história e o que queriam fazer da série. Efectivamente, o maior problema de “Merlin” é que a série não parece ter sido previamente planeada, que não sabe a quem se destina e para onde se dirige. Cheguei a pensar para com os meus botões que cada episódio era dado a escrever a um escritor diferente que não sabia o que os outros estavam a fazer, naquele improvisanço de que depois se “dava um jeito”. Se, pelo contrário, isto foi tudo pensado de propósito, nem sei o que dizer. Mas duvido mesmo muito que o tenha sido.
Um outro exemplo que me irritou solenemente: desde os primeiros episódios que Arthur disse que um certo soberano vizinho a Camelot, um tal de Odin, o queria matar porque Arthur tinha matado o filho dele. Isto foi dito e esquecido, mas umas temporadas depois Arthur voltou a dizer: “Odin odeia-me porque eu matei o filho dele”. Só nunca disse quando e como. Foi na guerra? Foi um acidente? Foi em legítima defesa? Foi a jogar aos dardos?... Quanto mais falavam do assunto mais curiosa eu ficava. Lá para as últimas temporadas algum dos escritores decidiu fazer um episódio em que o tal Odin captura Arthur e o quer matar porque, claro está, ele matou o filho dele. E eu pensei, “finalmente!, vamos saber o que é que aconteceu”. Pois. Não. Nem assim. Arthur é salvo por Merlin no último instante, como acontece sempre nesta série, e agora é ele que vai matar Odin. E eu quase gritei à televisão: “Não, gaita, não o mates antes de ele dizer como é que mataste o filho dele! Ou diz tu! Alguém diga!” Ninguém disse. E nunca fiquei a saber como é que o tal filho do Odin foi morto, e se havia legítimas razões para vingança ou se o Odin estava apenas a ser casmurro. Ora, não é assim que se conta uma história. Isto é fazer de propósito para alienar os espectadores que estão a tentar importar-se com aquilo que estão a ver.
A série continuou a fazer isto regularmente. Coisas que eram mencionadas e nunca explicadas, profecias que só apareciam quando davam jeito, partes importantes do enredo que não eram contadas nem mostradas. Por exemplo, quando de repente se inventou, lá para a quarta temporada, que havia uma profecia de que seria um druida a matar Arthur. “Estranhamente”, nunca se ouviu falar desta profecia antes, porque os escritores nunca tinham pensado nela. Outro exemplo: já depois de Morgana se tornar uma vilã tomamos conhecimento de que um outro soberano vizinho a Camelot (cujo nome nem apareceu o suficiente para eu me lembrar) a manteve aprisionada durante dois anos. Isto é importante, não?! Muito importante. Mas isto só foi dito, en passant, no episódio em que ele entrou, com um flashback de 10 segundos de Morgana acorrentada numa cela. Como foi capturada, porque é que foi aprisionada, como escapou, nunca saberemos. Até parece que nada disto é importante. Eu tive a sensação de ter perdido esse episódio, mas de facto não perdi porque os vi todos. Mais uma vez a série a fazer todo o seu possível para não nos importarmos com as personagens. Não há nada pior, ao contar uma história, do que fazer com que os espectadores não a percebam. Foi exactamente o que aconteceu aqui.
Bem, pelo menos isto explicou porque é que o dragão da Morgana é deficiente, pobrezinho, o que já não é mau, senão isto ficava sem explicação também... Mas já estou a pôr o carro à frente dos bois.
Morgana, como disse, torna-se 100% vilã. A revolta contra Uther compreende-se, mas depois de ele morrer Morgana transfere a sua raiva contra Arthur, de quem sempre foi amiga, sem que se perceba muito bem porquê. O próprio lhe pergunta, em dois episódios diferentes: “Morgana, o que te aconteceu?” Ao que ela responde: “Cresci.” Fraca motivação para quem era capaz de arriscar a vida por Arthur, antes mesmo de saber que ele era seu irmão, a quem Arthur nunca fez nenhum mal, que de repente a faz querer roubar-lhe o trono e dizer coisas como “quero que os lobos lhe comam a carcaça e que os corvos lhe furem os olhos”. É muito forte para quem não tem motivos para odiar desta maneira. (Mas honra seja feita à actriz Katie McGrath, ela conseguiu adaptar-se à transformação da personagem e vendeu-nos muito bem a sua vilania.)
O que aconteceu a Morgana foi antes isto: a “Guerra dos Tronos” estava a ter o sucesso que se sabe e de repente os autores de "Merlin" decidiram copiar, e vai de transformar a Morgana numa vilã horrorosa, como Daenerys e Cercei. Até lhe arranjaram um dragão! A última temporada é mesmo um plágio descarado, com cenários a lembrar a Muralha e Winterfell, onde até aparece “Ser Davos” (Liam Cunningham), vestido com roupa que, não estou a ironizar, deve ter sido alugada directamente ao guarda-roupa da “Guerra dos Tronos”.
Foi por esta altura, a quinta temporada, que comecei a ver por hate watching mesmo. Só para gozar e dizer mal. Mas foi também na quinta temporada que a série finalmente encontrou um rumo, tarde demais mas encontrou, abandonando a faceta infanto-juvenil e perdendo o medo de se tornar sombria. Foram os melhores episódios, e mesmo assim não foram bons.
Até chegarmos aos três últimos episódios. Estes sim, foram bons, até parece uma série diferente, onde os acontecimentos têm peso e consequência, onde as personagens não mudam de personalidade conforme a vontade dos autores. Onde conseguimos, finalmente, importarmo-nos com elas. Confesso que vi estes três últimos episódios colada ao écran.
Mas, no fim, a série voltou a deixar a desejar. Embora a mim, pessoalmente, tenha satisfeito, li algumas críticas de fãs que ficaram completamente destroçados. E têm razão, e vou explicar porquê.
Grande spoiler, ou talvez não: Arthur morre no fim. Quem conhece a história clássica já sabe disto, e que é uma história muito mais trágica do que na série (Arthur é assassinado pelo seu próprio filho Mordred, filho de Arthur e da sua meia-irmã Morgana), mas tendo em conta como a série aligeirou a história a níveis infanto-juvenis penso que os fãs do início tinham legitimidade para esperar um final diferente. Afinal, Arthur e Morgana nunca dormem juntos, Mordred não é filho deles, Arthur casa com uma criada por amor, porque é que raio não podiam engendrar um fim feliz? A série prometeu que ia ser ligeira e no fim partiu o coração aos fãs.
Eu própria, no último episódio, não acreditei que Arthur ia morrer. Sempre julguei que Merlin inventasse algo à última da hora (como a série sempre fez) que o salvasse. De outra maneira teria logo desatado a chorar quando Arthur começou a revirar os olhos, a morte mais realista de toda a série. Mesmo assim, quando ele morreu mesmo, afectou-me, confesso. Os actores Colin Morgan (Merlin) e Bradley James (Arthur) conseguiram, às vezes contra a má qualidade da própria série, convencer-nos de uma amizade que se foi desenvolvendo ao longo de cinco temporadas e que atinge o seu auge épico neste último episódio. Quando Merlin grita, guturalmente, em lágrimas incontroláveis, a invocar o Dragão, é também já um grito de dor e luto, e eu arrepiei-me.
E é por causa deste momento arrepiante que estou a fazer esta crítica. Não posso, de modo algum, recomendar a série, nem sequer a última temporada, que igualmente padeceu de soluços constantes, mas recomendaria os três últimos episódios. Talvez não bastem para mostrar como esta amizade evoluiu até chegar onde chegou, mas quem ficar interessado pode sempre ir ver do princípio.
Pobre Arthur, nunca teve mesmo uma chance. Da mesma forma, o talento dos actores merecia uma série à altura deles, mas infelizmente não a tiveram. Os três últimos episódios que me colaram ao écran não poderiam nunca salvar cinco temporadas de uma série sem rumo que não sabia o que queria nem para onde queria ir. Quando foi, já ia tarde.
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