domingo, 5 de maio de 2019

A Dama Pé-de-Cabra, de Alexandre Herculano

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Toda a gente conhece esta lenda, que já existia antes da adaptação de Alexandre Herculano e em várias versões (procurar, por exemplo, a lenda do castelo de Marialva). A primeira parte deste conto costuma ser inserida nos manuais escolares, onde me lembro de a ver. O que já tinha esquecido é que o conto tem uma segunda parte, embora tenha toda a certeza de a ter lido algures.
Começando pelo princípio, D. Diogo Lopes, nobre medieval, senhor de Biscaia, andava a caçar quando encontra na serra uma mulher lindíssima por quem se apaixona e a quem pede imediatamente em casamento. A senhora, de quem nunca nos é dado o nome, aceita, na condição de que D. Diogo Lopes nunca mais faça o sinal da cruz. Diz o conto que D. Diogo, que “que nos folgares e devassidões perdera o caminho do Céu”, nem pensa duas vezes. Mas ao chegar ao castelo com a noiva, repara que ela tem “pés forcados como os de cabra”. O que nada alterou, e viveram juntos e felizes por vários anos, tendo nascido entretanto duas crianças, D. Inigo Guerra e Dona Sol.
Certo dia de caça e festança, em disputa por um pedaço de carne, a podenga negra da dama mata o alão do senhor da casa. Este, impressionado, pela primeira vez em tantos anos benze-se com o sinal da cruz. A dama fica toda preta, eleva-se no ar, e sai por uma fresta com Dona Sol nos braços, deixando D. Inigo porque D. Diogo não a deixa levá-lo. (Na versão da minha mãe a dama “desaparece com um estouro”.)
Aqui acaba a primeira parte e começa a segunda.
Na segunda parte, D. Inigo já é homem. D. Diogo Lopes tinha partido em penitência para a guerra com os sarracenos e encontra-se aprisionado. D. Inigo não sabe como pagar o resgate. O seu pajem, o fiel Brearte, aconselha-o a procurar a sua mãe, na serra, que “é grande fada”. Ao que D. Inigo responde: “Que dizes tu, Brearte? Sabes quem é minha mãe e que casta é de fada?”
A interacção entre estes dois é tão boa e fluida que parece um romance contemporâneo. D. Inigo daria um grande anti-herói. Brearte é fiel e leal mas tem medo deste amo meio-humano e meio-outra-coisa. D. Inigo conta ao seu pajem a história que um velho abade relatou ao seu pai, que esta Senhora da Pena é uma alma penada, condenada ao inferno. Há mais pormenores sobre a origem desta senhora e do seu amante, transformado em onagro [jumento selvagem], que nos levam a D. Argimiro, que tinha jurado ao seu pai, estando este no leito de morte, que não caçaria animais que tivessem crias a seu cargo. D. Argimiro quebra esta jura. E aqui temos um momento belíssimo e invulgar para a altura em que foi escrito. D. Argimiro entra numa gruta onde um onagro guarda as crias, e este “deixando as suas crias, estendeu-se no chão e abaixou a cabeça, como quem suplicava”. A personificação do onagro, que acaba morto apesar da sua súplica, é bastante comovente. Mas D. Argimiro não tarda a sofrer o castigo pelo que fez.
De volta ao presente da história, D. Inigo, desesperado, e não sabendo como pagar o resgate de D. Diogo, acaba mesmo por procurar a sua mãe na serra, onde a encontra. A dama quer ajudar D. Diogo e envia o seu filho, montado do onagro maldito que é o castigo de D. Argimiro, direito à praça mourisca onde liberta o seu pai sob circunstâncias sobrenaturais.
Este conto recorda-me porque é não sou amiga de contos curtos. Havia aqui muito a explorar para um romance inteiro. Mesmo assim, D. Inigo, que morre de velho, tem fama de ter vendido a alma a Belzebu, pois “meio precito [condenado] era ele por sua mãe; não tinha que vender senão a outra metade da alma”. Mas há mais para contar, como diz Herculano: “o que a história não conta é o que então se passou no castelo. Como não quero improvisar mentiras, por isso não direi mais nada”. Pena não ter contado, que esta podia ter dado uma grande Fantasia Épica. Herculano, como historiador, prefere sempre ficar-se pelo que conhece e que mais gosta, a Reconquista aos Mouros. Muita da sua linguagem medieval já é para nós completamente obsoleta. Ainda tentei procurar alguns termos na internet mas não achei nada e também não figuram nos dicionários actuais. Foi preciso ir adivinhando pelo contexto, como se faz com as línguas estrangeiras. Quanto tempo restará até que nem o contexto baste para compreender a narrativa? Mas Herculano continua incontornável. Um pouco mais de desenvolvimento, menos absurdo, menos visões do inferno, mais psicologia (D. Inigo e a sua relação com a mãe), a história do que aconteceu a Dona Sol, e este conto podia ser um romance contemporâneo.



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Este conto encontra-se na compilação “Dentro da Noute – Contos Góticos”, do Projecto Adamastor. O download gratuito pode ser feito AQUI.




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