segunda-feira, 20 de maio de 2019
Siren
[crítica à primeira temporada]
Às vezes temos surpresas. Quando vi o poster de uma sereia de aspecto ameaçador (ou predador?) decidi que esta era uma série a espreitar por uma questão de descargo de consciência, mas não esperava nada daqui. Enganei-me. Uma série tão bem conseguida, apesar de pressupostos que desafiam a toda a credibilidade, é de facto assombroso.
A primeira cena diz-nos logo que alguém se empenhou a sério em produzir um bom resultado apesar do tema periclitante — o que talvez tenha sido o segredo do sucesso. Contra o fundo de um céu nocturno e tempestuoso nas águas revoltas do mar de Bering, uma pequena traineira anda na faina. Só este início dá logo vontade de continuar a ver. Ao puxarem a rede, os pescadores não encontram apenas peixe. Uma criatura desconhecida e agressiva salta da rede, ataca e fere gravemente um deles, e, perante o choque dos restantes, esconde-se no porão. Antes que os pescadores consigam identificar o que está no barco, um helicóptero do exército aparece, fuzileiros descem a bordo, e levam com eles o pescador ferido e o estranho animal selvagem que teve de ser atordoado para que o pudessem controlar. Como se tudo isto não fosse já suficientemente estranho, um dos pescadores fica convencido de que aquilo que apanharam não é outra coisa senão uma sereia. Se bem que não é nada a sereia belíssima e sedutora das lendas.
Se esta cena parece saída de um filme de terror é porque os primeiros quatro episódios são efectivamente realizados como uma mini-série desse género. E podiam mesmo funcionar como mini-série, com princípio, meio e fim. Pergunto-me se os criadores de “Siren” também não acreditaram que a série fosse renovada e quiseram apresentar uma história completa nestes primeiros episódios. Para nossa surpresa, e se calhar deles também, a coisa resultou.
E se resultou, muito se deve igualmente à actriz que faz de sereia, Eline Powell, que sem maquilhagem ou efeitos especiais consegue convencer-nos de que estamos a ver uma espécie diferente. Ryn, nome que a sereia dá a si própria, está em terra firme à procura da irmã (a mesma que foi apanhada pelos pescadores e capturada pelo exército). A princípio parece uma conveniência narrativa que a vila piscatória de Bristol Cove, onde se passa a acção, tenha um festival dedicado às sereias, devido à lenda um dos seus fundadores que terá amado uma sereia, mas afinal isto também faz parte do enredo. Bristol Cove esconde muitos segredos e a verdade não é tão bonita como a lenda.
À medida que percebemos a natureza predatória e furtiva das sereias de “Siren”, não é de admirar que os militares estejam interessados. Como acontece quase sempre nestes filmes, até existe um projecto secreto para estudar a espécie. É aqui que se encontra a pobre sereia capturada, a servir de cobaia.
Mas Ryn ainda não sabe disto. Completamente ingénua e perdida, como peixe fora de água, e nua e tudo como saiu das ondas, anda pelas ruas à procura. Agora sim, convenientemente, cruza-se com o biólogo marinho Ben Pawnall, que a princípio a julga apenas uma rapariga em apuros. Mal ele sabe que deu de caras com o maior achado científico da sua vida.
Um pouco assustada, Ryn recorre ao seu mecanismo de defesa e ataque: o canto, que tanto mesmeriza como seduz. Ryn não sabe o que está a provocar, mas a partir desse instante Ben nunca mais a consegue tirar da cabeça. Tal como na lenda, o canto da sereia enlouquece os homens. E ainda não percebemos se enlouquece também as mulheres porque não foi aplicado a nenhuma (ainda só vi a primeira temporada). Era interessante perceber isso. A série já mostrou que não tem medo do tema, mas não sei até onde é que podem ir sem melindrar a audiência a que se destina.
Sereias muito humanas
Tal como no caso dos zombies, para apreciar esta série é preciso que o espectador esteja disposto a aceitar alguns “factos” como adquiridos. Aqui não há magia nem sobrenatural. É tudo apresentado como se fosse científico. As sereias têm uma cauda de peixe quando estão no mar. Assim que saem para terra, esta cauda cai e dá lugar a duas pernas. O contrário acontece quando as sereias voltam ao mar: as pernas unem-se numa cauda, crescem barbatanas, aparecem dentes pontiagudos. O processo, que vemos logo no primeiro episódio, é arrepiantemente doloroso. Para ser convincente, é preciso que o espectador também faça a sua parte e “acredite”. Eu achei muito convincente e que a série vale a pena que “acreditemos”.
Na verdade, uma das coisas de que estou a gostar mais é mesmo conhecer esta nova espécie de humanóides marinhos, com a sua própria cultura e mitologia, que fogem dos “fora de água” porque não têm boa impressão de nós. Para eles, nós é que somos os predadores. A nossa moralidade, com os seus tons de “cinzento”, não é conhecida entre as sereias. Na água tudo é simples e básico.
Para uma série de entretenimento que, diga-se francamente, não aspira a grande seriedade, até são colocadas questões filosóficas pertinentes. Ryn, que fora de água parece tão humana que ninguém percebe a diferença, é pessoa ou animal? Onde é que começa a diferença entre um e o outro? Nas barbatanas, na inteligência, no pensamento racional, na consciência, na sensibilidade? Não é estranho que seja Ben a colocar esta questão, ainda antes de perceber que o seu interesse por Ryn pode não ser apenas científico. Afinal, até que ponto é permitido sentir atracção por algo que parece humano mas não é “bem” humano? Ou será que é?
Para Ryn, os seres de “fora de água” também são uma surpresa e um mistério. Afinal não são todos maus, alguns até são bons, mas ao mesmo tempo fazem coisas que Ryn não compreende. A complexidade, tão diferente da vida instintiva que conhece no mar, começa a fasciná-la. A sua irmã, depois de libertada do projecto científico onde foi sujeita a experiências traumáticas, ainda vê os humanos a preto e branco, mas Ryn já não acha assim tão fácil colocar as coisas em termos de “nós ou eles”. Alguns humanos são bons, outros são maus, mas entre o seu povo também há indivíduos dogmáticos que se recusam a encarar o outro como válido. Agora que os horizontes de Ryn se abriram para profundezas e cambiantes que o mar não proporciona, poderá ela voltar à vida básica e simples que sempre conheceu como única?
A incógnita da segunda temporada
“Siren” surpreendeu-me pela positiva, não só por suscitar estas questões mas também pela rapidez com que me embrenhou nas personagens. A cena em que a irmã de Ryn é capturada na rede, enquanto Ryn observa sem lhe conseguir valer, comoveu-me tanto que me vieram lágrimas aos olhos. Isto não me acontece assim tantas vezes e nunca com histórias para entreter sem pensar muito. “Siren” já me fez pensar alguma coisa e já me fez sentir bastante.
Mas tudo na devida perspectiva. “Siren” não é para levar muito a sério nem é para esperar daqui um enredo muito sofisticado. (Embora mais bem pensado do que eu julgava, sublinho, e muito mais profundo do que coisas juvenis e incoerentes como “Grimm”, por exemplo.) Mas há partes não tão bem conseguidas. Menos credível do que a cauda transformar-se em pernas e vice-versa, para mim, foi como Ryn aprendeu a falar inglês em três dias, com formas verbais e conceitos abstractos e tudo! Ena! Mas é daquelas coisas necessárias para pôr os personagens a comunicar depressa, e também é preciso “acreditar” nisto “porque sim”.
Conforme vamos vendo o mundo pela perspectiva das sereias, a narrativa começa a afastar-se dos elementos de filme de terror e a preocupar-se com outras coisas. Na parte em que vou, parece-me que a série quer abordar temas ambientais, já para não falar da questão da diferença do outro e da xenofobia, o que é sem dúvida muito premente e actual. Eu, sinceramente, preferia que “Siren” não se tornasse noutra dessas séries politicamente correctas e sem sal. A primeira temporada conseguiu ser subtil sem deixar de passar a mensagem. Mas uma vez esgotada a novidade que é conhecermos as sereias e a sua cultura estranha, será que “Siren” consegue criar um enredo igualmente interessante na segunda temporada? Estou a torcer para que sim, mas esta é uma série ameaçada de fragilidades por todos os lados que já conseguiu melhor do que seria expectável. Vou ficar aqui a fazer figas para que não comece a meter [outro tipo de] água.
O canto das sereias
Uma última nota sobre o canto destas sereias. Aqui a série tentou o que pôde, mas, aos meus ouvidos, este canto lendário soa como uma mistura de sons de baleias com música etérea. Uma mistura, enfim, que não é completamente desagradável, mas daqui até fascinar alguém até ao ponto da obsessão vai uma grande diferença. É outras das coisas em que “acreditamos” porque queremos acreditar. Faz de conta que estamos a ouvir algo sublime.
Eu estou muito mal habituada, porque basta-me percorrer aleatoriamente o meu Winamp para encontrar vozes de sereias bem mais convincentes, desde a incontornável Lisa Gerrard até uma das minhas descobertas mais recentes, a vocalista dos Rïcïnn, Laure Le Prunenec, já para nem falar de outra lenda, Elizabeth Fraser (Cocteau Twins, etc). E isto sem pensar muito. Estas sim, sereias que me causam um transe extático. E como a mim, a muito mais gente.
“Siren” deixa algo a desejar neste aspecto. Felizmente, a série parece ter consciência desta limitação e não põe as sereias a cantar muitas vezes.
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