As pessoas que dizem que gostam do frio devem ter ricas casinhas aquecidas para onde voltar. Ou pior, devem ter daqueles casarões com lareira e tudo. Não devem saber o que é estar a escrever a um teclado com os dedos gelados. Não devem saber que até dói pensar em tomar banho porque é preciso tirar a roupa numa casa de banho gelada. Não devem saber que até dói pensar em despir a roupa e vestir o pijama pela mesma razão. E outras coisas que me levam a concluir que não sabem mesmo o que é passar frio.
Gostar do frio deve ser assim, tipo, um passeio na neve, muito divertido. Como ir à praia.
Se eu tivesse percebido isto aos 15 anos, e não aos 40, teria mudado alguma coisa?...
Ou, o que interessa mais: teria mudado alguma coisa para melhor?
Talvez não. Talvez a minha ignorância [ou subconsciente ignorância] tenha sido um mecanismo de sobrevivência. De que já não necessito. Tudo é tão mais simples quando o mundo já não tem importância.
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Este post era para ficar por aqui e chamar-se apenas "conclusão existencial" mas parece que hoje estou numa de dizer umas verdades.
Aqui há uns tempos, no último ano, a propósito da crise, vejo na televisão um marmanjo da minha idade a queixar-se, muito indignado, ao presidente da república, que agora já não tinha casa e era obrigado a morar no local de trabalho (empresa dele próprio, isto é).
Na verdade, esta crise fez-me perceber como a maioria das pessoas estão mal habituadas, muito mal habituadas. No reverso da medalha, fez-me perceber como eu sou miserável, como eu sempre fui tão miserável. E como eu não percebi o miserável que era na idiotice de me julgar igual aos outros.
Pois eu nasci e cresci num escritório. O meu pai tinha uma oficina e a nossa casa era o escritório. Isto, para mim, era a realidade. Às vezes perguntava-me para onde iam os outros meninos quando as lojas fechavam. (Este post já está a tomar-me tempo a mais para o que quero dispor nele, mas cá vai.) Os outros meninos, quando não estavam na escola, iam para as lojas da rua onde os pais trabalhavam. Não havia cá creches para ninguém e amas eram só para os ricos. Estes meninos de que falo não eram ricos, eram a maioria. Durante o dia andavam na rua, comigo, ou andávamos pelas lojas dos pais deles. Devo-me ter perguntado, embora não me lembre, mas devo-me ter perguntado, para onde é que eles iam quando fechava a mercearia, quando fechava a drogaria, quando fechava a papelaria. Eu, no escritório e na oficina, estava sempre em casa. Até atendia os clientes ao telefone! Mas não pensava no assunto. Se calhar nem me passava pela cabeça que eles tinham uma casa, da maneira que as pessoas entendem ter uma casa, para onde se vai, depois do trabalho ou da escola. As minhas ambições eram muito mais limitadas. Ter uma Tucha (para quem não sabe, era uma imitação mal-amanhada da Barbie) já me fazia as delícias. Desde que eu tivesse uma Tucha, como elas, e uma colecção de carrinhos, como eles, estava toda feliz. Casa para ir depois do trabalho? Nem me passava pela cabeça!
Depois ouço este gajo queixar-se que tem de viver na empresa... Enfim, ri-me. Tive de me rir. E se tivesse de tomar banho numa oficina malcheirosa, cheia de aranhas e centopeias (para não falar dos ratos, de que nunca desgostei), o que não se queixaria?... Sei lá, deu-me para rir.
Ainda nesta onda de reflexões, tive o meu primeiro quarto, um quarto só para mim, já depois dos vinte anos. Nesse dia, ao telefone com o meu namorado, disse-lhe: "Nem imaginas como me sinto feliz por ter um quarto! É que me sinto muito melhor!", e ele respondeu-me: "Que parvoíce! Ninguém se sente melhor por ter um quarto!"
Eu calei-me, e senti-me estúpida, e não percebi porque me senti estúpida. Envergonhada. Envergonhada, mesmo, por me estar a sentir feliz por ter um quarto.
É claro que este menino sempre teve um quarto, onde cabiam duas ou três famílias, cama de casal e grande roupeiro, aparelhagem, tudo.
E depois pergunto-me, como é que eu não percebi que não era possível, que não ia dar?! Que não posso imaginar sequer que as pessoas percebam, porque sempre tiveram tudo?...
Mas não sabiam que tinham tudo. Da mesma maneira que eu não sabia que não tinha nada. Isto é que é assombroso! Verdadeiramente assombroso!
Como as pessoas sempre viveram noutro mundo, até as pessoas da minha própria família, como por exemplo a minha tia quando me ofereceu sais de banho tendo a obrigação de saber que eu não tenho banheira! E eu perguntei-lhe: "e faço o quê, com isto?..." Está bem, a mulher tem desculpa, não bate muito bem da cabeça. Mas a sério, sais de banho? Para um escalda-pés na bacia, quiçá?...
Também houve aqueles imigrantes em França, amigos dos meus pais, era eu miúda, que resolveram trazer-me um disco com um êxito infantil qualquer. É difícil não associar estas duas memórias, porque eu não tinha gira discos! A cara com que eles ficaram! (Não interessa também, porque a minha avó tinha gira discos e eu pude ouvir aquilo uma ou duas vezes antes de decidir que era uma porcaria. Ainda se fossem os Abba!) Mas a cara daquela gente, quando lhes disse: "Não tenho onde ouvir."! Impagável! Verdadeiramente impagável!
Mas a melhor de todas foi a da torneira. Acreditem ou não, durante alguns anos da minha adolescência tive de viver sem uma torneira. Era uma casa completamente degradada, não tinha casa de banho, só uma pia redonda (daquelas de buraco no mármore). Onde tomava banho? Na oficina, pois claro! Mas seguindo em frente. Não havia torneira. Abria-se directamente o cano, enchia-se o jarro de água (um daqueles jarros plásticos verdes com a boca em forma de jarro vegetal, muito populares na altura) e depois lavava-se a cara na bacia. Só se abria o cano uma vez por dia. Ah, sim, e a água era sempre fria. De inverno, gelada!
Finalmente, lá se arranjou uma torneira. Estranho que pareça, eu sempre tive muitos amigos. Que iam a minha casa, esta casa. Esta amiga em particular era mais do que uma amiga, mas não interessa nada agora, e eu mostrei-lhe a torneira. Ela gozou, por eu estar feliz por finalmente ter uma torneira e poder abri-la várias vezes ao dia e não precisar do jarro, e eu ri-me também. Porque me ri? Porque achei ridículo. Estava-me a rir como se não fosse eu naquela situação. Como se eu fosse como ela, com torneiras de água quente e fria, e banheira e tudo. A ponto de gozar com a minha torneira! Mas no fundo, no fundo, acho que também me ria para ela não perceber que eu estava envergonhada. Acho que me ria para eu não perceber que eu estava envergonhada.
Aquilo era muito giro, para ela. Devia ser também como um passeio à neve, uma ida à praia. E eu a fingir que era divertido para mim também. Original. Excêntrico. Não ter uma torneira, não é giro?
É assombroso, perfeitamente assombroso, como eles não viam a diferença. Como eu não via a diferença. Mas foi melhor assim. Que eu me risse. Enquanto houve paciência para me rir. Acho que se gastou, e a paciência não é coisa que se compre com dinheiro.
E agora já gastei muito tempo com isto.
9 comentários:
A casa da minha avó paterna era uma casa ali para os lados da Graça, onde não havia banheira, não havia sanita, só havia uma torneira na cozinha que dava para um alguidar verde, onde se lavava tudo, desde louça ao corpo. As necessidades faziam-se no buraco naquele cubiculo menor que a despensa da casa dos meus pais - que era minuscula, se comparada com as 3 despensas da casa dos meus avós maternos! - que dava directamente para os canos. Havia um jarro verde desses, para despejar nesse cano esgoto, e uma cortina para dar alguma privacidade. O meu pai e a minha tia cresceram assim, e a minha prima também, durante uns tempos. Convivi com isso de perto, mas não o vivi, ia a casa da minha avó e depois seguia para a minha casa, onde tinha duas casas de banho, ou para casa dos meus avós maternos, onde uma das despensas era maior que o velho quarto de infância do meu pai. E se via as diferenças, não me fazia espécie, não sei explicar. Na casa da minha avó paterna havia uma boneca de porcelana com a qual eu brincava sempre que lá ia e um carrinho que parecia um jipe, enorme. Adorava aqueles brinquedos e o bolo de mel que ela me dava ao lanche. A minha tia dormia numa cama de abrir no quarto da minha avó, mas foi das primeiras pessoas a fazer uma operação plástica de estética ao nariz - qual Michael Jackson - em Portugal. Isto hoje em dia parece-me tão estranho, a operação plástica dela, era eu uma miúdita de 10, 11 anos, principalmente pq ela apareceu no hospital onde o meu pai estava internado a lutar contra um cancro a queixar-se de como tinha passado mal no pós operatório, quando o próprio irmão tinha acabado de remover o estômago inteiro e não sabia quanto mais tempo tinha de vida...mas hoje em dia percebo que aquela foi a forma dela sobreviver, se proteger, da miséria em que viveu na infância e na juventude, miséria essa que eu nem me passa pela cabeça o que terá sido. Apesar de eu saber bem de mais o que é estar sentada ao computador com os dedos gelados, o que é a dor de imaginar o despir-me na casa de banho para ir tomar banho ou o tirar a roupa no quarto para vestir o pijama. Mas também sei perfeitamente que apesar disso, apesar de rapar esse frio todos os anos, ou o calor insuportável no verão, sei que tenho mesmo é muita sorte, e uma vidinha muito priveligiada, e dou muito valor ao facto de pelo menos ter uma casa de banho gelada onde tomar um duche morno. O que me choca é que vivo rodeada de gente que tem isto e mais e não lhe dá valor, só sabe é queixar-se e dizer "Odeio ser pobre!!". Sabem lá essas pessoas o que é ser pobre, são-no de espirito e nem o sabem.
ps: Aquele não era um look gótico, oh pá, não me digas isso. Pouca renda, muito pouca renda para um look gótico, e no entanto, renda a mais para um look black metal. Era o meu hibrido, eheh.
A casa da tua avó paterna é-me muito familiar. Conheci muitas assim. Inclusive a cortina da casa de banho. Por falar nisso, no escritório também só tínhamos a cortina. Já nem me lembrava! Não admira que eu seja uma autêntica fanática por portas fechadas à chave.
Isto são só bocadinhos que me apetece às vezes contar. Não é, nem de longe, a história toda. Reservo-me o direito de não tecer a narrativa da minha vida. Mas o que conto é o que é.
Existe uma espécie de final feliz. Não consegui tanto como queria mas já consegui mais do que a certa altura pensei que conseguiria. É um final feliz ao nível material, mas principalmente ao nível espiritual: desliguei-me das coisas materiais, do ter, do parecer. Não preciso de uma Barbie, basta-me uma Tucha e já é bom. Como na infância. Quando nem sabia o que era uma Barbie.
É uma história muito longa, muito longa, a cair para o triste.
Depois de escrever este post compreendi porque é que não percebia que era pobre. Acontece que na minha rua havia gente muito mais pobre do que eu! A ponto de eu, que já estava abaixo da média, me sentir privilegiada. Acontece que tomar banho na oficina era melhor do que tomar banho no tal alguidar de que falas, que era o que a minha avó tinha. E também era verde.
Quando se cresce neste limbo, abaixo da média mas um grau acima do "muito miserável", fica-se entre dois mundos e não se pertence a nenhum. (Mais tarde também cheguei ao "muito miserável", foi a época da torneira.) Mas penso que isso me fez crescer, como pessoa, ter o privilégio (espiritual, moral, intelectual) de compreender que nada disso importa. Que isso é a embalagem, o cenário, o acessório. Não é a essência.
Que não me interessa pertencer a mundo nenhum. Sou o que sou. Basta.
Neste país sempre se olhou demais para o exterior (desde tempos renascentistas, pelo menos). A maioria das pessoas não conseguiu distanciar-se e olhar para dentro.
Havia mais a dizer sobre isto, muito mais a dizer sobre isto. Hoje tive tempo e paciência, não sei quando voltarei a ter.
PS: juro que pensei que o comentário no teu blog não tinha lá ficado, porque não estava logada e quando me loguei o comentário desapareceu, puff! Por esta altura, com tantos anos de internet, uma pessoa já devia saber logar-se antes de comentar!
Era um look gótico. Gótico light. Gótico para usar de dia. ;)
Esqueci-me de referir que apesar de rapar briole, adoro o tempo frio, adoro aquela sensação ilusória de estar em casa enrolada numa manta megaquente a beber um chá a ferver e olhar pela janela e ver o céu de Inverno que me diz que lá fora está de rachar, ou a noite a cair ás 5h da tarde. Não sei explicar, acho que na volta - e apesar da casa de banho gelada e do quarto gelado - é esta minha mania de romanticizar tudo, é uma sensação de conforto e aconchego que não tenho no Verão. Esta adoração pelos tempos frios tem também muito a ver com as minhas conquistas - tal como referes as tuas, que foram do for espiritual e moral mais que do foro material - as minhas são do foro afectivo. Poderia passar aqui largos minutos a explicar-te porque é que eu gosto do frio e do tempo frio e que relação é que isso tem com a minha infancia e adolescência, mas como sei que tu és particularmente inteligente e sagaz, acho que não preciso. E sim, adooooorooooo quando tens paciência para analisar e falar sobre estas questões. Posso não concordar ou não ver as coisas sobre o teu prisma, mas para mim é sempre um aprendizado, é sempre um ganho ler as tuas análises, dão-me senão a sensação de que afinal não estou assim tão errada - quando me identifico com o que dizes - pelo menos a noção de saber como é que as coisas são para outra pessoa que não eu. É um mundo, uma abrangência.
Katrina, ou, cara, conforme vc prefere ser chamada(o), vc "fala" demais...
vc sempre faz a vez de coitadinha(o), a(o) vítima, a(o) miserável, mas vc nunca vai entender o que significa ser uma pessoa batalhadora, uma pessoa sobrevivente como eu, tipow assim crescer sem pai nem mãe (esta estava presente, mas sempre foi algo semelhante a um "fardo" pelo qual me fizeram ficar responsavel antes dos meus tenros 4 anos de idade) e se tornar um vencedor, que eh como eu me qualifico atualmente (eu ja fui modesto, hehehe...;o).
conselho: se vc entrou em umas de ler e viver Allan Kardec, okeyz, somente nao fique postando neste blog o que voce interpretar no que ler, ou seja, a tua opiniao sobre o assunto...
100+
[]s
força sempre!!!
ate +++
RedDevil
"somente nao fique postando neste blog o que voce interpretar no que ler, ou seja, a tua opiniao sobre o assunto..."
Neste blog eu comento o que quero sobre o que quero.
Se vc não quer ler, vc não lê. Tá?
Mint: acho que já li algumas das tuas memórias relacionados com a frio, o suficiente para compreender, sim.
Gostaria de acrescentar a este post que consegui livrar-me de tomar banho com aranhas e centopeias. Ia dizer algo como "consegui o privilégio de já não ser obrigada a tomar banho com aranhas e centopeias...." quando fiquei a pensar. Privilégio? Não. Aposto que 99,99% das pessoas de todo o mundo nunca foram obrigadas a passar por tamanha experiência. Não falo dos que não se importam de conviver com tais bichos (porque os há!), falo de ser obrigado a isso apesar de ser, para mim, uma experiência de terror!
Acho que esse pequeno inferno foi feito para MIM em especial, por eu ter sido tão "boazinha" na/s outra/s vida/s. (Por alguma razão acredito na reencarnação) Mas como me atinei e portei-me bem, Deus aliviou-me a pena.
Obrigada Deus, eu já não aguentava mais!
(Sob pena de enfurecer o Inquisador que postou acima... :P Isto desde a Idade Média não mudou assim tanto.)
E agora tenho mesmo de ir trabalhar.
O que eu já me ri graças ao inquisidor. Não fique postando, cara Katrina, que este blog nem é seu nem nada e você não sabe o que é ser um lutador (será de de sumo? de Muay Thai? Vale tudo?) enfim, ainda bem que já não há PIDE...
Tá com tudo, Mint! Cê viu? Não é só tu que tem comentário barra pesada não!
Já me criticaram por quase tudo o que eu fico postando, e cortando às postas quando é preciso, mas um chega para lá devido à religião é uma estreia, cara!
E agora aqui de volta ao nosso cantinho da língua de Camões, olha que há muita coisa que eu até gostaria de comentar e não posso por risco de ser identificada e perder o emprego. Há censura, sim, e não é preciso a PIDE. Agora a PIDE é outra.
Sempre pensei que a malta nova, quando abrisse os olhos, fizesse uma nova revolução, mas as coisas andaram tanto para trás que aqueles que podem, em vez de ficar e lutar, emigram. Estamos outra vez na situação dos anos 60. E sem tropa que nos valha!
É bem verdade. Tanto que já pensei nisso, também eu me contenho para não abrir demais a boca... por isso é que no fundo acho que optei por um blog de futilidade, sempre vou arejando a tola e não corro o risco de me espraiar demais em assuntos que não interessam a quem não tem cérebro. Ou a nós, os que ainda conseguimos ver para lá do sapatinho louboutin...
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