Não encontro nada de assustador neste conto, apenas uma tristeza tão grande que foge à própria assinatura do autor. Se em Lovecraft as tragédias se prendem ao sobrenatural ou ao bizarro, como em "The Outsider", aqui trata-se apenas de uma viagem psicológica pelas veredas da loucura. Não sei se os mais sensíveis não verterão uma lágrima.
Iranon é um jovem poeta que anda a correr mundo à procura da sua cidade de Aira, terra de luz suave e cheia de canções, de que está exilado mas onde um dia será rei como o seu pai. Pelo caminho sofre a troça e a incompreensão dos que escutam as suas canções, tendo por único amigo um rapaz que partilha dos seus sonhos e o acompanha durante largos anos. A parte misteriosa é pois esta: enquanto o amigo naturalmente envelhecia, Iranon permanecia sempre jovem. Nem quando este morreu, de velhice, Iranon desistiu da demanda de Aira. Nunca acreditou quando lhe diziam, ao perguntar direcções a quem encontrava na sua longa jornada, que ninguém tinha ouvido falar de Aira nem das suas gentes. Uma noite, porém, cruza-se com um velho pastor que guardava gado perto de um pântano de areias movediças, e este parece de facto recordar-se de algo. Lembrava-se de um rapaz, um pedinte, que conhecia desde criança, e que cantava estranhos poemas sobre uma cidade de Aira que não existia senão na sua cabeça. Sim, Lembrava-se, e o seu nome era Iranon. Nessa noite, Iranon envelheceu de repente e afogou-se no pântano.
That night something of youth and beauty died in the elder world.
The Rats In The Walls
O último descendente dos de la Poer, família emigrada na América onde adoptou o nome Delapore, ascendeu a uma considerável fortuna que dedicou, já depois de viúvo e tendo perdido o seu único filho na guerra, a reconstruir o castelo dos antigos barões na velha Inglaterra. O castelo, situado num precipício, era considerado um monumento onde se cruzavam vários estilos arquitectónicos desde o pré-romano ao medieval e tinha até sido importante objecto de estudo por eminentes autoridades na matéria, razão porque o proprietário decidiu restaurá-lo em todo o seu esplendor excepto no interior, onde não poupou nenhum dos luxos mais modernos. Nesse empreendimento foi muito auxiliado por um amigo do seu filho, Capt. Norrys, também veterano de guerra, que, sendo nativo do local, parecia conhecer mais sobre a antiga família de la Poer e a sua propriedade do que o próprio descendente na América. Delapore apenas sabia que o seu primeiro avô radicado no novo continente tinha abandonado o castelo em circunstâncias estranhas depois de assassinar toda a família. Um único envelope que continha o segredo, e provavelmente a resposta ao mistério por detrás do massacre, tinha sido passado de geração em geração ao longo dos anos, mas foi destruído por um incêndio antes que o seu pai o pudesse abrir. E assim se perdeu o legado. Mas Delapore depressa se apercebeu de que não apenas o castelo como ele próprio eram ostracizados pelos camponeses e de que tinha vindo viver para uma casa amaldiçoada cuja fama persistia, apesar dos séculos, de ter sido um ninho de "bandidos e lobisomens". No mínimo, o local onde agora se erguia o castelo tinha servido de palco desde tempos pré-históricos a rituais sangrentos, associados depois aos druidas, e a seguir, durante o Império Romano, relacionados com a deusa Cybele, mas o certo é que sempre ali teria existido uma seita praticante de sacrifícios humanos. Vexado, o sóbrio homem de negócios quase que fez por último objectivo de vida não apenas reconstruir a moradia como limpar o bom nome da família. Assim que as obras ficam prontas, instalou-se definitivamente no castelo, acompanhado de "nove criados e sete gatos". Destes sete felinos, o mais velho, Nigger Man, era um gato preto que tinha trazido de Boston e nunca deixava o dono. Foi também este que pela primeira vez detectou ruídos nas paredes do quarto, barulhos que Delapore imediatamente identificou como ratos.
Um pouco perplexo por ter uma infestação em tão pouco tempo, o prático americano fartou-se de colocar ratoeiras que apareciam desarmadilhadas mas vazias, como se os ratos fizessem pouco dele. Foi esse o seu embaraço inicial. Não sendo dado a superstições, começou a ficar deveras preocupado quando percebeu que só ele e os gatos da casa conseguiam ouvir os roedores. Ninguém mais os ouvia, nem os criados nem o seu amigo Capt. Norrys, que foi chamado a passar uma noite no castelo, e a partir do momento em que se apercebeu disso até Delapore os deixou de ouvir, passando antes a ter pesadelos com fantasmagorias de que não se recordava ao acordar. Na opinião de um dos empregados, dado aos fenómenos psíquicos, já não os ouvia porque "certos poderes" já lhe tinham feito chegar a "mensagem".
[Este pormenor recorda-me de certa passagem de "Shinning, do outro mestre Stephen King.]
Mas a noite que Capt. Norrys passou no castelo não foi perdida. Juntos, encontraram na parte mais recôndita da cave um alçapão, porventura um túnel, que tinha passado despercebido aos estudiosos que visitaram o castelo. São chamadas autoridades arqueológicas ao local e os vastos subterrâneos são abertos pela primeira vez. É caso para dizer que Delapore descobriu literalmente os esqueletos da família. E é também caso para dizer que afinal a família de la Poer era de facto um ninho de "bandidos e lobisomens" porque a última coisa que o venerável ancião faz, antes de ser internado num hospício, é devorar o seu amigo Capt. Norrys, aparentemente com a cumplicidade do seu gato Nigger Man, mas dizendo sempre que foram os ratos.
Cartoon do site Unspeakable Vault (Of Doom)
The Shunned House
Devo confessar que nas minhas leituras de Lovecraft já me preocupava não encontrar uma história de vampiros, se bem que esta não é nem a melhor que já li nem o melhor de Lovecraft, mas vampiros são sempre vampiros e vampiros são sempre deliciosos, seja lá em que forma se manifestem.
"The Shunned House" relata, como o nome indica, os acontecimentos que levaram a que determinada casa de Providence -- à frente da qual a fantasia de Lovecraft coloca o seu mestre Edgar Allan Poe a passear sem nunca se ter apercebido de nada -- fosse lendariamente evitada por toda a gente.
A casa não era exactamente "assombrada". Dizia-se que era uma casa de "má sorte" por tanta gente lá ter morrido, por ser propícia à loucura, por nenhuma criança viva lá ter nascido. Atribuía-se o facto à humidade, aos estranhos fungos que cresciam na cave (e provocavam um persistente cheiro pestilento), e possivelmente à má qualidade da água bombeada do poço. Nenhuma das mortes parecia violenta. Pelo contrário, os habitantes pareciam apenas "definhar" de causas naturais, depois de tomados pelo delírio ou loucura senil que os levava, nas últimas fases da doença, a gritar coisas estranhas sobre algo que os observava na escuridão ou a tentar sugar o sangue dos próprios familiares. Não era uma maldição dos Harris, família que ergueu a casa, porque depois de uma série de mortes estes acabaram por mudar-se e alugá-la a inquilinos, o que se tornou cada vez mais raro porque estes eram também afligidos pela "insalubridade" do local e as mortes não paravam de se suceder, a ponto de o município mandar fumigar a casa, até que esta acabou por ser completamente evitada. O que quer que fosse, estava lá e continuava lá. O último herdeiro dos Harris pensava em deitá-la abaixo e construir ali um bloco de modernos apartamentos quando interveio um vizinho interessado nas lendas associadas ao local que se propôs a investigar mais. Não lhe era estranha a teoria de vampirismo, mas até ao momento não tinha bases para demonstrá-la. Sabia-se que o terreno tinha servido de sepultura aos os primeiros proprietários, séculos atrás, mas todas as campas tinham sido transladadas para o novo cemitério da cidade muito antes de a casa ter sido construída pelos infelizes Harris. O que a história local tinha abafado foi a existência dos Roulets, os primeiros donos do lote, franceses fugidos da repressão religiosa e com fama de feiticeiros, que também ali tinham sepultado os seus mortos. Da mesma forma inesperada que apareceram, os Roulets, extremamente odiados por todo o lado onde passavam, tinham sido obliterados por um motim que pôs fim à família. Saberiam os seus beligerantes vizinhos que um dos Roulet tinha sido acusado de ser lobisomem, ainda em França? O certo é que a cidade os tinha apagado dos registos durante séculos e agora o investigador estava convencido que tinha descoberto a causa. O restante é por demais à Van Helsing para repetir, mas diremos apenas que Lovecraft resolveu "a coisa" com ácido sulfúrico em vez de estacas de madeira. E a casa não voltou a ser de "má sorte".
Such a thing was surely not a physical or biochemical impossibility in the light of a newer science which includes the theories of relativity and intra-atomic action. One might easily imagine an alien nucleus of substance or energy, formless or otherwise, kept alive by imperceptible or immaterial subtractions from the life-force or bodily tissue and fluids of other and more palpably living things into which it penetrates and with whose fabric it sometimes completely merges itself. It might be actively hostile, or it might be dictated merely by blind motives of self-preservation. In any case such a monster must of necessity be in our scheme of things an anomaly and an intruder, whose extirpation forms a primary duty with every man not an enemy to the world's life, health, and sanity.
What baffled us was our utter ignorance of the aspect in which we might encounter the thing. No sane person had even seen it, and few had ever felt it definitely. It might be pure energy--a form ethereal and outside the realm of substance-or it might be partly material; some unknown and equivocal mass of plasticity, capable of changing at will to nebulous approximations of the solid, liquid, gaseous, or tenuously unparticled states. The anthropomorphic patch of mould on the floor, the form of the yellowish vapour, and the curvature of the tree-roots in some of the old tales, all argued at least a remote and reminiscent connection with the human shape; but how representative or permanent that similarity might be, none could say with any kind of certainty.
The Thing on the Doorstep
Embora o tema do roubo de identidade seja recorrente em toda a sua obra, a história que Anne Rice refere em "The Tale of the Body Thief" é uma das preferidas dos leitores de Lovecraft. Talvez porque seja o conto mais conseguido ou consistente, ou, atrevo-me a palpitar, porque a personagem principal é uma "mulher", coisa rara em Lovecraft. E a história é semelhante a outras do género: uma tal de Asenath seduz um jovem académico com pouca experiência de vida mas um grande fascínio pelo oculto, e acaba por lhe roubar o corpo. Afinal, descobre-se, o ser que estava dentro de Asenath nem sequer era uma mulher, mas o seu pai, poderoso feiticeiro, que vivia há sabe-se lá quantos séculos, de corpo em corpo, expulsando dele o seu hospedeiro, numa espécie de vampirismo de almas que ia abandonando em corpos alheios. A própria Asenath, sua filha e descendente da gente-peixe de Innsmouth, estava há muito aprisionada e deixada para morrer no corpo velho do pai.
Sórdido, insidiosamente incestuoso e homossexual, este conto ergue-se a patamares que o próprio Lovecraft talvez não tenha congeminado mas que qualquer mente tortuosa reduz a isto: possui a filha e casa-se com um homem para lhe roubar o corpo. Lovecraft no seu melhor e a precisar urgentemente de ser descoberto como merece.
H. P. Lovecraft
(1890-1937)
3 comentários:
Confesso que ainda iniciei a leitura mas não fui muito além do primeiro cartoon. Ufa, isto não está um blogue, está um tratado sobre H.P. Lovecraft e a Literatura de Horror...
Das duas uma, ou lês devagar... ou a minha escrita é uma grande seca.
Se eu fosse dado a 'leituras' dicotómicas da realidade tinha de dizer-te que não leio nem devagar nem depressa demais... E a ilação seria, nesse caso, óbvia. No entanto, volto a frisar, não sou dado a interpretações dicotómicas das 'leituras' que faço e assim as ilações têm de ser outras...
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