O roubo de identidades é um tema recorrente em Lovecraft. Diz-se que os escritores (até os melhores) escrevem sempre a mesma história de maneiras diferentes. "O Estranho Caso de Charles Dexter Ward" faz parte da obsessão.
A princípio, Charles Dexter Ward era apenas um vulgar estudante com um interesse particular em antiguidades e uma especial predilecção por reconstituir a árvore genealógica da família. É assim que descobre a existência de um tetravô desconhecido, cujos registos tinham sido estranhamente apagados de todos os documentos oficiais da região. Através de cartas particulares, contudo, e da memória de gente mais velha, Charles começa a aperceber-se que havia suspeitas sombrias sobre o seu antepassado falecido há 150 anos. Parece que o velho senhor viveu mais de cem anos mantendo sempre a mesma aparência. Havia no seu tempo a desconfiança generalizada de era por artes de vampirismo que o ancião de 100 anos parecia ter apenas 50. Era também conhecido por ser alquimista, e corria o boato da sua prática de bruxaria pois tinha fugido para Providence aquando dos julgamentos de Salem. O facto é que depois da sua morte, apesar de ser um homem muito rico e temido na comunidade, todo e qualquer registo do seu nome tinha sido erradicado e a própria viúva voltou a usar o nome de solteira, muito provavelmente porque o tetravô teria sido morto por um destacamento de "homens bons" depois da descoberta de horrores praticados nas catacumbas secretas debaixo da quinta onde a sinistra personagem mantinha o seu laboratório.
Entusiasmado pela descoberta, Charles embrenha-se na investigação e consegue mesmo descobrir a casa dos tetravós, onde encontra um grande painel com o retrato do proprietário e importantes papéis num esconderijo na parede. O que mais surpreendeu o jovem é que o retrato do antepassado era tão parecido com ele que parecia estar a ver-se ao espelho, razão pelo que o pai de Charles compra imediatamente o quadro e o leva para casa como presente para o filho. [Uma referência à obra de Oscar Wilde, "O Retrato de Dorian Gray"?...]
A partir daí, Charles fica obcecado com os estudos do seu antepassado, a ponto de se tornar ainda mais reservado e reclusivo do que era, sempre enfiado nos escritos e livros do tetravô, a ponto de montar no sótão um laboratório onde começou a fazer experiências que não partilhava com ninguém e que assustavam os pais e os criados da casa. Finalmente, decidiu abandonar os estudos universitários alegando "que estava prestes a atingir um conhecimento tão importante que escola nenhuma lhe poderia proporcionar". Os pais acharam que o filho enlouquecera e chamaram o médico de família, mas a este pareceu que Charles estava obcecado mas não louco. Quando atingiu a maioridade, Charles faz o mesmo que o seu tetravô teria feito no século XVII ou XVIII, uma longa viagem pela Europa que o levou de Londres à Transilvânia e onde conheceu outros alquimistas de importância.
Anos mais tarde, de regresso à América, desgastado e irreconhecível, Charles muda-se de casa dos pais para a mesma quinta onde o seu antepassado teria levado a cabo as suas experiências mais macabras, e explica ao médico de família que estaria cada vez mais próxima a "grande revelação" que iria revolucionar "todo o conhecimento do mundo, do sistema solar e do universo" (ou algo que o valha). Entretanto, o médico repara que o retrato do sinistro tetravô, devido à mudança ou à idade, tinha-se desintegrado e já não passava de um monte de pó caído no chão. Ainda assim, o clínico não acha que Charles tenha enlouquecido, embora agora este se tenha tornado um autêntico prisioneiro do seu trabalho no laboratório e chamado a si dois ajudantes: um português de quem Lovecraft diz muito mal [no mínimo chama-lhe "suspeito" só por ser "mulato", o que é habitual em Lovecraft] e uma criatura sinistra cuja cara anda sempre escondida debaixo de barba e óculos escuros que se apresenta como Dr. Allen e é notavelmente parecido com o antepassado de Charles.
O que aconteceu então? Tal como o antepassado, Charles tinha descoberto o processo químico para fazer, literalmente, os mortos renascer das cinzas, ou dos "sais" dos seus cadáveres, e a primeira coisa que fez foi levantar o corpo do seu tetravô. De facto, este já tinha feito planos para o que o seu tetra-neto descobrisse a sua campa, o seu retrato... e as suas anotações. E quando Charles acaba por ser internado, vítima de distúrbios de personalidade inexplicáveis, o médico de família tem todas as dúvidas de que o homem no hospício seja de facto o jovem estudante... ou o seu longínquo avô, levantado dos mortos e com as mais maléficas intenções de ocupar o lugar do pobre Charles Dexter Ward.
Um conto fascinante entre outros dois semelhantes: "The Thing on the Doorstep" e "Herbert West: Reanimator".
Cool Air
Um jovem escritor (diz-se apenas que escreve para uma revista) é obrigado a viver num edifício onde aluga um quarto junto com muitos outros hóspedes de fracos recursos. Neste conto, tenta explicar a sua estranha fobia a correntes de ar relatando o que se passou nesse prédio, cuja senhoria era espanhola ("quase barbuda", salienta Lovecraft) e onde vivia, no quarto andar, o excêntrico Dr. Muñoz, de quem esta dizia já ter sido "grande no seu tempo". Mas agora o médico reformado Dr. Muñoz era ele próprio afligido por uma estranha doença que o obrigava a manter o seu quarto sempre arrefecido a temperaturas próximas de zero através de uma máquina concebida para o efeito. Com o passar do tempo, repara o jovem escritor, a condição do velho médico ia-se agravando e o paciente, desesperado, tentava por tudo fazer baixar ainda mais a temperatura, ao mesmo tempo que tomava estranhos banhos gelados e fazia um uso peculiar de ervas aromáticas usadas nas múmias egípcias. Dizia o doutor que tinha declarado guerra à morte, uma afirmação bastante compreensível para um médico, mas algo no seu aspecto e no odor do quarto e na baixa temperatura repugnava ao jovem que, apesar de tudo, o tentava assistir o melhor possível.
Por exemplo, na noite em que a máquina se avariou fez todos os possíveis para encontrar mecânicos que a arranjassem e lhe substituíssem o motor enquanto mantinha o paciente abastecido em banhos de gelo, mas o dia estava quente e a reparação tardava. Quando entraram no quarto de onde o médico já não respondia, encontraram em seu lugar uma papa fétida e um manuscrito trémulo em que o Dr. Muñoz explicava a razão de todos os seus esforços. Dizia que a vontade sobrevivia ao corpo, e foi assim que se manteve vivo durante 18 anos após a morte, à custa de mumificação e baixas temperaturas, até à noite tépida de outono em que a máquina finalmente falhou...
Este é um conto que não resiste à implacável verdade da ciência pois se o Dr. Muñoz estava lúcido não podia ter havido morte cerebral, o que estraga o condimento que apimenta a história... ou será que não? Talvez no tempo de Lovecraft não se conhecessem conceitos como "morte cerebral" e se pudesse levianamente atribuir a existência à "vontade", mas nos dias de hoje contos como este colocam-nos sérias questões pois nunca foi possível viver tanto tempo em coma com ajuda artificial. Não posso deixar de querer imaginar (mas não consigo!) o que Lovecraft não escreveria sobre isso.
Dagon
Na sua nota de suicídio, em que declara estar prestes a atirar-se da janela, um ex-prisioneiro da Primeira Guerra Mundial relata como consegue evadir-se do navio alemão que o capturara num pequeno salva vidas. Perdido e à deriva algures no hemisfério sul, tinha esperança apenas de encontrar um navio que o salvasse do naufrágio quando a exaustão lhe faz perder os sentidos. Quando volta a si, apercebe-se de que o mar tinha desaparecido e tanto ele como o barco estavam agora em terra firme mas pantanosa. Só havia uma explicação: durante o desmaio, alguma erupção vulcânica teria projectado para fora este pedaço de terra arrancado ao fundo do mar, e tão grande era a sua extensão que o náufrago teve de o percorrer a pé durante vários dias em busca de encontrar de novo o mar. É nesta caminhada que descobre uma montanha, e que, atrás dela, se abria um enorme abismo cheio de água. À luz da lua cheia, o que o mais o surpreendeu foram as esculturas na rocha, que pareciam ser provas de um culto pré-histórico e desconhecido a gigantescos deuses do mar, ou assim pensava o perplexo observador. Pensava, porque quando viu uma dessas enormes criaturas, toda ela barbatanas e escamas, sair do abismo e adorar o obelisco erguido em honra dos deuses do mar, não teve mais dúvidas e refugiou-se para sempre no vício da morfina para não se recordar do que tinha visto com os próprios olhos, até ao momento em que decide pôr termo à vida.
Lovecraft chama "Dagon" ao deus-peixe das profundezas adorado pelos homens-peixe em "The Shadow Over Innsmouth".
Cartoon do site Unspeakable Vault (Of Doom)
Ex Oblivione
Uma página de prosa poética da melancolia mais profunda raramente expressa em Lovecraft, este é um meio conto, meio poema, em que um sonhador se aventura por um maravilhoso vale encantado onde encontra uma porta que decide atravessar para fugir à realidade. Como toda a poesia, esta pode ser interpretada de muitas formas mas na minha modesta opinião do que aqui se fala é da própria morte:
Some of the dream-sages wrote gorgeously of the wonders beyond the irrepassable gate, but others told of horror and disappointment. I knew not which to believe, yet longed more and more to cross forever into the unknown land; for doubt and secrecy are the lure of lures, and no new horror can be more terrible than the daily torture of the commonplace.
Facts Concerning the Late Arthur Jermyn and his Family
Não sei se todos os leitores de Lovecraft concordam comigo mas esta história parece-me mais cómica do que trágica, se calhar por causa de uma protagonista "portuguesa" que me provocou algumas gargalhadas tão silenciosas quanto permite a minha falsa indignação. Preparem-se, pois, lusitanos, porque de todas as alusões ao povo português na obra de Lovecraft esta é de facto a mais mázinha.
Começa-se por dizer que Arthur Jermyn se auto imolou pelo fogo quando descobriu a verdade sobre a sua família. O que poderia ser tão grave? Pelos vistos, uma ascendente portuguesa, que o seu antepassado, Sir Wade, grande explorador de outros séculos, teria conhecido em África. Diz-se que esta filha de pai português, comerciante, casara com o americano, mas desgostada dos hábitos anglo-saxónicos teria permanecido reclusivamente fechada em casa e nunca teria sido vista por ninguém, até à viagem que fez com o marido de volta a África onde viria a falecer.
[Até aqui nada de muito grave ou insultuoso, mas desta "portuguesa" fala-se mais tarde.]
Diz-se que a loucura sempre existiu na casa dos Jermyn desde o grande explorador Sir Wade, que com um copo a mais não se cansava de repetir que tinha vivido numa cidade perdida no coração de África: as ruínas de civilização magnífica e avançada agora ocupadas por uma sociedade de grandes símios. Acabou por morrer num manicómio sem mostrar grande desgosto por ser separado do filho. O filho, nascido da união com a misteriosa esposa, ainda veio mais afectado. Philip Jermyn era uma criatura corpulenta mas ágil, de feições algo estranhas apesar da parecença com o pai, e uma predilecção por subir às árvores. Casou com uma mulher de ascendência cigana mas depressa a abandonou para se tornar marinheiro. Certa noite, ao largo do Congo, desapareceu na selva e nunca mais voltou.
Deixou um filho que, certamente saído ao avô, se distanciou intelectualmente do pai. Apesar de algumas desproporções fisionómicas, Sir Robert era um homem elegante e inteligente e tornou-se um grande estudioso. Foi o primeiro a debruçar-se sobre o grande manancial de objectos preciosos que o avô trouxera de África e a conquistar um nome na comunidade científica da etnologia da altura. Casou e teve três filhos, sendo que o mais velho e o mais novo eram tão desmesuradamente feios que eram guardados da vista do público, o que causava grande desgosto ao casal. O filho do meio, Nevil, que parecia tão desmiolado como o avô Philip, e de aparência igualmente desagradável (mas não tanto como os irmãos), acabou por fugir com uma bailarina de má vida e só voltar a casa depois de enviuvar, trazendo com ele um único filho, Alfred. Devido a estas contrariedades que afectavam a estatuto social da família, Sir Robert embrenhou-se ainda mais nos seus estudos africanos e chegou mesmo a visitar o continente em duas expedições. Os mitos que ouviu por lá e os desgostos pessoais, diz-se, foi o que o levou a perder a cabeça, pois depois de tomar conhecimento de uma cidade magnífica dominada por macacos que adoravam um "deus branco", assassinou, nesse mesmo dia, o amigo que o informara do facto, e os seus três filhos, tentando matar-se de seguida. Não o conseguiu, nem conseguiu matar o neto, como pretendia, acabando por morrer num hospício. O que teria levado a tamanha loucura um homem até então perfeitamente lúcido e equilibrado?
Ninguém o poderia saber, muito menos o seu neto Alfred que acabou por sair ao pai. Casou e constituí família, deixando um único filho, Arthur, mas também enveredou por abandonar a esposa para ir viver com um circo. Tinha uma especial afinidade com os animais, e uma predilecção por um gorila com quem se "entendia" muito bem e o qual treinou para um espantoso número que maravilhava as multidões... mas um dia houve uma "briga", homem e animal envolveram-se numa luta, e quase nada restou do corpo de Alfred Jermyn.
Arthur Jermyn, o único filho e último da linhagem, saiu a Sir Wade e Sir Robert. Apesar de ser muito feio e ter os membros invulgarmente longos, Arthur era intelectualmente superior e aproveitou a boa educação que ainda lhe proporcionou a fortuna restante da família. Tornou-se um poeta e um académico e decidiu dedicar-se também aos estudos etnológicos em África que tinham distinguido os membros da família. Tal como Sir Robert, visitou o Congo e procurou sem preconceito vestígios da cidade de falava o seu antepassado, atribuindo-lhe um carácter mitológico e nada mais. Era um homem de letras mas também de ciência, um verdadeiro humanista. Na sua busca, entrevistou alguns chefes de tribos locais mas apenas um lhe falou da misteriosa cidade perdida dos macacos brancos. Segundo a lenda, esta tinha mesmo existido, e os símios que a habitavam adoravam a múmia de uma macaca branca de espécie mais semelhante ao homo sapiens. Há muito que as tribos locais tinham dizimado os macacos, mas o ídolo, símbolo de poder, ainda existia, algures numa tribo africana, e podia ser comprado. O velho chefe africano contou ainda mais. Rezava a lenda que na cidade dos macacos tinha reinado um "deus branco" casado com a princesa macaca, e que ambos tinham tido um filho e abandonado África, mas regressaram e a princesa tinha sido preservada para adoração. Havia rumores de que, mais tarde, este "deus branco", ou o filho de ambos, teria voltado também, se para a mulher ou para a mãe não se sabia a certeza. Arthur conhecia as histórias da família. Talvez não quisesse ver como tudo batia certo com a história do antepassado, o famoso explorador Sir Wade?...
Até que um dia a esperada encomenda chegou a sua casa e Arthur se regou com gasolina e pegou fogo a si próprio perante os criados estupefactos. Os colegas etnólogos conseguiram reconstruir a história: dentro da caixa estava a múmia de uma macaca branca, totalmente símia mas mais semelhante ao ser humano do que os primatas conhecidos. E ao pescoço tinha um medalhão que provava, sem sombra de dúvida, que tinha sido esta a misteriosa esposa "portuguesa" do famoso Sir Wade... que constituíra família com uma macaca.
Cartoon do site Unspeakable Vault (Of Doom)
Continua.
1 comentário:
Excelente visita à obra de Lovecraft. Embora já tenha lido a maioria dos contos em inglês, estou a comprar as edições da Saída de Emergência, que estão lindíssimas e ficam muito bem na estante. E para além disso, as traduções estão decentes.
É pena ainda ser um autor desconhecido para muitos amantes do terror e da ficção científica. Por isso, parabéns pelo teu excelente trabalho!
Um abraço!
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