quarta-feira, 27 de outubro de 2004

Ensaio sobre a cegueira

Não quero de modo algum, com este post, parecer ingrata ou agressiva.
Quero, sim, abrir-vos os olhos.

Já não é a primeira vez que alguém me diz, quando eu falo em depressão, que as criancinhas pobres de África não sabem o que é "depressão". Que no Terceiro Mundo não há depressão.

NÃO HÁ O QUÊ?!?!?

Léon Blois, um escritor francês tristemente desconhecido, escreveu um livro cruelmente realista chamado "A mulher pobre" (La femme pauvre), em que dizia - e muito bem - que os ricos pensam que os pobres não sentem tanto a morte de um filho porque, na sua luta diária pela sobrevivência, não têm tempo para sentir tristeza. Os pobres são mais felizes porque passam o dia a pensar no pão de amanhã. Os ricos, coitadinhos, são infelizes, porque o destino lhes deu tempo livre para pensar e para sofrer. Os pobres, em suma, não têm tempo para sofrer. Ademais, a morte de um filho é um alívio: menos uma boca para sustentar. Logo, a morte de um filho é boa para o pobre.

Esta é a teoria mais nojenta, mais execrável, mais distorcida, que os ricos inventaram para se desculpabilizarem.
Então os famintos de África não estão deprimidos? Já olharam para aqueles olhos? Para dentro do vazio, da apatia, do desinteresse daqueles olhos? Estão todos cegos, meus amigos? Será que não vêem que ali reside não só a depressão como o mais completo, o mais profundo desespero, a total ausência de esperança? As moscas podem pousar nas faces. Não há energia para as enxotar. Já não resta vontade. Já não vale a pena. Estão à espera da morte.

E VOCÊS NÃO VÊEM?
OU NÃO QUEREM VER?
O pior cego é aquele que não quer ver.

Custa-me que palavras destas venham de supostamente pessoas intelectuais e sensíveis. Custam-me que tenham os olhos tão fechados.

Pois eu só vi olhares assim nas fotografias dos recém libertados prisioneiros dos campos de concentração nazis, em pleno processo de choque pós traumáutico. É alegria que vêem nos seus olhos? Não, não é alegria. Mas não deveriam estar contentes, agora que foram libertados?
Estão para além da esperança. Já não acreditam na esperança. Esperam a morte.

HÁ DEPRESSÃO EM ÁFRICA.
HÁ CEGUEIRA AQUI.

1 comentário:

Peculi disse...

Blois é realista tá td dito, Albert Camus tb o era, e no seu livro o estrangeiro, o homem tem uma definição mt estranha, ou mt real, se o preferirem, sobre a vida e a morte. Eu pessoalmente não perderei tempo com filófofos/escritores realistas não se coadunam com a minha visão do mundo! Creio que o romantismo é muito mais interessante!! O niilismo é uma ideia aterradora, um vazio tremendo de que a vida não é nada e nem vale a pena ser viviva"

Deixo um pequeno extracto do último capítulo de "o estrangeiro" :

“Pois bem, morrerei! Mais cedo do que os outros, mas sabem que a vida não vale a pena ser vivida. No fundo, não ignorava que morrer aos trinta, aos setenta anos tanto faz, pois em qualquer dos casos outros homens e outras mulheres viverão, e isto durante milhares de anos. No fim de contas isto era claro como a água. Hoje ou daqui a vinte anos, era à mesma eu que morria[...]”.