Embora tenha tido conhecimento deste filme desde que estreou, e que desde logo me interessou, consegui evitar vê-lo até agora no receio de que os temas tocassem demasiado perto. E na verdade tinha razão. Poucos anos me separam da adolescente Mariana que podia ter sido eu se tivesse tido azar.
Todo o ambiente do filme me traz más recordações, como se eu pudesse estar algures lá dentro. Aquele apartamento de classe média, embora já em 2003, cheira todo a anos 80. Até os pais da miúda cheiram a anos 80, se não a anos 70 ou 60.
Era a altura em que os nossos amigos morriam de overdose antes de poderem sequer morrer de SIDA. Num dia estavam no Bairro Alto, no outro dia eram encontrados mortos na mata de Monsanto. Estes jovens não eram violadores. Estavam sempre demasiado mocados para conseguirem fazer alguma coisa a esse nível e só pensavam na dose seguinte. Mas vou dar de barato que certas misturas os “espertavam”. Foi o que aconteceu a Mariana, de 17 anos, violada na praia de Carcavelos num dia de Março. (Isto também desafia a credibilidade, porque mesmo em Março há sempre gente na praia, nem que fosse a fazer surf e a passear o cão. Mas avancemos.)
Eram outros tempos. Reparem como aquela mãe controla a menstruação da filha pelos pensos higiénicos que encontra no lixo. Privacidade era coisa que não havia. (Será que já há?) O horror daqueles pais era a vergonha de uma filha aparecer grávida em casa. Mariana quer esquecer, mas a gravidez não o permite. O aborto, ilegal, está acima das suas posses. Mariana decide então esconder. Conheci dois casos semelhantes. Uma que conseguiu disfarçar sempre a gravidez, para não enfrentar os pais, até ao dia em que deu à luz. A outra não sei se abortou ou se deu para adopção: o bebé nunca apareceu.
Este filme é a história dos obstáculos que Mariana tem de vencer, sempre calada e em segredo, até ao último dia. E a verdade é que conseguiu lixar o gajo bem lixado. Pode não ter servido de muito, mas vingança é vingança.
Para mim, “A Passagem da Noite” é sobretudo o documento de uma época que eu vivi, com “personagens” com que convivi pessoalmente (outros, claro, mas aqui os personagens são tão genéricos que podiam ser os que conheci).
A nível do filme propriamente dito, talvez seja essa a minha maior crítica. Os personagens são estereótipos. Basta dizer que o tema é tratado como um policial, da perspectiva de um polícia cínico e batido, outro enorme cliché. Mariana tem diálogos de boneca telecomandada: sim, não, quero, não quero. A prostituta não precisava de dizer tantas vezes “porque sou puta”. A gente percebe! O drogado/violador não tem qualquer profundidade. O namorado também não. A amiga também não. Os pais podiam ter saído dos Batanetes, mas sem graça nenhuma.
Evitou-se o drama por todos os meios, e evitou-se mal. Acaba-se o filme com a sensação de que tanto podia ter sido explorado e aprofundado, e não foi. Enfim, fica o documento de época.
13 em 20
domingo, 22 de maio de 2022
A Passagem da Noite (2003)
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