domingo, 28 de março de 2021

Um Olhar do Paraíso, de Sérgio B. Andrade

Filha de uma família nobre e muito rica Isolda perde os pais assassinados pelo seu tio Azim. Ao saber da existência de um homem chamado Jesus que cura doentes e ressuscita mortos ela parte em busca do mesmo com a esperança de ver seus pais vivos novamente. Quando olhar de Isolda se cruza com o do jovem Noah tudo muda em suas vidas. O olhar sobre a vida nunca mais será o mesmo para os dois.


Comprei este livro por causa da sinopse acima. Infelizmente, esta não diz nada sobre o facto de este ser um “romance cristão” ou eu teria pensado duas vezes. Também não reparei nessa informação ao abrir o miolo (preview) do livro. Preferi prestar mais atenção às páginas iniciais (como faço sempre, nem sequer compro sem as ver primeiro) e a escrita pareceu-me decente. Por isso comprei. E apesar de o Romance Cristão não ser dos meus géneros favoritos, também não sou alérgica.
Infelizmente, a escrita decente foi sol de pouca dura. Por muito que me doa, tive de dar apenas duas estrelas no Goodreads devido, sobretudo, ao livro estar tão mal escrito.
Hesitei muito se devia escrever esta crítica. Escrever uma crítica dá trabalho e demora tempo, ambas coisas que este livro não teve. Pergunto-me quantas revisões o autor lhe fez, para deixar passar tantos erros ortográficos e gramaticais e gralhas várias, e se alguma vez pediu a alguém (fora do grupo de amigos e familiares, que nunca são de confiar nestas coisas) que lhe fizesse beta reading. Quanto à segunda pergunta, tenho a certeza de que não. Este livro nunca teve um beta reader exigente e imparcial que dissesse ao autor aquilo que eu vou dizer agora, quando já é tarde porque o livro já se encontra à venda. E eu fui uma leitora muito desiludida, tão desiludida que ponderei largar o livro e só não o fiz porque como escritora e beta reader se aprende muito (bastante) de livros maus. E “Um Olhar do Paraíso” é um livro mau, daqueles que só servem para aprender a não escrever assim.
Fui tirando algumas notas enquanto lia para não me esquecer dos pontos mais graves. Fiz propositadamente vista grossa a algumas utilizações de vocábulos da oralidade do brasileiro, bem como a algumas construções que me pareceram francamente agramaticais, embora recorrentes do princípio ao fim do livro, por não saber se em brasileiro já são aceites como norma “informal”. O autor é brasileiro e a língua é um processo dinâmico. Os beta readers e críticos brasileiros que avaliem. Vou focar-me apenas no que me saltou à vista como notoriamente problemático e ignorar estas diferenças de linguagem de cá e de lá.
Comecemos com as frases agramaticais que não deixam qualquer dúvida, nem na norma brasileira nem na europeia. Um exemplo:
Kirsten é a primeira a sair da água, ela nos guiou até à estrada para dentro da caverna.
Falta aqui qualquer elemento de ligação que torne a frase gramatical. Mas aproveito este exemplo dois-em-um para falar noutro problema constante e incomodativo:
Mudança de tempo verbal do presente para o pretérito perfeito ou imperfeito, ou vice-versa, no mesmo parágrafo sem motivo ou efeito justificado. Ver exemplo acima. Presente, pretérito perfeito, e por aí fora, sempre a saltar entre tempos verbais sem rei nem roque.
Anacronismos de linguagem: “meninos”, “pessoal”, utilização da expressão “déjà vu” (ainda por cima mal empregue porque o que se queria dizer era “Fulano reconheceu um lugar por onde já tinha passado no que parecia um labirinto de corredores”, o que não tem nada a ver com a sensação de déjà vu); anacronismos históricos que precisavam do beta reading de alguém com cultura geral sobre a Palestina dos tempos de Jesus: batatas, coqueiros, vidraças. (Não, meu amigo, não mesmo. Isto são coisas do Renascimento, pós-Descobrimentos.)
Palavras mal escolhidas em geral (como o tal “déjà vu” que nem sequer o era). Repetições desnecessárias e frequentes da mesma ideia e/ou factos que bem cortadas podiam tirar um bom terço ao livro sem se perder nada.
Descrição deficiente do espaço em que ocorre a acção, especialmente em cenas de perseguição e fuga em que o leitor precisa de saber exactamente onde é que os personagens e os perseguidores estão para compreender o perigo que os protagonistas correm nesse momento, sem o qual não se consegue criar um efeito de suspense.
Opção de usar pontuação extravagante nos diálogos (propositada para ser diferente?) que apenas serve para confundir: “_Não se preocupem, meninos, o Homem dos Milagres também estará comigo! Desabafa Kristen com uma voz segura e firme.” (Estes “meninos” são homens, só para explicar aos leitores deste lado do Atlântico.) Como vêem, em vez de travessão (ou mesmo aspas) o autor usa um underscore e o leitor que perceba sozinho onde é que o diálogo acaba e a narração continua. Originalidades destas são engraçadas quando o livro está muito bem escrito. Neste caso, mais valia ter seguido a norma e era menos uma fonte de estranheza a juntar às demais e a distrair-nos da leitura.
Por último, qual terá sido o critério que o autor usou para escolher os nomes dos personagens? (Cá para mim, não houve qualquer critério.) Temos nomes bíblicos, o que só fica aqui bem, temos nomes anglo-germânicos como Noah e Emily e Kristen, temos nomes portugueses como Maria Eduarda (não perguntem), o vilão chama-se Azim (o que nos remete para paragens mais arábicas, mas nesse caso a sua sobrinha Isolda não deveria ter igualmente um nome da etnia do tio, como, por exemplo, Samira?) e nomes brasileiríssimos como Silvaír e Ademar. Tudo isto até "passava" se o livro fosse Fantasia, mas é ficção histórica na Judeia do tempo de Cristo. (Ser um “romance cristão” não iliba desta responsabilidade nem significa que o autor possa escrever o que lhe der na cabeça.) Juro que no princípio ainda me questionei se estes personagens de nomes anglófonos não eram de facto originários de tribos germânicas que estavam na Palestina por qualquer motivo, como o comércio, por exemplo. Não seria impossível, na grande Roma. E nenhum deles (mesmo nenhum deles) alguma vez é visto ou ouvido a falar ou a praticar qualquer ritual hebraico, o que me leva a perguntar se seriam judeus. O livro também não diz, muito menos explica esta salada de nomes. E Kristen? Até em hebraico, Kristen significa “seguidora de Cristo”. Não podia haver uma menina chamada Kristen antes de Cristo. Plot hole, anacronismo, falta de atenção. Nem sei o que diga. Porque não usar apenas nomes bíblicos e em português, já que há tantos? João, Noé (em vez de Noah), Bartolomeu, Mateus, Lucas, Sara, Raquel, Rebeca, Dinah, Ester, Eva. Nomes não faltam.
Vamos lá então à história. E a história é uma confusão de tal ordem que eu teria dificuldade em contá-la a alguém. Noah apaixona-se por Isolda, mas entretanto conhece Emily, amiga de Isolda, que lhe diz que os pais de Isolda foram assassinados pelo malvado tio de Isolda, Azim. Emily foi raptada por Azim por saber demais e Noah tem de a ajudar a escapar de um ritual em que Azim a queria sacrificar aos deuses dele. Resgate feito, decidem ir salvar Isolda. Mas entretanto Isolda já se salvou a si própria e já partiu em busca do Homem dos Milagres. Segue-se um corre-corre para a frente e para trás, daqui para ali, sempre em viagem, em que o movimento dá a entender que está a acontecer muita coisa mas na verdade não acontece nada. Todos os personagens acabam por se encontrar por acaso e não porque se procurassem uns aos outros. Fiquei perplexa porque Emily quer tanto salvar Isolda, com quem vive no palácio desta, mas nunca passa pela cabeça de Isolda que Emily desapareceu e que devia igualmente procurar por ela. Só pensa em pedir a Jesus que lhe ressuscite os pais, a amiga que se desenrasque. Grande amiga, sim senhor.
Sempre que há apuros, um milagre de Jesus, à distância, acaba por salvá-los no último momento. Teria sido melhor que os personagens se tivessem conseguido salvar a si próprios mais vezes sem tanta intervenção divina. Compreendo que isto faça parte de um “romance cristão”, mas quanto mais milagres (e ressurreições) mais os embaratece.
De milagre em milagre, conseguem finalmente encontrar Jesus, já quando este é preso e crucificado. Admito que foi a parte mais empolgante do livro, mas convenhamos que não foi por mérito do autor. Esta é a história mais lida no mundo e já foi escrita há 2000 anos. O autor apenas a transcreve.
Se o autor me está a ler, como escritora também sei o que isto custa ouvir. A minha intenção não é apenas criticar mas antes aconselhar. Este livro podia ser muito melhorado se o autor não for daqueles que responde às críticas com um encolher de ombros e um “eu nem levo a escrita a sério” (como já vários me disseram assim que perceberam o trabalho que implica e o tempo que demora escrever um bom livro).
Primeiro que tudo, este livro devia ser retirado da venda ao público e dado a beta readers. A comunidade brasileira de beta readers funciona e é muito mais vibrante do que a nossa (a portuguesa). Consegue-se arranjar beta readers em brasileiro para qualquer género, é só procurar. Depois, é preciso aplicar o que lhe disserem e trabalhar muito este manuscrito. Uma boa investigação sobre o tempo histórico da Palestina de Jesus também faz aqui falta como pão para a boca. Só então o autor pode pensar em voltar a pôr o livro à venda.
Em suma, se o autor quer continuar a escrever, e a escrever bem (ninguém nasce ensinado), devia pôr mais fé no trabalho e menos fé em que a boa escrita lhe caia do Céu. Não é assim que acontece, nem por milagre divino.



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