Tanto a dizer! Como já tinha referido ao fazer a crítica ao primeiro livro desta série, “Christ The Lord Out Of Egypt”, fui daquelas que estremeceu de medo ao saber que Anne Rice estava a escrever a vida de Jesus. E em primeira pessoa, para ser ainda mais controverso.
Este segundo livro veio tranquilizar-me completamente de que Anne Rice adoptou uma postura respeitosa e reverente, recontando os episódios bíblicos da perspectiva de Yeshua como alguém que lá esteve e os viveu. Nada é esquecido, mas tudo é desenvolvido de maneira que nos surpreende como se nem conhecêssemos a história.
O livro começa não com a última mas com a primeira tentação de Cristo: uma rapariga. Yeshua é agora um homem de trinta anos, carpinteiro de profissão, tal como o pai José e os irmãos adoptivos, de mãos calejadas do trabalho árduo a lixar tábuas e assentar chãos em casas mais ricas do que aquela onde mora a sua família em Nazaré. Yeshua tem um sonho com Avigail, a rapariga, sua parente afastada que o ama. Mas Yeshua afasta o sonho com a conclusão: talvez isto não seja algo para o filho de Deus conhecer.
Nesta altura Yeshua ainda não compreende qual é exactamente o seu propósito divino (especificamente, aquilo que tem de fazer), mas sabe que o tem e sabe quem é.
Anne Rice descreve a vida prosaica de Jesus e da sua família alargada, uma família normal da Palestina ocupada por Roma, mas é quando explora personagens extraordinários que a escrita de Anne Rice brilha. Nenhum personagem poderia ser mais extraordinário do que Jesus, Deus encarnado para alguns, apenas divino para outros. Anne Rice transmite-nos esta dimensão divina em Yeshua mas faz-nos ao mesmo tempo empatizar com o homem. Yeshua é acima de tudo um homem bom, um homem decente, a quem não queremos que aconteça mal nenhum.
Quando chegamos à parte de João Batista no Jordão, a minha vontade era gritar à personagem: não vás! Se vais, é o princípio do teu fim! Fica em Nazaré, casa com a Avigail, esquece lá os pecados do mundo que não são culpa tua. Sê feliz porque mereces.
E aqui eu estaria a falar como o Tentador, o que não é nada bom para a minha pessoa.
Por falar em Tentador, mais uma vez o ponto alto do livro é quando este aparece para tentar Jesus após os quarenta dias no deserto. Anne Rice tem experiência a escrever do ponto de vista de diabos, mas nunca fica claro se Memnoch é o diabo ou apenas um diabo. Aqui, sem dúvida nenhuma, é mesmo o Diabo, Lúcifer, Satanás, o tentador do Jardim do Éden. Lúcifer aparece a Jesus fisicamente igual a ele, mas vestido como um rei. Tal como no primeiro livro, existe em Lúcifer um misto de curiosidade, medo e inveja, mas também atracção, que o torna muito complexo. (Este Lúcifer recordou-me o vampiro Armand no seu primeiro encontro com Louis e Lestat. Ou melhor, e mais certo, o vampiro Armand é que terá sido inspirado na ideia que Anne Rice faz do Diabo, o que é completamente natural tendo em conta a personagem.)
Lúcifer não está ali para antagonizar Yeshua nem para o levar a desistir. Lúcifer pensa que Yeshua vai liderar um exército contra Roma e, sendo o Príncipe deste mundo (está na Bíblia), oferece a sua ajuda. Yeshua rejeita-o, é claro, e Lúcifer tem um ataque de cólera:
“Vais amaldiçoar o dia em que me recusaste! Não vais conseguir fazer isto sem mim! Vais morrer numa cruz romana.”
Lúcifer estava enganado quanto ao propósito do homem cujo nascimento esteve rodeado de “maravilhas e sinais”, mas ao dizer isto Lúcifer não está a fazer uma ameaça. Está a deixar um aviso.
O livro termina na altura em que Yeshua já assumiu o seu papel divino e começa a chamar a si os apóstolos. Jesus diz a Pedro: “Segue-me e far-te-ei um pescador de homens”. Mateus diz a Yeshua: “José contou-me os prodígios e sinais que aconteceram quando nasceste. Se me deres permissão, gostava de os escrever”. E escreveu. Gostei muito que o jovem rico a quem Jesus diz “se queres vir comigo, abandona as tuas riquezas e segue-me” não fosse um estranho qualquer como no episódio bíblico. Aqui ainda tem mais peso. E surpreendeu-me o casamento de Canaã, as bodas de outra personagem que nunca me passaria pela cabeça. Não vou revelar para não estragar a surpresa.
Gostei do surgimento da verdadeira Maria de Magdala, possessa, de quem Jesus expulsa os demónios. (Ao contrário do mito popular, Maria Madalena não era prostituta. O mito decorreu da confusão com outra Maria que também seguia Jesus.) É tudo tão bem encadeado que os episódios bíblicos ganham vida sem nunca perderem solenidade. Anne Rice está a superar-se com esta obra.
Ou melhor, estava. Agora que eu estava a gostar mesmo muito da sua interpretação da vida de Cristo, e decidida a ler o resto até ao fim, Anne Rice já anunciou que não vai continuar a série, originalmente planeada para quatro livros, devido à potencial controvérsia que os livros seguintes poderiam gerar.
Compreendo perfeitamente a posição da autora. Qualquer interpretação da vida de Cristo é polémica. Este mesmo livro, onde eu pessoalmente não encontrei nada de desrespeitoso, pode ser encarado como blasfemo por algum fundamentalista só porque Yeshua pensou (e nada mais fez senão pensar) no que seria uma vida normal com Avigail. Noutros tempos, escrever (e ler) um livro destes era caso para sermos queimados vivos na fogueira. Por isso compreendo perfeitamente a posição de Anne Rice de estar farta de lançar pérolas a porcos. Tenho esperança de que ela tenha continuado a série, nem que seja em segredo, para ser publicada postumamente quando já ninguém a puder chatear. É triste, em pleno século XXI, que fundamentalismos religiosos continuem a obstruir a criação artística a ponto de levarem um autor a perder a paciência e a deixar de escrever.
Recomendo muito os dois livros existentes. Lamento não termos os seguintes.
domingo, 24 de janeiro de 2021
Christ the Lord The Road to Cana, de Anne Rice
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