domingo, 10 de janeiro de 2021

A História de Lisey, de Stephen King

Embora conheça a obra de Stephen King através dos filmes, dele só tinha lido "Salem's Lot", publicado em 1975, e não fiquei bem impressionada com a escrita a ponto de querer ler mais. Para um autor competente, mas com personagens bidimensionais, os filmes chegavam muito bem.
Este livro de 2006, “A História de Lisey”, é outra conversa. É outra escrita. É grande literatura. É certo que se passaram 31 anos desde “Salem’s Lot”, e muita evolução como escritor, sem dúvida, mas há aqui uma liberdade de linguagem, de narrativa, até de construção, que só o estatuto permite a Stephen King. Uma editora nunca publicaria este livro a um autor desconhecido, muito menos sendo um livro de “género”. Num livro de Terror espera-se que o autor conte a história decentemente, provoque alguns sustos, e acabe depressa, para consumo rápido. “A História de Lisey” é tudo menos consumo rápido e não é para leitores impacientes ou que gostam de muita acção e muitos sustos.
Mas aos leitores que gostam de boa escrita, de uma estrutura fora-da-caixa, de personagens bem construídos, de uma viagem ao psiquismo de cada um deles, este livro é para vocês.
Começa logo com o tamanho. O formato do livro que li é dos mais pequenos e tem 600 páginas, mas as letras são minúsculas. Isto noutro formato talvez não chegasse às seiscentas, mas andaria igualmente pelas quinhentas e muitas.
Durante um terço do livro não acontece praticamente nada. Lisey é a viúva de um escritor de sucesso, Scott Landon, e dois anos após a morte dele ainda não decidiu o que fazer com o espólio do marido, apontamentos, livros, teses, jornais e revistas, e nem sabe se existe no meio daquela tralha toda um romance inédito. Lisey não é exactamente uma intelectual e nunca acompanhou de perto a obra do marido. Pior um pouco, ela própria admite que nunca gostou muito dos livros dele (Terror, dá-se a entender), e ele sabe disso. Lisey diz a certa altura que “Atracção Fatal” é que é um filme como deve ser que já viu muitas vezes, “nada daquelas tretas suecas com legendas”. Esta admissão diz-nos tudo o que precisamos de saber sobre a personagem. Questionei-me muito por que motivo tinha um intelectual casado com uma pessoa com encanto zero, na minha opinião, e não vou explicitar as conclusões a que cheguei.
Duzentas páginas a ler sobre uma personagem assim é violento. Lisey tem três irmãs (não percebi se são mesmo três ou quatro, era preciso ler de novo, o que não vai acontecer) e as primeiras duzentas páginas são quase só isto, drama familiar entre elas, memórias do marido, a exasperação de Lisey perante os interessados no espólio que ela nunca mais se decide a partilhar. O que nos prende é a maneira como King nos manipula, transformando-a numa narradora não confiável. A certa altura ela começa a falar com o marido. Em pensamentos, ou ouve mesmo a voz dele? E ouve a voz dele porque está a pirular? Lisey é uma mulher de meia-idade, não é nenhuma garota. Pode bem estar a pirular. O que eu não senti dela, nesta fase, foi desgosto. Só consegui sentir desgosto no fim, seiscentas páginas depois. O que me passou dela foi uma mulher banal, sem saber o que fazer à vida sem o marido (não tem qualquer ocupação), e ainda por cima demasiado preguiçosa para arrumar as coisas dele. Dois anos passados!
A primeira coisa que acontece que é digna de meter medo, é certa passagem em que ela julga que o marido possuiu o corpo da irmã, catatónica, para falar com ela. Mas por esta altura já a julgamos tão maluquinha que temos dificuldade em acreditar nisto. Se não fosse um livro de Stephen King nem me passaria pela cabeça que o que estava a acontecer podia de facto ter origem sobrenatural. E não haveria nada de errado nisto. Stephen King tem todo o direito de escrever um drama familiar com uma personagem a perder a sanidade.
Por esta altura também, já no segundo terço do livro, Lisey começa a ser perseguida por um fã obcecado e tresloucado, que a quer obrigar a abdicar do espólio do marido, seja por que meios forem. O fã obcecado é uma imagem de marca de Stephen King (“Misery”) que me faz pensar como é que ele não tem medo de escrever. Outra imagem de marca, infelizmente, é a mulher que vive em função do marido. É que Stephen King também é um homem “antigo”. Cresceu com mulheres a viver em função dos homens na sua vida. Mulheres como Lisey.
O que realmente mete medo é o que acontece lá para o meio, quando sabemos que tanto o pai como o irmão de Scott sofriam de alguma doença e/ou maldição que os transformava em monstros a certa altura das suas vidas. Quase como lobisomens, mas não são lobisomens. Sim senhor, meteu medo, e os leitores de Terror não vão sair deste livro defraudados.
A partir daqui, as coisas tornam-se mirabolantes. Não apenas uma, como várias personagens, têm o “poder” de ir a uma dimensão paralela apenas ao fecharem os olhos e quererem lá ir. Stephen King já escreveu tantos livros que desconheço se a explicação está algures na sua obra prolífica, mas mesmo assim eu acho que uma coisa destas merecia uma explicação aqui. Ficou inexplicado e é pena, porque por aquela altura eu já estava convencida de que estávamos a viver completamente no mundo de fantasia da cabeça de Lisey. Não me teria surpreendido se ela acabasse por revelar que tinha sido ela a matar o marido (o que a tinha levado a pirular), ou que Lisey fosse uma personagem numa história de Scott (o marido também não batia bem da bola), ou que Lisey acabasse no manicómio com todas as irmãs a olharem para ela com piedade, ou outra coisa ainda mais estrambólica. Neste aspecto, fiquei decepcionada com o fim. Pelo menos compreendi o título, e porque é que se chama “A História de Lisey” em vez de só “Lisey”, mas mesmo assim o motivo não me convenceu muito.
“A História de Lisey” vale sobretudo pela escrita e pela estrutura não-linear, complexa, que nos obriga a ir completando o puzzle por nós próprios. Stephen King atinge aqui uma maturidade como autor que até lhe permite ir tecendo comentários sobre o mundo da literatura e da escrita que muito provavelmente só outros escritores vão compreender na sua totalidade. “A realidade é o Ralph” foi uma das que me fez rir para dentro.
Só lamento que a protagonista seja tão desenxabida (sem gracinha nenhuma). Mas a realidade é o Ralph, e as desenxabidas desta vida, e Stephen King retratou-a muito bem.


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