domingo, 6 de dezembro de 2020
Silence / Silêncio (2016)
Que grande filme! 20 em 20.
“Silêncio”, a adaptação do romance homónimo do autor católico Endō Shūsaku, é um regresso de Martin Scorcese ao tema de Deus e da fé que tornaram “A última tentação de Cristo” um filme tão controverso.
Dois padres jesuítas portugueses, Rodrigues e Garupe, partem para o Japão do século XVII onde se trava uma cruel perseguição aos cristãos. Rodrigues e Garupe são informados de que o seu mentor, o padre Ferreira, missionário no Japão, tinha cedido à tortura e apostatado contra a fé cristã, mas não conseguem acreditar e pretendem encontrá-lo nem que para isso tenham de arriscar as suas vidas.
O perigo é muito real assim que põem o pé no Japão. Guiados por um japonês duvidoso, Kichijiro, ele próprio um cristão obrigado a renegar a fé, são acolhidos numa aldeia de pescadores tão devotos como miseráveis, que querem acima de tudo a presença dos padres para se poderem confessar e baptizar as crianças, que dão mais valor do que deviam aos símbolos tangíveis da fé: um crucifixo verdadeiro (em vez das cruzes de palha improvisadas), as contas dos rosários que os padres trazem com eles. O próprio Rodrigues faz esse comentário, é como se para os nativos a fé não fosse algo de abstracto, mas sim algo que podem praticar todos os dias e segurar nas mãos.
As autoridades japonesas consideram a religião cristã perigosa (nunca é explicado directamente porquê, mas fiquei com a ideia de que na sociedade feudal do Japão a religião oficial era mais uma maneira de controlar as pessoas e que uma seita diferente poderia potencialmente acarretar o risco de rebelião) e querem esmagá-la por todos os meios necessários. Conhecedores do seu povo, pedem aos suspeitos que pisem uma imagem de madeira com a representação de Cristo ou de uma cena cristã. Não o fazer significa uma morte atroz para os cristãos: escaldados com água a ferver, queimados vivos, afogados. Uma verdadeira reprodução do que significava ser cristão nos primeiros séculos depois de Cristo, os dias dos apóstolos e dos mártires. Pelo menos é assim que a fé ardente dos jovens padres encara a provação que os espera, como se fossem eles próprios uma espécie de apóstolos, em que o martírio é a maior “honra” concedida a um missionário.
Isto é na ingenuidade inicial, mas após verem a realidade das mortes e das torturas dos pobres pescadores que os tinham acolhido, os dois padres começam a vacilar. “Eles querem que a gente pise”, queixavam-se os pescadores, voltados para os padres como se esperassem deles a absolvição pelo que tinham de fazer. “Pisem! Pisem!”, diz-lhes Rodrigues, o primeiro a adoptar o pragmatismo, mas Garupe contradiz: “Que dizes? Não podem!”
Mais tarde Rodrigues e Garupe são separados, e quando Rodrigues o torna a encontrar (embora nunca cheguem a ter oportunidade de falar) tudo leva a crer que Garupe se tornou um pragmático também.
Este filme está carregado de cenas de tortura muito perturbadoras e é necessária preparação mental para o ver. Mesmo assim, a câmara mantém sempre uma certa distância do que está a acontecer, como se Scorcese nos estivesse a dizer que o importante não é a brutalidade e a repressão, o importante vem depois.
Depois de ver tanta crueldade, o padre Rodrigues começa a ter dúvidas. Deus, que devia amar os seus fiéis, não responde aos seus gritos de agonia. Tudo é silêncio. Será que Deus se importa? Será que Deus sequer existe? Nada responde ao padre Rodrigues senão mais gritos, seguidos do silêncio ensurdecedor de Deus.
“Silêncio” é um filme que levanta mais perguntas do que respostas. Da mesma maneira que os cristãos acreditam sinceramente que o Cristianismo é o único caminho para a salvação, também as autoridades japonesas acreditam que deixar propagar uma religião tão intransigente é uma ameaça à estabilidade social do país. Se há uma maneira aconselhável de ver este filme, eu diria que não é pelo prisma dos japoneses malvados que matam cristãos, mas pelos resultados da intolerância de parte a parte. Rodrigues acaba por perceber que o mundo não é tão a preto e branco como a fé o fazia crer, que é nas zonas cinzentas que o homem mais se confronta com Deus e com a sua própria natureza.
Não tenho nada de negativo a dizer sobre este filme, mas fiquei surpreendida que a identidade portuguesa dos protagonistas não tivesse sido mais explorada. Não que seja o importante, e é por isso que não é exactamente uma crítica, apenas uma observação. Nunca vemos nada que identifique Rodrigues e Garupe (e Ferreira) como portugueses, apesar de o serem. Podiam ter sido espanhóis ou italianos que não tinha relevância nenhuma. Os únicos vestígios de português que aparecem no filme estão na linguagem dos nativos, que adoptaram palavras portuguesas para expressar a fé cristã, como “paraíso” (mal pronunciado) e Deus-u. Gostaria de ter visto isto muito mais explorado, até porque nos interessa.
Por exemplo, porque é que os jesuítas portugueses parecem tão chocados com as torturas japonesas? Acaso nunca tinham visto um Auto de Fé da Inquisição? Não deviam já estar habituados ao horror? Ou, para eles, se fossem heréticos a sofrer não fazia mal nenhum, porque o fogo até lhes poupava as penas no Inferno? Isto nunca é abordado, mas basta ir às caixas de comentários das críticas a “Silêncio” para se perceber que filmes destes ainda fazem todo o sentido. É tanto o ódio, hoje no século XXI, entre ateus e cristãos fundamentalistas, que só falta mesmo acenderem as fogueiras.
Quanto a algumas críticas de que o filme é demasiado longo (e é um filme comprido), só tenho isto a dizer: por mim, via três temporadas desta história. Houve ali muitos personagens que não puderam ser mais desenvolvidos, muitos aspectos culturais a aprofundar, muita política a explicar. Era bem caso para fazerem uma série onde tudo isto pudesse ser detalhado, incluindo a identidade portuguesa dos protagonistas.
20 em 20
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