domingo, 23 de agosto de 2020

Atlantis (2013–2015)


Atlantis” foi escrito pela mesma gente que criou “Merlin” e, para não destoar, é igualmente mau. Menos mau do que “Merlin” pela única razão de que só durou duas temporadas e foi logo cancelado porque a BBC não quis dar mais pão a malucos. Eu pergunto mesmo como é que deixam estas pessoas escrever para a BBC?... Cunhas, só pode. Tanta incompetência não se explica de outra maneira.
Mesmo assim, custa-me perceber como que é coisas destas acontecem (ou alguém as deixa passar) a um nível profissional, numa cadeia de televisão de prestígio. Os problemas começam logo no primeiro episódio. Jasão é um jovem dos nossos dias que se mete num submarino para investigar o local onde o barco do pai dele naufragou. Aparentemente, Jasão tem dúvidas de que o pai esteja morto, ou algo assim, porque só passámos cinco minutos com isto. Quando estava no fundo do mar, uma luz (portal?) suga-o de repente e Jasão acorda numa praia, nu da silva, que já é uma praia de Atlantis. É a Atlântida, mas até me custa chamar Atlântida àquela cidadezinha perfeitamente banal da Antiga Grécia, a lembrar Creta. Imediatamente, Jasão, vindo dos nossos dias, começa a falar perfeitamente Grego Antigo (é inglês, mas vocês percebem o que quero dizer com isto). O que nem é o pior, porque Jasão sente que finalmente chegou a um local que sempre lhe foi familiar e isto podia ter sido explicado de várias formas. Mas não foi. Jasão mete-se logo em apuros e acaba por ser salvo por dois amigos, Hércules e Pitágoras. Hércules, não sei que piada parva quiseram fazer com o Hércules mitológico, é um bêbedo gabarolas (interpretado por Mark Addy, o rei Robert Baratheon da Guerra dos Tronos, mas não o reconheci). Já Pitágoras é mesmo o Pitágoras, esse mesmo, o do Teorema. Ou, pelo menos, no episódio piloto deram a entender que sim, mas parece que também abandonaram essa ideia (?).
Ora, isto é a típica história do homem do futuro que viaja ao passado, não é? Não. Porque nunca –NUNCA– mais se fala do pormenor de que Jasão veio do futuro. Para todos os efeitos, Jasão podia ter chegado a Atlantis vindo de uma vilarota qualquer, da mesma maneira que Merlin chegou a Camelot. Exactamente da mesma maneira. O que aconteceu é que devem ter achado que a premissa do episódio piloto era demasiado ambiciosa e abandonaram-na. É como se nunca tivesse acontecido. É como se esperassem que os espectadores fossem tão imbecis que nunca mais se lembrassem desse “pormenor”. 
Isto não é escrita profissional, nem em televisão nem em lado nenhum. Estas decisões tomam-se antes de o primeiro episódio ir para o ar. Em caso de dúvida, algumas séries até são visionadas por uma audiência beta que testa os primeiros episódios. Os senhores criadores de “Atlantis” decidiram simplesmente passar-nos um atestado de estupidez.
Eu nem sabia que “Atlantis” era dos mesmos autores. À medida que os episódios se foram passando, no entanto, e o facto de Jasão ser do futuro nunca mais ter sido mencionado, e aquilo começar a ser “três amigos vão em aventuras, derrotam os vilões e voltam para casa”, as semelhanças com “Merlin” saltaram à vista. Fui investigar e pronto, lá está, a explicação. “Atlantis” era para ser uma série como “Merlin”, com episódios só para encher até acontecer alguma coisa ao enredo nos últimos episódios da temporada. O que se justificava se a temporada fosse longa, mas são apenas 12 episódios. Não se justifica o encher de chouriços.
Até porque “Atlantis”, ao contrário de “Merlin” no princípio, até tem um enredo. Jasão, personagem que ficou sempre bidimensional do princípio ao fim, é aparentemente o herdeiro legítimo ao trono de Atlantis. Mas o trono está ocupado por um usurpador, o rei Minos, casado com a rainha Pasífae, madrasta da bonita-boazinha-inteligente-corajosa-e-perfeita-em-todos-os-sentidos princesa Ariadne. Pasífae é má como as cobras e quer matar o marido e a enteada para ficar ela no trono. Jasão e Ariadne apaixonam-se um pelo outro.


Os mitos vão com as urtigas, como já tinha acontecido com “Merlin”. Estes autores estão convencidos de que fazem melhor do que os mitos arturianos e gregos. Não me importava de um bocadinho de mistura, de modo a ser Jasão a matar o Minotauro e a apaixonar-se por Ariadne (em vez de Teseu), mas demais é demais. E demais foi mesmo a história de Medusa, que os próprios autores devem ter achado tão estúpida que não sabiam o que fazer com ela. Medusa, aqui em “Atlantis”, era uma mulher normal que trabalhava no palácio. Mas, quando ela abriu a caixa de Pandora, olhou lá para dentro e transformou-se na Górgona Medusa, a tal com serpentes em vez de cabelos.
Pára tudo! Medusa, uma das três irmãs Górgonas? A Caixa de Pandora, de onde vem o mito ocidental que a última coisa a perder é a esperança? O que é que uma coisa tem a ver com a outra? Pois, não sei, mas os autores da série acharam que era giro trucidar dois mitos da cultura ocidental ao mesmo tempo. Mas estes são os mesmos autores que acharam giro que Jasão viesse dos nossos dias, no primeiro episódio, para abandonarem a ideia logo a seguir. A ideia de Medusa também deve ser resultado de um fim de tarde no pub, todos a beberem pints e a comerem peixe frito. Na altura, se calhar, pareceu-lhes muito original e interessante. Depois de se meterem no buraco, para agravar um pouco mais, a única solução que encontraram foi matar uma personagem que até era simpática e não merecia aquele fim.
A intriga palaciana não chegou, e os autores transformaram Pasífae numa bruxa com poderes iguais aos de Morgana em ”Merlin”. Foi como estar a ver a mesma série mas com outros personagens. Ariadne, igualmente, como Guinevere e Morgana, não é uma princesa qualquer, mas uma princesa que sabe lutar, cozinhar, fazer curativos, e ainda tem jeito para a governação e a política. Podiam tê-la feito ainda um bocadinho mais perfeita? Mais uma temporada e aposto que Ariadne ia desenvolver poderes mágicos também.
Se calhar o aspecto mais interessante dos episódios filler foram as lutas na arena. Desta vez os autores foram atrás do sucesso de “Spartacus” e nem lá faltou o Batiatus, para não termos dúvidas mesmo nenhumas (o actor John Hannah, a quem reconheci imediatamente a cara odiosa de “Spartacus”, mesmo com a maquilhagem de leproso, aqui na personagem de pai de Jasão). Muitas das aventuras dos três amigos (e de Medusa e Ariadne) eram desculpas para termos Jasão a lutar em jogos vários, na arena, de vida ou de morte. E houve morte, houve sim senhor, e, honra lhe seja feita, em “Atlantis”, como não acontecia em”Merlin”, até temos sangue nas espadas (quando a produção não se esquecia de o pôr lá). Até temos a aparição do Touro de Bronze, uma das formas de execução mais cruéis e horripilantes de que tenho conhecimento. Havia aqui muito a explorar, muito mesmo. Acima de tudo, havia a explorar o desaparecimento da Atlântida, que devia ter sido o enredo final numa série chamada Atlantis… mas não chegámos lá.
Duas temporadas e o enredo continuou em passo de caracol no meio do filler, com muitos sub-plots que não adiantavam nada ao avanço da história, exactamente à “Merlin”, um passo para a frente e dois para trás e tudo na mesma. No final da segunda temporada, que eu já sabia que ia ser a última, pensei que finalmente ia ver o fim da história. Qual não foi a minha surpresa quando percebi que os autores estavam a pensar na renovação, que só agora é que iam pôr o Jasão e os argonautas em busca do Tosão de Ouro! Tiveram tanto tempo. Mas quiseram fazer render o peixe. Desta vez a BBC, ou as audiências, fartaram-se. Acabou mesmo assim, a meio da história. Não considero isto um spoiler porque nunca houve fim para contar. Enfim, mais uma série mal feita e frustrante.
Notei uma ligeira diferença em relação a “Merlin”, mesmo assim. Se “Merlin” andou sempre num registo infanto-juvenil (até ao fim, que foi emocionalmente brutal), “Atlantis” correu mais riscos. Tanto a nível de violência (as passagens com o Touro de Bronze, embora nunca tenha sido usado, foram de facto arrepiantes) como de outro teor. Nos últimos episódios, Pitágoras e Ícaro apaixonam-se. Isso mesmo, o génio e o mito. Até temos um beijo nos lábios, o primeiro beijo nos lábios entre dois homens que vi numa série com este registo juvenil. Não julguei que eles fossem lá, mas parece que os tempo já o permitem. Foi interessante, admito, mas questiono a intenção. Aquela paixão apareceu ali muito depressa, como algo de desesperado para dar interesse à série e pôr as pessoas a falar –e aqui estou eu, a falar da série– mais do que para abordar a homossexualidade. Ou seja, o que podia ter sido bastante inovador pareceu-me mais um sub-plot de encher chouriços enquanto o verdadeiro enredo não se desenredava.
Ícaro chegou à série através do inventor Dédalo, seu pai, e também não esperava que fizessem mesmo a passagem das asas de cera. Ora cá está, a prova de que os mitos não duram milhares de anos se não forem mesmo bons mitos. Por uma vez, os autores seguiram o mito e até tivemos um momento de humor genuíno, graças talvez ao actor Robert Lindsay (Dédalo), que muitos se recordarão da série cómica “A minha família”. Dédalo avisa o filho de que as asas de cera podem derreter ao sol, mas desta vez Ícaro não voa de encontro ao sol, porque, “pai, é de noite”. Gostei, foi giro, e uma abordagem ao clássico que não assassinou o mito como no caso de Medusa. Isto sim, é uma boa adaptação com uma reviravolta inesperada.
Então, se “Merlin” durou cinco longas, aborrecidas, excruciantes temporadas, o que é que aconteceu aqui que a BBC cancelou mesmo a meio? Não tenho a certeza. Terá “Atlantis” sido cancelado porque foi longe demais ao pisar o risco do sexo e da violência no que se pretendia uma série infanto-juvenil, ou, pelo contrário, porque não foi suficientemente longe? Ou porque nunca conseguiu decidir, como o seu antecessor “Merlin”, o que é que queria ser, o que é que queria fazer e a quem se destinava? Ou uma mistura disto tudo?
O grande mistério, para mim, foi o simples facto de as duas séries, na sua totalidade, terem sido exibidas durante sete temporadas antes que alguém se apercebesse da incompetência por detrás delas.
Não recomendo isto a ninguém, excepto talvez os dois últimos episódios, os do beijo e das asas de cera, e em que Pasífae ressuscita dos mortos. Que foi o mesmo que já disse de “Merlin”, só os últimos episódios é que se salvam.

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