Capítulo “Origem e Natureza dos Espíritos”Compreende-se que o princípio de onde emanam os Espíritos seja eterno, mas o que perguntamos é se a sua individualidade tem um fim e se, num dado momento, mais ou menos longo, o elemento do qual são formados se dispersa e retoma à massa de onde saiu, como acontece com os corpos materiais. É difícil compreender que uma coisa que começou não possa acabar. Os Espíritos têm fim? [pergunta]– Há coisas que não compreendeis, porque a vossa inteligência é limitada. Mas isso não é razão para serem rejeitadas. (…) Nós vos dizemos que a existência dos Espíritos não acaba; é tudo o que, por agora, podemos dizer.
É curioso. Aqui há uns anos cheguei à conclusão de que não é difícil para o intelecto humano conceber algo sem fim; o que é difícil, senão impossível, é conceber algo sem princípio.
É por isso que, apesar de termos uma teoria plausível para o começo do universo, o Big Bang, continuamos a questionar: e o que aconteceu antes do Big Bang? E antes disso? E antes disso?...
Compreendemos a eternidade, mas até a eternidade teve que ter um princípio. Algo que não tem princípio faz-nos muito mais confusão do que algo que não tem fim, e considero isso muito curioso. Muito humano, digamos assim, porque Deus não teria princípio nem fim: seria perpétuo. Essa noção de perpetuidade, sem princípio nem fim, escapa-nos. Não nos escapa o não ter fim, sabemos que muitas coisas não têm fim. Mas tudo tem que ter um princípio ou não o compreendemos.
Pergunto-me mesmo como é que podíamos ter inventado a noção de um Deus sem princípio, se a noção nos escapa. Muitos deuses "primitivos", chamemos-lhes assim, tinham um princípio. Havia toda uma série de lendas de como tinham surgido, de onde tinham nascido, quem eram os seus pais e quem eram os seus filhos. Era fácil de perceber. Seria de esperar que a nossa concepção moderna de Deus fosse ainda mais fácil de perceber, porque somos mais científicos e menos crédulos e não gostamos de coisas que ultrapassem a nossa compreensão porque nos julgamos capazes de compreender tudo, mas, pelo contrário, a nossa concepção de Deus é muito mais complexa. Criámos, finalmente, um Deus que nos ultrapassa, ou Ele deu-Se a conhecer? Deixo a cada um responder.
Capítulo “Materialismo”O homem tem o pensamento instintivo de que nem tudo se acaba quando cessa a vida. Tem horror ao nada. Ainda que teime e resista inutilmente contra a ideia da vida futura, quando chega o momento supremo são poucos os que não se perguntam o que vai ser deles; a ideia de deixar a vida e não mais retornar é dolorosa. Quem poderia, de facto, encarar com indiferença uma separação absoluta, eterna, de tudo o que amou? Quem poderia, sem medo, ver abrir-se diante de si o imenso abismo do nada onde se dissiparão para sempre todas as nossas capacidades, todas as nossas esperanças (…)Temos uma alma, sim, mas o que é a nossa alma? Ela tem uma forma, uma aparência qualquer? É um ser limitado ou indefinido? Uns dizem que é um sopro de Deus; outros, uma centelha; outros, uma parte do grande Todo, o princípio da vida e da inteligência, mas o que tudo isso nos oferece? O que nos importa ter uma alma se depois da morte ela se confunde na imensidade como gotas de água no oceano? A perda da individualidade não é para nós o mesmo que o nada? [Allan Kardec]
A primeira vez que ouvi falar de certas doutrinas místicas que defendem que após a morte a alma regressa a Deus, "dissolvendo-se" Nele, confesso que fiquei muito assustada. Estava preparada para a morte, até para a morte do pó e do nada, mas a ideia de ser "sugada", como uma força vital, para dentro de um Deus, dava-me calafrios. Essa seria a Morte de todas as mortes. Mas, pensando melhor, Allan Kardec tem razão. Uma vez "dissolvida" a individualidade no todo, desapareceria também a consciência de ter sido dissolvido, ou de estar morto, ou de alguma vez ter existido, ou meramente de ser. É o mesmo que a morte do pó e do nada e não deve assustar nem mais nem menos. É outra espécie de nada.
Capítulo “Progressão dos Espíritos”Os Espíritos são bons ou maus por natureza ou são eles mesmos que se melhoram? [pergunta]– São os próprios Espíritos que se melhoram, passando de uma ordem inferior para uma ordem superior.– Deus criou todos os Espíritos simples e ignorantes, ou seja, sem conhecimento. Deu a cada um uma missão com o objectivo de esclarecê-los e de fazê-los chegar, progressivamente, à perfeição pelo conhecimento da verdade para aproximá-los de Si. A felicidade eterna e pura é para os que alcançam essa perfeição. Os Espíritos adquirem esses conhecimentos ao passar pelas provas que a Lei Divina lhes impõe. Uns aceitam essas provas com submissão e chegam mais depressa ao objectivo que lhes é destinado. Outros somente as suportam com lamentação e por causa dessa falta permanecem mais tempo afastados da perfeição e da felicidade prometida.
Há Espíritos que permanecerão perpetuamente nas classes inferiores? [pergunta]– Não, todos se tornarão perfeitos. Eles progridem, mas demoradamente. Como já dissemos, um pai justo e misericordioso não pode banir eternamente os seus filhos. Pretenderíeis que Deus, tão grande, tão bom, tão justo, fosse pior do que vós mesmos?
É caso para responder que há pais muito maus, muito maus, muito maus, entre "nós mesmos". Péssimo exemplo que este Espírito foi buscar.
Os Espíritos podem se degenerar? [pergunta]– Não; à medida que avançam, compreendem o que os afasta da perfeição. Quando o Espírito acaba a prova, fica com o conhecimento que adquiriu e não o esquece mais. Pode ficar estacionário, mas retroceder, não retrocede.
Deus não poderia isentar os Espíritos das provas que devem sofrer para atingir a primeira ordem? [pergunta]– Se tivessem sido criados perfeitos, não teriam nenhum mérito para desfrutar dos benefícios dessa perfeição. Onde estaria o mérito sem a luta? Além do mais, a desigualdade entre eles é necessária para desenvolver a personalidade, e a missão que realizam nessas diferentes ordens está nos desígnios da Providência para a harmonia do Universo.
Porque alguns Espíritos seguiram o caminho do bem e outros o do mal? [pergunta]– Não têm eles o livre arbítrio? Deus não criou Espíritos maus; criou-os simples e ignorantes, ou seja, com as mesmas aptidões tanto para o bem quanto para o mal, os que são maus o são por vontade própria.
Nunca se questiona n'"O Livro dos Espíritos" algo muito simples: porque é que Deus pensou que as suas criaturas haveriam de ficar contentes por terem sido criadas? É a primeira pergunta de todas. Depois se pode partir para as outras: porque é que as criaturas, dotadas de inteligência e opiniões pessoais e grandes diferenças entre si, haveriam de aprovar este "sistema educacional", por assim dizer? Porque é que as criaturas haveriam de ter todas a mesma noção de felicidade, especialmente a "eterna e pura", já para não falar na "perfeição", se o que para uns é bonito para outros é feio? Andamos sempre na mesma questão. Deus criou-nos assim de propósito, uns submissos outros rebeldes, porque queria que fôssemos diferentes, ou a Experiência correu mal? Se a Experiência de Deus não pode correr mal, se nos criou assim de propósito, criou algumas criaturas propositadamente para serem infelizes no "sistema"?
"O Livro dos Espíritos" nunca questiona nada disto porque foi publicado em 1857. Diz-se, muitas vezes, de muitas maneiras, "quem sois vós para questionar a sabedoria dos desígnios de Deus?" Depois do século XX tudo se questiona. Tudo se pergunta. Tudo se quer saber. É nesta falta de existencialismo desassombrado que o livro mostra a sua idade.
Mas, tendo isto em conta, não é caso para desistir.
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