quinta-feira, 4 de julho de 2013

Máquina Herética: poesia e prosa poética, 8



O ÚLTIMO PATAMAR


I

Daqui não se pode descer mais
Para baixo não existe mais nada
é o ponto de nenhum retorno.
Chegámos às ruas da cidade
onde as luzes não se acendem
nem quando a noite cai escura.
E os fantasmas da sombra ressuscitam,
deambulam solitários na escuridão,
até a luz do sol lhes ferir a vista,
obrigando-os a recolher aos seus túmulos,
nem as criaturas têm descanso.
Segurança não existe no patamar
onde finalmente nos encontramos, aqui,
e daqui para baixo não existe mais nada.
Não há hipótese de queda, aqui nem a gravidade existe,
mas daqui não saímos mais.
Não saímos vivos, nem mortos, nem zombies.
O nosso lugar é aqui, pelo menos não podemos
cair mais.


II
 
Como descrever então este local sem nome
sem nada ao qual compará-lo
só as brumas se assemelham à mente
dias de intenso nevoeiro
com luzes estranhas e incompreensíveis
que se acendem até à loucura
dias estranhos só de cinzento
indescritíveis e incomparáveis,
sem gemido algum,
a angústia que já nem se sente
que possibilidade há em sentir
os pingos de cera que caem
na pedra fria de mármore?
tornam-se pedaços moldados,
frios, duros, sem vida,
pedaços de alma que caem,
perdem o calor e a força
desprendem-se aos poucos do todo
todos eles são tão poucos!
Ignoráveis, removíveis, como nós os condenados
a quem caíram todos os poucos
lentamente perdemos a alma.



III

Pois aqui é o sítio
donde não se pode descer mais
só há escuro, trevas, e não há luz.
Ainda assim vemos tudo tão claro
que só queremos apagar estas luzes
brilham-nos no cérebro até enlouquecer
são um carrossel de verdades,
montanha russa de tragédia,
velocidade, luz e derrota
nos prendem aos grilhões da liberdade
onde nos prendemos e condenámos
Só aqui somos livres
na forma que concebemos liberdade
e porque não estamos sozinhos
tocamo-nos na escuridão
e compartilhamos as nossas luzes
e sofremos todos juntos
em silêncio, para a tortura ser maior
presos no nosso carrossel, presos na nossa liberdade
seguros no sítio onde segurança nunca existiu
onde não podemos cair mais
sem sonhos, sem fé, sem lei
sem degraus mais para baixo.
Abaixo de zero, acima de nós.


4 e 7 outubro 1988

4 comentários:

Fashion Faux Pas disse...

Há dias em que me sinto exactamente assim. Fora a pontuação - ou falta dela - que imagino ter sido propositada - mas eu gosto muito de virgulas e ponto e virgulas - consigo absorver a essencia deste escrito, e é como digo , ele há dias em que me sinto exactamente assim, e desafio alguém a dizer que nunca passou por isto. Escusado dizer que adorei, e confirma-se a noção que sempre tive de ti: escreves mesmo MUITO bem.

katrina a gotika disse...

Mais uma vez, bondade tua!
Este fala de ambientes fumarentos e de noites góticas... e de drogas.
Sim, a pontuação, e até a gramática, foram ignoradas. As "quebras", as transgressões gramaticais, também fazem parte da totalidade do caos psicológico que quis transmitir.

Fashion Faux Pas disse...

Bondade nenhuma, que de bondosa não tenho nada ;)
http://fashionfauxpas-mintjultp.blogspot.com

Ariane M. Santos disse...

Olá, estou passando para parabenizar seu Blog. Gostei muito da atmosfera daqui. Se quiser, dê uma conferida no meu. Obrigada!
http://madamshadow.blogspot.com.br/