sábado, 5 de julho de 2008

Um livro: "A Morte de Portugal", por Miguel Real

Este livro foi-me dado a conhecer por Metatheorique, colaborador nas Vicentinas de Braganza (agora The Braganza Mothers) que dele publicou alguns excertos muito interessantes.
Publicado por Campo das Letras (2007), é segundo o autor um "ensaiozinho despretensioso e reflexivo de horas nocturnas" que "intenta demonstrar que a constelação cultural e civilizacional por que emergiu a realidade histórica designada por "Portugal", enquadrada em quatro complexos culturais abaixo enunciados, atingiu o seu limite de esgotamento - menos por efeito de um decadentismo político (temos vivido em permanente decadência desde D. João III) e mais por causa de um fenómeno de aceleradíssima descristianização e desumanização ética da sociedade e de uma rapidíssima submersão social numa tecnocracia científica anónima que nivela as nações, metamaorfoseando-as em regiões singulares de uma futura supranacionalidade europeia, comandada por títeres janotas que transfiguram a nobre arte da política numa cinzenta cadeia técnica de raciocínios causais - e está a chegar ao fim".

Não se trata portanto do fim de Portugal como país independente (anexado ou invadido) mas de algo muito mais grave, a morte da realidade cultural que sustenta essa independência e sem a qual essa mesma independência deixa de fazer sentido.
Os diagnósticos já estão todos feitos mas este não deixa de merecer destaque e leitura global uma vez que, em meia dúzia de linhas, explica toda a estrutura mental colectiva da nação desde a sua fundação. Sintetizando, nas palavras do autor:

«Assim, na linha de Eduardo Lourenço, este ensaiozinho diligencia desenhar os quatro complexos culturais por que Portugal se foi concebendo a si próprio ao longo de 800 anos de História: ora, segundo a tradição literária Renascentista, um país gerado exemplarmente no mais remoto dos tempos e contra as mais difíceis circunstâncias (Viriato); ora um país que, nos e após os Descobrimentos, se vê a si próprio como nação superior às demais, sintetizada na majestática arquitectónica do Quinto Império do padre António Vieira, Fernando Pessoa e Agostinho da Silva e na patética [tocante, mas idolátrica] pretensão de Fátima a "altar do mundo"; ora um país que, fracassado o sonho grandiloquente do Império, se lastima e se penitencia, considerando--se nação inferior, passível de máxima humilhação (Marquês de Pombal); ora, finalmente, país mesquinho, venenoso e bárbaro, permanentemente ansioso de purificação ortodoxa (Tribunal do Santo Ofício; Index inquisitorial; Intendência pombalina; Real Mesa Censória; guerra civil entre liberais e absolutistas; carbonários e republicanos jacobinos perseguindo e chacinando instituições eclesiásticas; polícia política e tribunais plenários do Estado Novo, santificados pela Igreja Católica, perseguindo, prendendo e exilando a totalidade da oposição, levando a cabo uma guerra de 13 anos nas colónias), no qual cada corrente política e intelectual tem sobrevivido da canibalização das correntes adversárias, negando-as e humilhando-as.»

Ou ainda:

«Por efeito do ambiente educacional e social, cada português percorre na sua vida, recorrente e ciclicamente, estas quatro figurações da história e cultura pátrias: ora se sente diminuído face à riqueza económica, ao grau cultural, ao nível científico e ao patamar cívico dos povos europeus do Norte, mas logo transforma a fraqueza em força e se afirma viriatinamente como eivado de uma pureza e humildade vitoriosas relativamente ao luxo decadentista europeu e americano e como penhor de valores tradicionais humanistas e íntegros que os países mais avançados, existencialmente desorientados, já perderam (complexo viriatino); ora sobreleva a insignificância real de ser português (povo que em nada conta no mundo), levantando teorias específicas de grandiosidade montanhosa (o Quinto Império de Vieira e Pessoa, o saudosismo de Teixeira de Pascoais; o "génio da raça" de António Sardinha e Oliveira Salazar; a Idade do Espírito Santo de Agostinho da Silva; cultura guardiã do legado celto-mediterânico da Deusa-Mãe, de Natália Correia e Dalila Pereira da Costa; o Evangelho Português de Manuel J. Gandra), postulando-se como nação superior às demais, facto desmentido no presente, mas provado no passado e anunciado providencialmente pela narrativa do seu futuro (complexo vieiríno); ora, caindo em si, ressaltando comparações com outros povos europeus, humilha-se, penitencia-se, desagradado de Deus ou de injustas leis históricas, consciencializando-se como nação inferior, bárbara, rústica, arcaica, como desde o século XVIII nos temos representado a nós próprios (complexo pombalino); ora, finalmente, se sente afã de uma pulsão desmedida, um vigor absolutista de reconversão do outro, apostrofando as ideias deste, condenando-as como heréticas, heterodoxas, abjectas, sugando--o canibalisticamente para as ideias próprias, em última análise eliminando-o, como o fizeram o Tribunal do Santo Ofício, o frenesi devorador pombalino, a Intendência-Geral de Pina Manique, os jacobinos da I República, o Estado Novo de Oliveira Salazar e a Igreja Católica de Gonçalves Cerejeira a republicanos, socialistas, anarquistas, esperantistas, evangelistas, homossexuais e comunistas na II República (complexo canibalista).

O Portugal desenhado pelos quatro complexos acima enunciados encontra-se moribundo, submerso pela avalanche de costumes liberais europeus e americanos, totalmente descristianizados e desumanizados.»

E cá está o que andamos a falar, aqui e ali, há muito tempo:

«Desde a década de 1990, o aparelho de Estado, privilegiando exclusivamente um sector da sociedade - a economia -, desprezando fundo os valores morais e espirituais próprios da cultura portuguesa, tem gerado na mente dos portugueses uma representação parcial de si próprios, que, incapaz de se elevar à unidade de uma ideologia estruturada e consolidada, se caracteriza pela passividade cívica, compensada por uma hipervalorização do individualismo, assente na fórmula amoral do "salve-se quem puder".»

«Portugal precisa menos de um choque tecnológico (experimentado pelo pombalismo, pelo fontismo e pelo cavaquismo, cujas consequências em nada mudaram o nosso ser, limitando-se a uma mera actualização de instrumentos técnicos ao serviço da sociedade civil e do aparelho de Estado) e mais de um choque cultural, elevando cada cidadão a um exigente patamar de conhecimento humanista e cívico que, por arrasto, geraria inevitavelmente o desejado choque tecnológico. Primeiro, a cultura, o espírito, o sentido da transcendência; depois, por inevitável arrasto de exigência cívica, o progresso tecnológico. A brutal inversão destes valores pelos actuais governantes evidencia tanto a sua pobreza de espírito quanto o projecto pombalino desumanamente tecnocrático em que se encontra empenhado.»

Muito interessante também, e digna de reflexão, é a análise que o autor faz da relação de conflito entre o intelectual português e o Estado, que o rejeita, não permitindo à intelectualidade do seu tempo fornecer o contributo devido para o seu progresso, demonstrando uma secular alergia às ideias:

«A relação intemporal entre o intelectual português e as instituições socialmente dominantes podem resumir-se em três momentos paradigmáticos: 1) uma fase de aproximação, de empenhamento e de voluntária adequação ou de tentativa de transformação do destino geral de Portugal; 2) por motivos circunstanciais, que muito diferem de autor para autor, vinculando-o ao seu tempo, o intelectual português sofre, em certo momento, um profundo desencantamento com o estado conjuntural do país, cuja consciencialização o força ou a desistir de transformar Portugal, interiorizando-se ou exilando--se no estrangeiro, abandonando o seu antigo empenhamento, concentrando-se na sua obra estética ou filosófica individual; ou a reiterar o seu compromisso de transformar Portugal, criando uma obra alternativa à visão social e política dominante; 3) no final da vida ou após a morte, a obra do intelectual português é recuperada pelas instituições dominantes do Estado, da Universidade ou da Igreja, que a estatui como um dos mais salientes vectores da cultura portuguesa, passando então a ser tão santificada pelas novas gerações escolares quanto antes fora abominada e desprezada pelas anteriores.»

«De qualquer que seja a forma, quaisquer que sejam as circunstâncias individuais, o exílio torna-se o seu destino pessoal, sofrendo duplamente a amargura de uma pátria a seus olhos torta e incorrigível (como os intelectuais da primeira vertente) e a amargura da ausência desta, duplo húmus donde frutificará a sua obra posterior, cruzando e unindo o lirismo melancólico motivado pela ausência da pátria ao revolucionarismo cultural das suas ideias de endireitamento da história de Portugal. Ao exílio (externo) acresce, não raro, um exílio interior, psicológico, elevando as múltiplas carências económicas sofridas e a consciência da insatisfação pessoal à figura de um calvário resignado como resgate do estado decadentista de Portugal.
O exílio externo (na Europa ou peregrinando nos longes do Império) tem sido, desde o século XVI, a marca mais pertinente do intelectual português. Uns, não deixando de se preocupar com Portugal, desinteressam-se do destino político deste, buscando no estrangeiro ou na solidão do Império a realização da sua obra numa atmosfera social mais propiciatória: Garcia da Horta, Francisco Sanches, Camões, o padre jesuíta Inácio Monteiro e Manuel Teixeira-Gomes, mas também Damião de Góis, Adolfo Casais Monteiro, Manuel Valadares, Fidelino de Figueiredo, Manuel Rodrigues Lapa, Fernando Gil, bem como inúmeros pintores portugueses do século XX exilados em Paris e Londres (Vieira da Silva, Paula Rego, Lourdes de Castro, Costa Pinheiro, René Bertholo, Jorge Martins...).
Outros, representados pelos casos modelares de Cavaleiro de Oliveira, Bocage, Eça de Queirós, Jorge de Sena, José-Augus-to França e Eduardo Lourenço, intentam, segundo o seu múnus estético, descrever com realismo o "reino cadaveroso" e a "vil e apagada tristeza" dominante em Portugal. Constitui este grupo o exemplo do mais impiedoso intelectual português, cuja obra analisa, ao bisturi do realismo da sua época, o conjunto de malformações políticas e culturais que concorrera para enfermar Portugal de um secular atraso relativamente aos países da Europa Central. Entre todos, a obra de Eça de Queirós, no campo da ficção, e a de Eduardo Lourenço, no campo do ensaio, constituem-se como as duas obras mais relevantes desta vertente do paradigma do intelectual português.»

Para pensar mais um bocadinho:

«Ao longo de 400 anos, de D. João III a Oliveira Salazar, Portugal criou uma forma mental e uma visão do mundo que se alimentam exclusivamente da negativização do pensamento oposto, da doutrina contrária, da teoria diferente, nulificando igualmente os seus autores - conceito combatido, autor preso, exilado ou morto, livro queimado ou proibido. O pensador portador da diferença era encarado como inimigo a abater ou a esmagar e o povo - eterno rústico aldeão, alimentado pelas malhas da crendice e da superstição - como massa amorfa ignorante a iluminar e converter. A história da cultura portuguesa moderna e contemporânea solidificou-se, ao longo de cerca de 400 anos por via de uma série de sucessivas negatividades que não têm par no movimento cultural dos restantes países europeus, porventura com excepção da Espanha. Assim, mais do que filosófica ou reflexiva, a cultura portuguesa tem sido eminentemente ideológica, isto é, enformada ou envolvida por um sentido de Estado que lhe guia a orientação político-social, ora entronizando no poder uma(s) doutrina(s), ora excomungando a(s) doutrina(s) contrárias. De D. João III a Salazar, passando por Marquês de Pombal, Mouzinho da Silveira e Afonso Costa, as teorias têm sido entronizadas "verdadeiras" pelo poder e força do Estado, e as suas contrárias condenadas às grilhetas da repressão.»

«Contaminado de ideologia, o pensamento português deve a sua existência à configuração político-cultural donde emerge, morrendo com ele. É uma autêntica tragédia - o pouco que escrevemos sobre o Ser, sobre o Bem, sobre o Belo, sobre Deus, logo o contagiámos desse máximo defeito de o postularmos como veículo triunfal do Estado, carro auriflamejante por onde todas as gerações portuguesas têm atravessado o Rubicão da nossa redenção; mas a teoria passa, a configuração cultural passa, o Estado, assim iluminado, passa, os actores da história passam e, no fim, outra geração olha para trás e o que os seus pais tinham entrevisto como o Rubicão sabe-lhe apenas a um longínquo Eufrates nunca atravessado em direcção à Terra Prometida. De novo, novas teorias exclusivistas apontam o caminho, penitenciam-se outra vez os 40 anos do Deserto, um Moisés português adeja as suas barbas sorridentes afogando em outro Mar Vermelho os novos egípcios, num outro Monte Sinai são descobertas outras tábuas da verdade e todos de novo sentem que é a hora, é agora, agora sim, agora é mesmo a aurora do futuro, enchem-se prisões de inimigos, apostasiam-se os foragidos, excomungam-se outras doutrinas e, no fim, olhos salgados de lágrimas, instalados no futuro ideal, constata-se que, perdido o presente, outro é o futuro real, feito do sangue dos perseguidos, que ora reclamam vingança. Assim, se quiséssemos definir o tempo moderno e contemporâneo da cultura portuguesa entre 1580 - data da perda da independência - e 1980 - data do acordo de pré-adesão à Comunidade Económica Europeia -, passando simbolicamente pelo ano de 1890 - data do Ultimatum britânico a Portugal -, atravessando 400 anos de história pátria, defini-lo-íamos como o tempo do canibalismo, o tempo da culturofagia, o tempo em que os portugueses se foram pesadamente devorando uns aos outros, cada nova doutrina emergente destruindo e esmagando a(s) anterior(es), estatuídas estas como inimigas de vida e de morte, alvos a abater, e as suas obras como negras peçonhas a fazer desaparecer.»

Por fim, segundo o autor, há razão para optimismo pela Europa:

«Porém, por via da Europa - honra lhe seja feita -, e não por gradual esforço nosso, não são apenas dois ou três pensadores portugueses a exigirem o império da tolerância, mas as próprias instituições sociais, e antes de mais o Estado e a Igreja Católica, os dois aparelhos políticos a quem mais devemos a nossa histórica forma mentis intolerante.
Esgotado de tanto absoluto histórico, a cultura portuguesa, passada a sua fase de canibalismo redentor, reinará no século XXI como goradamente Antero de Quental desejava que reinasse no século XX - sob império da Justiça e da Liberdade tendo como horizonte final o Bem ético, que, entre as suas virtudes, conta a tolerância como uma das principais.
De 1890, data do Ultimatum inglês, a 1980, data da assinatura do pré-acordo de adesão à Comunidade Europeia (então Comunidade Económica Europeia), Portugal habitou o fundo dos fundos da Europa. Face à comunidade internacional, era indisfarçável o retrato de Portugal como país apenas existente no mapa, onde, mau grado todos os triunfalismos internos historicamente dominantes, da Monarquia Constitucional ao fim da I República, passando pelo fascínio imperial do Estado Novo e desembocando no sonho comunista de 1975, conviviam majestaticamente a ignorância cultural, o atraso científico e a miséria económica, dados estatisticamente comprováveis. Em 1974, a taxa de analfabetismo rondava os 45 a 50 %, o que significava que, 48 anos depois de um discurso político glorificante dos passados feitos pátrios, cerca de metade da população portuguesa mal sabia ler, escrever e contar. Hoje, apenas os portugueses com menos de 30 anos conhecem, na ainda breve totalidade da sua vida, uma existência sem repressão política e sem guerra, não sendo assim motivo de espanto que esta nova geração, já plenamente europeia nos costumes, tanto positivos quanto negativos, assuma conscientemente a face de um novo Portugal urbano e cosmopolita, eticamente relativista, em total ruptura com o antigo Portugal, eminentemente rural e religioso, eticamente absolutista. Devido a determinante influência europeia, da publicidade ao design, da literatura à ciência, do cinema às artes do espectáculo, do jornalismo à pintura, os modelos sociais simbólicos prevalecentes nesta nova geração já não se encontram nem nas "imorredouras" figuras históricas portuguesas de "antanho", contaminadas pelo patrioteirismo provinciano da propaganda política, nem nas figuras da "resistência" política e sindical ao Estado Novo, rompendo-se o vínculo social de continuidade cultural entre gerações. Com esta nova geração urbana e europeia, em tudo similar às gerações dos países da Europa Central, prepara-se Portugal para enfrentar o século XXI, libertando-se definitivamente de um passado económico, político e cultural que há meio milénio, com breves excepções, a mais forte das quais entre 1415 e 1539, sempre lhe atrofiou as suas virtualidades.»

Não posso deixar de aconselhar a leitura integral deste ensaio a toda a gente que queira perceber as razões do declínio de Portugal e o seu iminente desaparecimento, bem como reflectir desapaixonadamente se esse fim, e essa diluição na Europa, tendo em conta o absoluto fracasso da experiência nacional desde a perda da independência em 1580, não será afinal mais benéfico do que eternamente continuar a carpir o morto sem o enterrar.
Mais grave ainda, se em virtude desse mesmo tremendo fracasso, não chegará o momento em que o morto tem de ser enterrado, mais ou menos carpido, sem que os seus nacionais, por incapacidade de inverterem a situação, tenham voto útil nessa decisão.
É minha opinião que será a segunda das hipóteses, não por falta de patriotismo da minha parte mas pela simples observação objectiva dos factos e constatação pessoal de que a situação é insustentável e irremediável. O futuro dirá o resto.

4 comentários:

Lord of Erewhon disse...

Conheço bem - não apenas esse, mas todos os que escreveu... :)

Dark kiss.
P. S. Enviei-te mail; se não encontrares, vai ao spam.

katrina a gotika disse...

Recebi e vou responder.

Anónimo disse...

Portugal está á venda? Ou trespassa-se?

metatheorique disse...

Olá Gotika,

Ainda bem que gostou do livro. É de facto uma análise tremenda. E acho que você tem alguma razão nas conclusões que tira no fim do seu post. Também me parece que as estruturas morais que caracterizaram o velho Portugal até ao 25 de Abril e sociais do 25/abril até hoje tendem mesmo a desaparecer sob o abatimento geral da população. O sintoma mais premente disto tudo (principalmente de há 3 anos para cá) é a nítida consciência de uma separação entre o "Nós" (povo sem ter onde caír morto sofredor de miséria e desemprego crónico insanável) e o "Eles" (elite financeira, pequena, mas da qual pouco se fala e essencialmente os políticos badalhocos, vaidosos e merdosos que nos governam mas... que são afinal um espelho da maioria do caracter nacional).

Belo Blogue. Não lhe tinha dito, mas passo aqui muitas vezes para ver o que escreve.

Abraço
metatheorique