Estamos em 2008. Por email, falo com uma rapariga que conheço da internet. "Não sei se sou gótica", diz ela. Pergunto-lhe que música ouve. Ela faz uma lista. E tal como o meu mentor, em 1988, me respondeu a mim, eu respondo-lhe também: "És gótica".
Actualmente, a mamã internet (como alguém lhe chamou, e muito bem) é o espaço virtual onde se conhece tudo e todos que se queiram dar a conhecer. Impensável, nos anos 80, em que tínhamos de depender dos classificados do Blitz para nos publicar um interesse particular nesta ou naquela banda, ou uma poesia, ou a troca de K7s. A troca de K7s! Hoje sorrio ao escrever isto como aquelas pessoas que toda a vida viveram à luz da vela sorriem quando se lembram de que entretanto alguém inventou a electricidade. Ser gótico tem destas felizes gratificações.
Mas voltemos à internet mais tarde. Onde íamos mesmo? Ah, sim, naquela passagem de ano de 1999 para 2000 em que a comunidade gótica, apesar de já bastante amadurecida e segura de si, se viu de repente sem casa onde celebrar.
Parecia um aviso, e a partir do que vou relatar tiram-se muitas lições de moral. Não vou entrar nos pormenores, que ainda estão demasiado frescos e, ao contrário da maioria das memórias até agora publicadas, estas não são só minhas mas da vasta maioria das pessoas que continuam na cena até ao dia de hoje e por isso mesmo para bom entendedor meia palavra basta.
Bars come and go. That's it, bars come and go.
Não ficámos sem casa por muito tempo. Depressa a mesma gerência da Juke Box abriu no Bairro Alto um bar chamado Limbo. Foi uma festa. E durante um par de anos a comunidade gótica floresceu como eu, habituada nos anos 80 a bares com meia dúzia de gatos, jamais tinha imaginado.
Nunca fui daquelas pessoas que desdenham os mais novos. Sim, é possível que nunca tenham vibrado com "Damage Done" dos Sisters of Mercy. É possível que tenham conhecido a cena através de Marilyn Manson (que ele próprio já não é recente) ou dos emos My Chemical Romance. Como diz o ditado sábio "não me interessa de onde vens, interessa-me para onde vais". Para mim, não deixa de ser uma surpresa agradável que depois de todos estes anos a cena gótica ainda exista, cada vez mais definida, cada vez menos complexada. Certo que não é o que existia no princípio, quando éramos aventureiros num terreno desconhecido e selvagem e não havia rótulos. É um facto que agora basta fazer uma pesquisa na internet e dá notavelmente menos trabalho ser gótico. Ou assim parece. O que dá trabalho em ser gótico, como os mais velhos sabem, é continuar a sê-lo dez anos depois.
Da passagem da Rua da Fé para o Limbo, notaram-se logo as baixas. Muita gente, e todos muito góticos do cabelo pintado às botas bicudas, desapareceram sem deixar rasto e mudaram-se para outros ambientes. Isto acontece e é mesmo assim. Ao frequentar um bar gótico podemos até divertir-nos e fazer apostas: "este fica, aquela é capaz de ficar, aquele nem pensar". É mesmo assim e é o que é. Um gótico faz-se de um dia para o outro mas é o tempo que o faz permanecer gótico.
Estávamos muito bem no Limbo, fomos novamente desalojados. Na Rua da Fé, os vizinhos queixaram-se do barulho (mas à data actual ainda sobrevivem as maravilhosas matinées de sábado à tarde na Juke Box). No caso do Limbo, um senhorio não quis prolongar o contrato. Mais uns tempos sem casa. Até que abriu o Disorder, ao Cais do Sodré. Ainda me lembro que na festa da inauguração vi pela primeira vez na minha vida os góticos a sorrirem de contentes, o que é um feito e tanto! [*Se alguém se lembra do ano de inauguração é favor deixar nos comentários porque não consigo precisar. Nessa altura ainda não achava importante anotar datas.]
Sim, as pessoas ficaram apreensivas. Ao contrário da passagem dos anos 80 para os anos 90, havia uma comunidade formada que não estava nada disposta a deixar de ter um espaço próprio.
Pouco depois, o impensável aconteceria. O Disorder foi tomado de assalto, mas um assalto lento e gradual, por nacionalistas skinheads, desde uma altura em que fixei como ponto chave o ano de 2005, e o ambiente sofreu as consequências. A comunidade gótica é pacífica e não racista. Nestes 20 anos devo ter visto duas ou três brigas nos vários espaços góticos (e não estou a exagerar, foram mesmo duas ou três) e apenas devido a disputas pessoais (geralmente casos do coração). De repente ver um fulano pegar num banco e desatar a partir as mesas é coisa de outro filme qualquer, talvez do Tarantino, mas que não tem nada a ver com a cultura gótica onde as únicas veias que se cortam são as próprias.
Muita gente desapareceu, mas desta vez não deixaram o movimento. Uma mão cheia de indefectíveis decidiu mudar de ares e organizar as Graveyard Parties, uma vez por mês, na Caixa Económica Operária. Devemos-lhes muito, muito mais do que pagamos pelas cervejas. Durante dois anos, as Graveyard Parties foram as únicas festas verdadeiramente góticas da cidade de Lisboa. Não deixam de me recordar os tempos do KGB, no Estoril, onde as pessoas iam de propósito pela música e mais nada. Se não fossem as Graveyard Sessions, teríamos tido um verdadeiro vazio (mais um) sem alternativa.
Entretanto, o Disorder mudou de nome em 2007 e agora chama-se Transmission. Só o tempo dirá se apenas mudou o nome. As Graveyards continuam. Em Junho, abriu um novo bar, o Metropolis, nas Picoas, dedicado inteiramente à música alternativa actual e suas variadas vertentes. Tudo isto é muito recente para fazer parte de umas "memórias" mas não deixo de registar que o momento é positivo e auspicioso.
Afinal, apesar dos momentos negros que nestes 20 anos pareciam ter tirado o movimento gótico do mapa, este não desapareceu, apenas se transformou. Desde que a internet se tornou acessível, deixou de ser preciso depender de alguns senhores que tinham o "alternativo" no bolso e só publicavam o que queriam, sejam eles jornais, editoras ou lojas. A internet veio abolir os intermediários. São as próprias bandas que divulgam o seu material no Myspace ou nos seus sites e assim se tornam conhecidas. Adeus negócio das K7s! É verdade que a indústria se queixa mas é verdade que a indústria comercial ignorou as pessoas enquanto pôde. Depois de 20 anos a sofrer os efeitos, não tenho pena nenhuma. Quando penso na quantidade de bandas que nunca tiveram o destaque que mereciam, como uns Red Lorry Yellow Lorry, porque estes não tinham editora e o que importava era agradar às editoras... Mais uma lição de moral.
Direi mesmo mais. Actualmente a única desculpa para não conhecer mais música é exactamente a quantidade abismal que está disponível, pelo que (de novo) não é de desprezar a importância do rótulo. O rótulo é feio no meio artístico? Até pode ser, mas o tempo é escasso e a triagem impõe-se. Se uma banda faz música electrónica ou industrial e não o admite só está a levar as pessoas que a ouvem a perder o seu tempo, e não é por ouvir que vão gostar.
A internet foi uma revolução também para o movimento gótico. Ajuda a conhecer música, arte, eventos, concertos, e até outras pessoas em sítios recônditos a que de outra forma jamais teríamos acesso. Não é de estranhar, pois, que nos últimos anos o movimento gótico tenha também fervilhado na internet e estimulado o seu desenvolvimento e transformação, e a transformação é que o mantém e manterá vivo. Abracemos, pois, os novos, e guardemos a nostalgia onde ela merece estar: na gaveta.
Continua daqui por vinte anos.
We had the power
We had the space
We had a sense of time and place
We knew the words
We knew the score
We knew what we were fighting for
For the freedom
The time to choose
But time to think
Is time to lose
The signals clash
And disappear
The shade too loud
And the sound unclear
The Sisters of Mercy, "Adrenochrome"
we must suffer
to free our pain
can you help us
to find our way
you're here to stay
stay here in paradise
I'd end this moment
to be with you
through morphic oceans
I'd lay here with you
only to stay
stay here in paradise
only to stay son
lonely from this maelstrom
free are you
from this maelstrom
to be with you
Fields of the Nephilim, "At the Gates of Silent Memory"
9 comentários:
Em Lisboa começou em finais de 70, era um grupo muito pequeno de gajos que deambulavam pelo Bairro Alto; chamavam-lhes «os morcegos».
Devias escrever as tuas memórias também.
Obrigado por este recordar...
Bela resenha... muito completa e com janela aberta para o futuro...
Boa perspectiva. Ainda conheci a Juke à noite, bem como o La Folie/Limbo. Grandes tempos, quando ainda tinha o nome de La Folie (acho..) e abriam os 2 pisos para agradar a gregos e troianos. Anos mais tarde ainda fui ao Disorder e o ambiente tinha já perdido muito comparando com esses tempos memoráveis.
Ahhhh o Limbo...suspiro...
Obrigado pelo recordar. Agora vamos para a frente :)
Txi. As melhores noites da minha vida foram nesse Limbo. Sextas e sabados, sempre boa musica. 2 andares, como referes. Som sempre Metal Gótico e afins...Saudades. Agora vai se a um transmission e espera se 3 ou 4 horas por uma musica do genero. Abriram mais bares do genero por lisboa, mas nenhum chegou aos calcanhares do Limbo. Not even close.
Theatre of Tragedy, Nightwish, Paradise Lost, etc, etc...
N havia cá mistelas.
Quando estudei em Lisboa, de 2001 a 2005, apanhei o Limbo e o Disorder. Passávamos primeiro por um bar pequeno e escuro, com paredes toscas e cheias de "grafittis" de esferográfica - penso que se chamava Esconderijo - bebíamos uma caneca e depois íamos dedicar a noite a beber e ouvir música no Limbo. Suicide Commando, Apoptygma Berzerk, VNV Nation, Assemblage 23, Mortiis...
Eu era um totó sem estilo definido no meio daquela malta toda "aprumada", mas nunca me senti excluído, principalmente no Limbo. É difícil sentir uma nostalgia maior do que a que essas noites me trazem.
Vim ter a este blogue precisamente para ter a certeza que estas memórias não eram só fantasia minha...
Não eram fantasia. E a fantasia não precisa de ser uma memória. Há ainda muitas fantasias a criar.
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