quinta-feira, 12 de junho de 2008

A geração que matou Abril

As minhas palavras iniciais vão aborrecer muitos leitores deste blog que distingo e aprecio, pelo que a estes peço a paciência de lerem depois das primeiras linhas e o exercício analítico de meditarem um pouco no que se escreverá de seguida.
Fala-se muito de gerações e das suas culpas. Hoje vou apontar o dedo à geração que mais contribuiu nos anos mais recentes para o apodrecimento do cadáver a que (ainda) se chama país. São estes os homens e mulheres que actualmente contam entre 40 a 50 anos, mais um menos um, que eram jovens (mas não crianças) no 25 de Abril de 1974, que fizeram o liceu e a faculdade durante os anos 80 e arranjaram um bom emprego onde sentar o cu toda a vida até à fronteira operacional de 1990. Ironicamente, seria a geração para a qual Abril foi feito, mas foi a geração que matou Abril. Passo a explicar porquê.
Antes do 25 de Abril, era muito simples. Havia toda a massa analfabruta de um Portugal sem estudos e umas elites «filhas d'algo» que iam para a faculdade de modo a mais tarde poderem ocupar as mesmas cadeiras dos papás, fosse na política, nas empresas, na educação ou nos hospitais. Fim da história. Parece um período medieval mas era mesmo assim. Povo e nobreza. Sem misturas nem confusões. Toda a gente sabia muito bem o seu lugar.
A geração que fez Abril, pais destes quarentões/cinquentões de hoje que aqui acuso, estava bem intencionada. Havia um regime, uma ditadura, uma guerra, havia que lhe pôr fim. Havia também que meter os meninos na escola, dar-lhes oportunidades que de outro modo nunca teriam. Até deu jeito muitos fidalgos terem de fugir para o Brasil e Macau (de onde voltaram ainda mais escandalosamente ricos) porque de repente houve filas e filas de cadeiras onde sentar os cus dos ditos meninos, filhos de uma revolução dourada que lhes deu tudo o que nunca teriam. Sem o 25 de Abril, em vez de engenheiros seriam trolhas, em vez de médicos maqueiros, em vez de professores contínuos, em vez de gestores e gestoras trabalhadores de fábrica, em vez de mulheres independentes e bem sucedidas sopeiras de servir na casa do doutor. Como os pais.
Tudo foi dado e oferecido de bandeja a estes meninos. Seus pais viram de repente os seus ordenados e reformas (para os que tinham direito a reforma) aumentarem como se lhes tivesse saído o Euromilhões. Já não era preciso pôr os meninos a trabalhar. Foram então estudar. No auge da liberdade, foi-lhes também ensinado a igualdade. Igualdade, para eles, significava que agora eram iguais aos «filhos de algo» dos fidalgos de antes de Abril de 1974. Não eram, e os mesmos filhos de algo da "velha nobreza" depressa lho mostraram com enxovalhos vários, mas não aprenderam daí nenhuma lição valiosa e positiva para o progresso da sociedade, como a seguir demonstrarei. Tiveram os estudos facilitados mas ainda de qualidade (não esta bandalheira que eu já apanhei no meu tempo em que já não se ensinava a ler e escrever e fazer contas) suficiente para dominarem línguas, matemática, ciências, e extravagâncias do calibre de realmente aprender Latim, Grego, e outras disciplinas de passatempo que contribuíram para a sua cultura geral e nada mais. Ao saírem dos liceus e faculdades tinham emprego à sua espera. O país asfixiava com a célebre falta de quadros. Os fundos europeus expandiram a economia como um balão (que agora se vê, estava mesmo vazio) e faziam falta todos esses técnicos e licenciados acabadinhos de sair do forno. Aproveitaram e fizeram muito bem. Não os condeno nem é a inveja que me faz falar. Sim, porque a economia era afinal uma fachada e depressa se preencheram os "bonecos" necessários para a enfeitar. São hoje advogados, médicos, engenheiros, gestores, jornalistas, professores do ensino secundários ou superior, juízes, arquitectos, funcionários públicos de carreira, you name it. Compraram casa, deram-se ao luxo de ter filhos, podem viajar, fazem actualmente do consumismo a base da sua vida.
Tudo muito bom, excepto o pior. Na escola, já em liberdade, aprenderam mal o conceito de igualdade. Perceberam-no como "também subir ao poleiro e também cagar nos outros". Quase literalmente. O conceito de fraternidade nunca lhes passou dos ouvidos, apesar de terem a certo ponto, nas aulas de História, decorado muito bem as três palavrinhas mágicas: liberdade, igualdade, fraternidade. Da lição nem o sumo lamberam. A terceira palavra, então, soa-lhes mal como um palavrão. Pica. Incomoda. É só para gente lamechas ou religiosamente alienada. O conceito de Ética ficou lá para trás, com Platão. Hoje ouvem a palavra e lembram-se dos bons velhos tempos da escola e da primeira coca-cola ou da primeira revista pornográfica. É tudo a mesma coisa. Mitos de liceu.
Bem postos na vida, são actualmente os primeiros a explorar sem dó nem piedade os irmãos mais novos, a quem chamaram geração rasca, a quem pagam com recibos verdes, a quem não reconhecem as habilitações, a quem tentam cortar as pernas porque têm medo do mérito dos que se lhes seguem. Instalados, tentam ser iguais, sim, aos fidalgos que tentam imitar, tornam-se numa imensa mole de classe média alta entre os 40 e 50 anos que só se rala com a sua vidinha e não sabe o que é ter uma licenciatura e não ter emprego, chegar aos 35 anos e ser considerado velho para trabalhar, ou acabar um curso superior e nem sequer ter a oportunidade de exercê-lo (falo agora de gerações ainda mais recentes que a minha cuja esperança média de vida profissional, como eles bem sabem, é sair da incubadora do secundário para um curso superior de inferior qualidade e deste directamente para o call center ou a caixa de supermercado). É esta geração de Joões Mirandas (Blasfémias) de discursos neo-liberais, de elites pseudo culturais que lê romances com muitos diálogos e acha que é chique frequentar o CCB, de choques tecnológicos que noutros tempos nunca saíriam da Covilhã e de Boliqueime mas que hoje se sentam respectivamente em São Bento e Belém, e é também esta a geração de uma esquerda caviar (só hoje percebi a plena amplitude do termo, daí a razão deste post sair esta noite, porque se aprende mais em minutos de call center do que em anos de Sociologia) que nunca teve de lutar por coisa nenhuma excepto ganhar votos para sentar o cu no parlamento (e eu fui ingénua ao ponto de votar no Bloco de Esquerda mas para esse peditório já dei). É esta a geração que humilha os licenciados (já não muito jovens) que se sentam nos cursos de formação (obrigatórios) do Centro de Emprego e tem o descaramento de se gabar que nunca esteve desempregado. É esta geração que se vira para um "serviçal" e pergunta "você sabe quem eu sou?". É esta geração que manda nas redacções dos jornais (e que os vendeu à voz do dono) e no Sindicato dos Jornalistas, sem a mínima pinga de vergonha por se intitular jornalista ao mesmo tempo que oferece subsídios de alimentação como ordenado aos colegas-escravos que fazem o trabalho por ele. É a geração que faz questão de pôr um "dr" ou um "eng" à frente do nome. É a geração que não pensa nas gerações que vêm depois e que por isso pôs o país a saque espanhol. É a mesma geração que importa escravos de África, do Brasil e da Ucrânia para não dar emprego aos jovens nacionais a quem teria de pagar ligeiramente mais. É também a mesma geração que fomenta ódios raciais pós colonialistas e se dedica ao aliciamento de uma guerrilha neo-nazi cujo fim último se desconhece excepto o gosto pelo sangue que nasce da revolta dos recrutados vítimas de lavagem cerebral. É esta mesma a geração que ocupa lugares cativos que não teme perder e não deixa renovar. É a geração a quem deram tudo menos uma coisa: o valor da palavra Ética.
Nesta geração há excepções. Geralmente encontram-se (e não de estranhar) entre aqueles que já nasceram no dinheiro, mas também aqui há excepções. Muitos são heróis e escrevem na blogosfera e até apanham processos em tribunais por se atreverem a denunciar a verdade. A maioria, porém, dedica-se a chacinar as gerações mais novas, esquecendo, estupidamente, fruto do seu egoísmo visceral de meninos mimados, os próprios filhos que um dia pagarão também pela queda das fachadas que os pais se esforçaram tanto por manter erguidas à custa do trabalho escravo dos filhos dos outros.
Nesse dia vou-me rir. Não vou sorrir, isso não, porque o sorriso é para as coisas boas, mas o riso também serve para as más. E vem por aí uma barrigada de riso como nunca tive. Não enche, mas conforta. Esta é apenas uma das primeiras gargalhadas. No mundo real podem conseguir calar-nos mas na internet não.

12 comentários:

Anónimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anónimo disse...

Nem mais...E sabes que não te vais rir sozinha, não sabes?
***

Tomás disse...

Tens um jeito especial para contar histórias bem contadas. Deixa-me ser apenas mais um entre muitos (espero eu) a felicitar-te por isso.
Mas lembras-me um fundamentalista religioso com a tua insistência na ética e na fraternidade. Não no registo de sermão de padre ou lenga-lenga aborrecida, mas naquele registo de pessoa tão possuida por uma visão particular do mundo que considera todos os que não a partilham como sub-humanos ou "sem alma".

O que achas que se devia fazer a todas as pessoas que não acreditam na Ética e não subscrevem a fraternidade? Metê-los a todos em campos de concentração e reeducá-los? Distribuir umas chapadas que estiveram em falta quando eram crianças? Removê-los de circulação? Purgar os heréticos?

Anónimo disse...

Prezados clientes
Quem quer comprar carne de 1ª qualidade é favor de me contactar…vendemos carne fresca do sudoeste asiático.Carne tenra e fresca ( ainda menores)de primeira mão, sem doenças contaminadas, algumas ainda usa fraldas….vitório é prova de qualidade. também tenho bom vinho, da terra do meu avô, loucor beirão acompanhado com o chouriço português do meu avô…ainda tenho pra vender os meus tomates, ainda virgens e frescas…acompanha de suco bem doce…pois confeço que tenho diabetes, ainda vendo em saldos bananão bem grande de de marca tiu monte, acreditam que nunca viram banana tão grande e rígida, também acompanhada de suco que é especialidade da casa…não esqueçam que também tenho chourição (dos grandes)à venda e tão boa qualidade que até se vibram…fazemos entregas ao domicílio…para terminar apresento-vos o meu chouricao de burro, directamente do meu quintal sempre de melhor qualidade, e garanto-vos quevao ficar mais espertos depois de comer chouricao de burro

saudações

Anónimo disse...

É impressão minha, ou aquilo que o "Sr.Vitório" queria dizer com tão longo e criativo texto publicitário, se podia resumir a uma só frase...?

C. J. disse...

:)))

Fata Morgana disse...

Sim, o discurso do Sr. Vitório podia resumir-se numa só frase :)))

O texto da Gótica não, claro. Aliás, como de costume, é muito bom.

Pessoalmente, sinto a falta de uma coisa, que é ler sobre aqueles que tendo lugar garantido para sentar o cu, nunca o fizeram ou fizeram-no "contra a corrente", chatearam a família, enfim. Mas entendo que optaste pelo que aconteceu/acontece quase sempre.

Devias escrever um livro!

Beijos*
Fata Morgana

H. Sousa disse...

Bom texto, Gotika! Concordo com morgana la folle, escreve o livro e publica pela Lulu.com, gratuitamente, compra quem quiser e ainda podes ganhar com isso.
Parabéns pelo texto.

Anónimo disse...

Peço desculpa, mas o Tomás deixou-me muitas dúvidas que não posso esclarecer apenas consultando o dicionário. O que é saudável, pois no dia que deixarmos de as ter, é mau sinal, mas:

A Ética diz só respeito a crenças religiosas, para poder ou não acreditar-se nela?

E a Lei e as normas (sociais,judiciais, profissionais...), baseiam-se em princípios éticos?

E não subscrever a Fraternidade significa não aceitar nem aprovar o respeito pelo próximo? É ignorar os direitos (sociais, políticos e individuais) de todos os que convivem em sociedade?

E porque é que a fraternidade é confundida com caridade? Se a primeira defende a igualdade entre os homens; a segunda centra-se na desigualdade entre os mesmos, já que leva uns a possuir mais direitos do que os outros, e a sentirem-se superiores e generosos, quando os partilham com os mais desfavorecidos.

E o que significa viver em sociedade? O que é preciso ser e fazer para se viver em sociedade, para além de respirar, beber, comer e outras necessidades biológicas que o Tomás tanto descreve no seu blog? ;)

E o que é um “sub-humano” ou pessoa “sem alma”, para quem não é espiritualista?

e-ko disse...

gostei destas histórias... visão muito justa.

katrina a gotika disse...

Vou também responder ao Tomás.

O que achas que se devia fazer a todas as pessoas que não acreditam na Ética e não subscrevem a fraternidade? Metê-los a todos em campos de concentração e reeducá-los? Distribuir umas chapadas que estiveram em falta quando eram crianças? Removê-los de circulação? Purgar os heréticos?

Geralmente são as pessoas sem ética que tentam meter os outros num campo de concentração e exterminá-los. E esta não é uma boa história inventada por mim (mas obrigada pelas palavras elogiosas, estava de facto inspirada nesse dia) mas infelizmente real, muito real.
Este simples parágrafo, para bom entendedor, chegaria como resposta, mas quero dizer mais.
A sociedade humana, como a Psiquê abordou acima, já para não falar do sucesso da espécie como um todo, baseia-se em mais do que a sobrevivência do mais apto. Aliás, basta olhar para a natureza e perceber que são as espécies que estabelecem melhores laços de entreajuda social, desde os leões aos chimpanzés passando pelas curiosas sericatas, que mais hipóteses têm de sobrevivência num ambiente hostil. A solidariedade é uma forma de inteligência. Não querendo ser uma darwinista social, mas não desprezando os argumentos da tese, o ser humano tem toda a conveniência em ser solidário, ético, ou, se quiserem, em seguir a regra dourada de "não fazer aos outros o que não queres que te façam a ti". No mínimo, evita o conflito social. Isto já é ser muito cínica (ou simplesmente darwinista social) mas parece-me que a sociedade funciona melhor quando os seus elementos sabem (porque são inteligentes) que as gerações mais novas não pretendem eutanaziá-los quando chegarem à velhice. Na selva manda a lei da selva. Mas não é na selva que a sociedade avança e progride. Não é num clima de guerra social e desconfiança generalizada que a espécie se mantém.
Nem com os leões isso funciona. O leão dominante mata as crias do leão derrotado, mas na sociedade dos leões não há memória, nem sensibilidade, porque não o QI não é suficientemente evoluído. A memória, a sensibilidade, são demonstrações de inteligência. Se a leoa se lembrasse que o leão alfa lhe matou os filhos era o fim da sociedade dos leões. E nós temos obrigação de agir de forma mais inteligente do que leões porque somos mais inteligentes.
O que fazer então aos que não percebem o interesse da ética para a sobrevivência da espécie? Tratá-los como gente menos inteligente, nem mais nem menos. Em alguns casos, tratá-los como os criminosos que são (quando o são e muitos são). A ideia de exterminar atrasados mentais também não é nova e também não é minha. Mas é contra a coesão social e todo o progresso da espécie, nem que seja porque as "leoas" do género humano não esquecem. Ainda estamos a pagar pela última experiência em ética. Mas a memória de alguns parece ser curta. Esperemos que a memória (mesmo inconsciente) da maioria seja de maior duração, ou estamos bem fodidos, curto e grosso.

Fernando disse...

Tinha 3 anos em 1974 e entrei na Universidade em 1990 e, mesmo assim, fizeste-me sentir culpado... Sabes, gostava de ter mais alunos/as como tu, mas, em vez disso, apanho com a massa amorfa que essa geração que tanto criticas educou.