terça-feira, 4 de janeiro de 2005

O primeiro ano

Em estilo de resposta ao Fernando, do Angústias de um Professor, a aluna vai tentar esmerar-se. (Sempre fui a aluna perfeita, mesmo quando era a aluna rebelde.)

Parabéns pelo aniversário do blog. Para lá de recordares o teu primeiro post, gostava que fizesses um balanço para além do óbvio. O que é que o blog te deu? Como é que lidas com o facto de tantas pessoas que não conheces te lerem com admiração? Por vezes, tenho a sensação que há um vazio entre mim e os leitores, que estou a escrever para o vácuo e que não comunico verdadeiramente... também sentes isso? Será que um post tem sempre de ter significado para alguém?


Este blog sempre foi um diário pessoal. Quando tinha 10 anos ofereceram-me um diário, daqueles com chave e tudo, e desde aí nunca mais parei de escrever. Houve interregnos nessa escrita. Mas subitamente algo me levava a pegar num caderno e escrever nele os meus pensamentos, desenhar as minhas visões, colar os meus recortes. Uma série de cadernos escolares serviram para esse fim e não outro.
Todos eles foram para o lixo, incluindo o primeiro diário. Eu não guardo. Eu deito tudo fora.
Esta é a continuação dessa introspecção, em formato virtual.
Porque sempre se tratou de instrospecção e nada mais.
Quando este blog começou, o objectivo não era falar sobre o gótico mas sobre mim, Gotika. Sim, exactamente, sobre mim. O meu diário. Onde eu pudesse dizer, as vezes que me apetecesse, nas palavras de Louis de Pointe du Lac, "Eu não sei o que quero".
Este blog não era para ter audiência.
A audiência foi um fenómeno posterior que, ao contrário do que acontecia com os meus cadernos secretos, me proporcionou feedback.
Mas no fundo continuo a escrever no caderno secreto.
Com algumas mudanças, confesso.
A audiência inibe a exposição da minha intimidade. Mas não completamente; no máximo, força-me a procurar formas mais subtis de a expressar. Palavras mais rebuscadas. Muitas metáforas. Até poesia. O que é também uma forma de terapia. Ao verbalizar a minha intimidade de forma codificada, vejo-me obrigada a repensá-la e, à boa maneira do psicanalista, interpretá-la vez após vez antes de apresentar ao leitor hipotético a confissão final.
A audiência trouxe outra novidade que me entusiasma particularmente. Agora sinto-me obrigada a partilhar as minhas descobertas culturais. "Obrigada" em itálico porque de facto me dá prazer escrever sobre filmes e livros que atravessam o meu caminho. Gosto de ler os comentários às minhas opiniões. É muito estimulante.
(Isso não poderia acontecer com os cadernos secretos, e é muito bom!!!)
A audiência também me fez perceber que as minhas palavras, que em princípio eram para aqui despejadas sem nenhuma intenção que não satisfazer uma necessidade egoísta de me analisar, são benéficas para algumas pessoas que gostam de as ler e pedem que continue a escrevê-las.
Mas não, não me sinto obrigada. Registo-o com apreço. O blog ultrapassou as intenções para que foi criado. Mas não deixa de ser o meu caderno secreto. Que não hajam dúvidas nem ilusões. Esta coisa é sobre mim. Às vezes desvio-me propositada e alegremente do assunto - que sou eu - e para gáudio de muitos leitores que de outra forma morrerriam de tédio. Mas continua a ser sobre mim. O mundo que me rodeia é apenas um pormenor no meu narcisismo.

Posto isto, vamos às questões, uma a uma.

O que é que o blog te deu?
Além da óbvia expressão dos meus pensamentos para que foi inicialmente criado, deu-me estímulo intelectual. Estímulo não só por escrever para mim, como por responder às pessoas intelectualmente estimulantes que por aqui passam e que fazem perguntas estimulantes - como o caro professor Fernando (esta é manteiga para a nota...) - como também, e se calhar não menos importante (pelo contrário, talvez até a verdadeira razão de ser deste blog), o derradeiro elo entre mim e uma intelectualidade que a vida quotidiana teima em roubar-me.
Uma vez apercebi-me de que se me fechassem num quarto escuro sem papel e caneta, eu cortaria as veias para escrever na parede nem que fosse com sangue. Ainda não chegámos a tanto... Mas as palavras têm que sair, a bem ou a mal.

Como é que lidas com o facto de tantas pessoas que não conheces te lerem com admiração?
Com distanciamento. Adoro a palavra inglesa para distanciamento, que é "detachment". Conheço bem demais as armadilhas do pedestal para ansiar por ele, mesmo nunca tendo participado no Big Brother.
Conheço a mente humana. Não sei se o professor sabe, mas eu fui uma aluna brilhante a Psicologia. Essa era a minha vocação primordial. Basicamente, eu não me limitava a estudar. Eu interiorizava. Há um fenómeno chamado "projecção" em que a pessoa projecta, como o nome indica, os seus desejos e medos na pessoa do seu afecto. Como diria a minha falecida psicóloga, a pessoa "fantasma" ideais.
Eu não quero ser um fantasma. Mas na impossibilidade de ser outra coisa, pois estamos no mundo virtual e todos não passamos senão de fantasmas, não posso impedir que me idealizem e me ponham no pedestal, mas posso e devo impedir-me de participar na alucinação colectiva.
Gosto de ser útil. Gosto de saber que estou a partilhar literatura, arte, música e cinema com as pessoas que me lêem. Gostei quando alguém me disse "obrigada por me dares a conhecer as Vampire Chronicles".
Gosto quando alguém me diz que as minhas palavras são um refresco numa tarde quente no escritório. Gosto de saber que dou prazer às pessoas que me lêem.
Mas sem perder a noção do distanciamento. Eu não existo. Sou um fantasma. Os meus próprios amigos não me conhecem e estão comigo há anos. É preciso ter isso sempre presente.
Ademais, este é um blog secreto. Só há duas pessoas que me conhecem que sabem que eu tenho um blog, e uma delas é espanhola e mal percebe o português. É difícil ficar vaidosa e convencida quando não nos andam a apertar a mão na rua. Mas eu gosto assim. Sinto-me uma espécie de super-heroína secreta que troca de roupa na cabine telefónica para se tornar na... Super-Gotika! :)
Esta última era uma piada. Toda a vaidade e arrogância e convencimento que vêem aqui não é culpa do blog. Eu já era assim. Deixem o blog em paz. O blog não sabe nada, não viu nada, nem tem culpa de nada. Simplesmente caiu nas mãos erradas.

Por vezes, tenho a sensação que há um vazio entre mim e os leitores, que estou a escrever para o vácuo e que não comunico verdadeiramente... também sentes isso?
Pois, lá está, também, mas só quando partilho a minha intimidade. Os tais posts que os voyers gostam de ler. Quando falo da minha vida. Quando expresso os meus sentimentos.
Aí percebo perfeitamente que ninguém percebeu nada de nada.
Mas é como digo, os amigos também não percebem e tinham obrigação de me conhecer. Talvez o único com perspicácia foi aquele que disse, certa vez, algures, "tu és muito incompreendida, não és?". Não é que eu não tente explicar, mas há coisas que só conhece quem passou por elas.
Este fosso, este abismo, já o conheço desde a infância quando eu era muito precoce para ter conversas com os meninos da minha idade mas não a maturidade suficiente para acompanhar as ideias dos mais velhos. Sempre tive uma existência muito solitária, perdida entre gerações. Entre mim e os da minha idade continua a existir o fosso da minha demasiada experiência para a minha idade, e entre mim e os mais velhos, a minha insuficiente experiência para a idade deles. Talvez um dia nos encontremos, mas, aos trinta anos, metade da vida pensante, já duvido muito que isso venha a acontecer, que as gerações se encontrem comigo visto que eu não me consigo encontrar com elas.

Quanto ao resto que eu escrevo aqui, acho que sim, que comunico, que me faço entender, nem que tenha de o dizer três vezes e de diferentes maneiras, uma para cada público. Mas não é de estranhar. Comunicação é a minha área de especialidade. Ou nunca tinham reparado?

Será que um post tem sempre de ter significado para alguém?
Não sei se tem que ter, mas sei que certamente tem. Nem que seja o significado mais deturpado que possas imaginar. Do género falares de alhos e responderem em bugalhos. Ou pior que bugalhos...
Do género de não terem a mais pequena pista de ideia do que tu estavas a querer dizer. Como expliquei acima, com os meus posts pessoais até é anedótico. Os comentários. É por isso que às vezes mando as pessoas a certa parte. É raiva. Raiva de não ser compreendida. Raiva deste abismo que me separa dos outros desde a infância. Depois passa-me.

Até agora, e mudando de assunto, o comentário mais hilariante que me deixaram neste blog foi "isso [o assunto do post] não interessa nada. Se quiseste fazer um blog gótico agora tens de escrever sobre assuntos góticos."
Parece que a pessoa em causa me queria despedir. Ou deixar de me pagar. Não percebi bem. Acho que a pessoa também não percebeu que aqui não manda a ponta de um corno. Que aqui só mando eu.
Ao contrário do que se passa no grupo MSN que entretanto criei, em que não manda ninguém. É a anarquia (dentro da legalidade, meninos, dentro da legalidade).

E já agora, vou tentar responder à minha própria questão, a questão que pus no ar a 18 de Dezembro de 2003:

Sou um ser under reconstruction.
Veremos o que sai da metamorfose.


Ainda não saiu nada. O ser continua em estado larvar. Posso sonhar que saia uma borboleta, mas pode sair traça. Ou barata apodrecida, à Kafka.
2004 foi para mim um ano de extrema instrospecção em que me vi obrigada - mais pela vida do que por vontade própria - a afastar-me das pessoas, inclusive dos amigos mais queridos.
Mas foi um ano melhor que 2003, um ano marcado pela disorientação (e dissolução) de uma loucura incontrolável. Foi o ano em que percebi que ia acabar num call center para o resto dos meus dias. Por isso andei bêbeda, a dormir na rua, a chegar a casa ao meio dia (depois de sair à meia noite), de cabeça perdida. Foi um rude golpe. Foi o enterrar da mentira do mérito que me contaram na escola. Não faças isso, professor, não alimentes a mentira do mérito.
Enfim, foi o funeral do mérito.
Este ano fiz-lhe o luto com mais pompa e circunstância, mais pesar e menos choque.
Agora que já não sei qual é o meu destino, procuro simplesmente não sair fora da estrada. E já tem sido um esforço monumental. Acho que ainda não foi desta que perdi a cabeça. Mas andou perto. Mais perto do que nunca. Uma igual e posso muito bem nunca mais voltar.
Conheço outros que se perderam por menos. Tenho sorte.
Este ano, vou tentar manter-me na estrada e não fugir para a floresta, de onde me tentam os Lobos Maus. São persuasivos, os Lobos Maus. E têm sempre vodka e rum e whisky para mim. Não são assim tão Maus, os bichinhos. São simplesmente incompreendidos.

Hoje, o ser continua em metamorfose.

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