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domingo, 25 de outubro de 2020

“A Estranha Morte do Professor Antena”, de Mário de Sá-Carneiro, in “A Dança dos Ossos”

 

[contém spoilers]

“A Estranha Morte do Professor Antena” é o último conto de autores portugueses na colectânea “A Dança dos Ossos”. Tal como “A Confissão de Lúcio”, também de Sá-Carneiro, na antologia em ebook Dentro da Noute” que deu origem a esta edição em papel, “A Estranha Morte do Professor Antena” é a chegada à modernidade numa colecção de clássicos iniciada com “O Defunto” de Eça de Queirós.
Li “A Estranha Morte do Professor Antena” ainda na adolescência e devo confessar que fiquei perturbada. Enquanto que em “A Confissão de Lúcio” temos um surrealismo psicológico (a mulher que desaparece perante os olhos de Lúcio, será que ela existe mesmo ou não passa de uma manifestação da homossexualidade do protagonista?), cheio de segundos sentidos e simbolismos, “A Estranha Morte do Professor Antena” é uma história de terror. Mais propriamente, uma história de ficção científica de terror, embora a explicação científica nunca entre em pormenores, deixando as culpas aos apontamentos (convenientemente) incompletos do Mestre.
É difícil analisar este conto sem o spoiler logo nas primeiras páginas, o spoiler que, afinal, dá título ao conto. O Prof. Antena morre vítima do que é oficialmente um atropelamento. Mas só agora o seu assistente, e narrador da história, vem a público revelar o que realmente aconteceu. O Prof. Antena descobriu uma maneira de viajar entre dimensões paralelas, só que teve o azar de entrar na dimensão errada à hora errada. Algo dessa dimensão o trucidou como a alguém colhido por um comboio. Desde que li este conto nunca mais achei interessante andar por aí a viajar entre dimensões. Sim, foi um conto difícil de esquecer, por muito que a base científica que lhe dá origem peque por insuficiente. Para conto de terror, no entanto, chega e sobra.
Nesta segunda leitura, o que mais me impressionou não foi a morte chocante do Prof. Antena, mas antes a questão das dimensões paralelas. Esta história foi publicada em 1915 (compilação “Céu em Fogo”). Onde é que Sá-Carneiro foi buscar estes conhecimentos científicos? Lovecraft, no mesmo período, arranja maneira de explicar estas coisas com portais abertos por deuses e extraterrestres. Havia sequer hipóteses científicas nesta época sobre dimensões paralelas, pergunto eu que não percebo quase nada do assunto? Mas de repente Mário de Sá-Carneiro fala do Espiritismo, e, por muito que os cientistas de hoje esperneiem de nojo, basta ler “O Livro dos Espíritos” de Allan Kardec, publicado em 1857, para ficar com uma ideia clara de vidas sucessivas em diferentes dimensões, até em diferentes mundos. E, de facto, o Prof. Antena não tenciona ir a uma dimensão “paralela” a esta em termos espaço-temporais; ele pensa que vai para uma dimensão da (sua) vida futura. O que difere da doutrina Espírita, se não estou em erro, é a questão de a vida futura poder decorrer em espaço-tempo simultâneo com a vida presente a ponto de ser possível atravessar de uma para a outra, como nas dimensões alternativas de ”The Man in the High Castle”. Mas outro livro de cariz igualmente espiritualista, “Conversas com Deus”, de Neale Donald Walsch, publicado em 1995, e com a Teoria das Cordas por base/inspiração, afirma que é bem possível que todas as dimensões, passadas, presentes e futuras, existam “agora” e que nós não tenhamos capacidade de as percepcionar. Rebuscado? A Teoria das Cordas também me parece rebuscada, uma coisa de ficção científica. Mas aparentemente há cientistas que trabalham a sério para a provar, bem como a uma Teoria de Tudo. Quem sou eu, ignara, para falar do que não sei?
Isto tudo para dizer que fiquei algo baralhada quanto ao conhecimento de dimensões espaço-temporais que haveria no tempo de Sá-Carneiro. Não era um bocadinho cedo para isto? Nesta altura ainda o Einstein andava a trabalhar na Teoria da Relatividade. Ter-se-á Sá-Carneiro realmente inspirado no Espiritismo?

Aceite a hipótese das vidas sucessivas e, de resto, preocupando-nos apenas com a de hoje e com a de ontem – onde se localizarão essas vidas, quais serão os seus meios?...
«Essas vidas existem sobrepostas, bem como os seus meios» – parece ter concluído o sábio. Unicamente os seres adaptados a uma vida, seriam insensíveis a outra. Assim não a poderiam ver, não a poderiam sentir, embora ela os trespassasse, os entrecruzasse.
(Citação do conto, mas de outra fonte que não “A Dança dos Ossos”.)


A nível espiritualista, acho tudo isto interessantíssimo. A nível científico é que não me interessa tanto. 
A escrita de Mário de Sá-Carneiro é a de um poeta e o seu estilo é tão único quanto a certa altura se torna cansativo. Principalmente as sinestesias e os galicismos, que aparentemente estavam tanto na moda que toda a escrita de Sá-Carneiro se agita* deles. (*Agitar, aqui, é um dos exemplos de galicismo que não devia aqui estar nem faz sentido em português.) É interessante na poesia, embora na minha opinião não deixe de ser batota linguística, mas permite-nos, pelo menos, experiências de dinamização da linguagem: umas que ficam, outras que se perdem. Mas esta linguagem em conto, especialmente quando lemos alguns contos seguidos, e neste conto em particular, não ajuda a criar o tal contexto de credibilidade que uma história de ficção científica de terror precisa. É claro que isto é a minha opinião de leitora do século XX-XXI, mas entretanto o terror escreve-se com uma linguagem mais próxima da realidade, exactamente para convencer o leitor a “acreditar”. Ao ler este conto eu lembro-me constantemente de que é um conto, e um conto escrito por um poeta, e a história perde muito do seu impacto por causa disso. Uma escrita mais científica e este conto seria perfeito. Mas, ressalvo novamente, isto é uma opinião de 2020, de uma leitora amante de um género que evoluiu para a excelência ao longo de um ou dois séculos. Mário de Sá-Carneiro ainda estava no domínio da experiência, de uma escrita “fora da caixa” para a altura, e aí é que está o seu grande mérito. Ademais, conseguiu que a história me perturbasse, sinestesias e galicismos à parte, e não é fácil perturbar uma leitora de Terror de finais do século XX.

“A Dança dos Ossos”
Mais algumas notas sobre a colectânea. Além dos contos já publicados em  “Dentro da Noute” – clicar na etiqueta abaixo para ver comentários a todos os contos portugueses presentes no ebook – a versão impressa inclui uma biografia resumida de cada autor antes do respectivo conto.
Saliento igualmente o excelente prefácio de António Monteiro, onde se debatem as origens da literatura fantástica em português e do género gótico em geral, de que já se falou aqui várias vezes.
Volto a expressar os meus parabéns pela iniciativa e a recomendar este livro a todos os que estão agora a tomar contacto com a literatura fantástica em português, bem como àqueles que a queiram recordar.
O design do Livro B, bem como as lendárias páginas azuis, vão certamente despertar nostalgias.
Para quem ainda não pensou nisso, eis aqui um excelente presente para as pessoas que gostam de literatura gótica. Mas não mo ofereçam a mim porque já tenho um exemplar. ;)


domingo, 17 de maio de 2020

A Dança dos Ossos, edições Livro B


A Dança dos Ossos” é a edição Livro B de um ebook já aqui muito falado, “Dentro da Noute”, organizado por Ricardo Lourenço.
(Basta seguir a etiqueta “Dentro da Noute” para encontrar comentários a todos os contos portugueses desta antologia.)
Embora eu prefira muito mais o título “Dentro da Noute” (assim mesmo, arcaico e tudo), o melhor motivo para mudar o título deste “A Dança dos Ossos” é que um dos contos foi substituído: em vez de “A Confissão de Lúcio”, no original digital, “A Estranha Morte do Prof. Antena”, do mesmo autor Mário de Sá Carneiro (o que faz sentido, uma vez que  “A Confissão de Lúcio” talvez fosse muito extensa para a edição em papel).
“A Dança dos Ossos” está disponível no website da colecção Livro B. Transcrevo de lá o texto introdutório:

As origens da literatura popular luso-brasileira com temáticas de sempre: crime, sobrenatural, romance.

A génese do movimento gótico teve lugar na Alemanha no século XVIII (a balada"Lenore" de Gothfried August Burger é considerada a obra iniciadora do género). Como nunca antes, numa espécie de onda imparável, a moda espalhou-se pela Europa e pelo mundo ocidental em geral. As razões conjugavam-se para justificar esse sucesso: o livro impresso vulgarizava-se e tornava-se acessível em termos de preço; com mais acesso a fontes de escrita e a projectos pioneiros de ensino, uma grande parte da população começou a aceder com maior ou menor facilidade a uma educação básica que antes era simplesmente inexistente; os escritores encontravam, pela primeira vez, um mercado propriamente dito adequando, pela primeira vez na história, a sua produção a uma procura crescente. 

Dessa forma encontra-se no gótico literário a génese da literatura policial, fantástica, da ficção científica, da literatura de acção ou, até, da dita literatura romântica.

No mundo lusófono, traduções de Ann Radcliffe, Fréderic Soulié e muitos dos primeiros best-sellers do gótico chegaram já no século XIX e o movimento, por cá, mesclou-se, de alguma forma, com o ultra-romantismo

Nesta antologia, preparada por Ricardo Lourenço, encontramos uma amostra choruda dos grandes expoentes do género no universo luso-brasileiro, catalogando uma panóplia de temáticas que vieram a marcr toda a literatura popular dos séculos seguintes e que ainda hoje mantém a sua actualidade bem fresca.

Contos e Novelas Portugueses
1. «O Defunto», de Eça de Queirós
2. «A Dama Pé-de-Cabra», de Alexandre Herculano
3. «A Caveira», de Camilo Castelo Branco
4. «A Torre Derrocada», de Alberto Osório de Vasconcelos
5. «O Mistério da Árvore», de Raul Brandão
6. «O Corvo», de Fialho de Almeida
7. «A Feiticeira», de Ana de Castro Osório
8. «A Morta», de Florbela Espanca
9. «Os Canibais», de Álvaro do Carvalhal
10. «Uma Récita do Roberto do Diabo», de Júlio César Machado
11. «O Cadáver», de Beldemónio
12. «Sede de Sangue», de Manuel Teixeira Gomes
13. «A Estranha Morte do Prof. Antena», de Mário de Sá-Carneiro

Contos e Novelas Brasileiros
1. «Noite na Taverna», de Álvares de Azevedo
2. «A Dança dos Ossos», de Bernardo Guimarães
3. «Os Porcos», de Júlia Lopes de Almeida
4. «Acauã», de Inglês de Sousa
5. «Violação», de Rodolfo Teófilo
6. «Maibi», de Alberto Rangel
7. «Assombramento», de Afonso Arinos
8. «11 e 20», de Medeiros e Albuquerque
9. «Demônios», de Aluísio Azevedo
10. «O Defunto», de Tomás Lopes
11. «A Causa Secreta», de Machado de Assis
12. «O Bebê de Tarlatana Rosa», de João do Rio
13. «Confirmação», de Gonzaga Duque
14. «Os Olhos que Comiam Carne», de Humberto de Campos

Recomendo a antologia a toda a gente que gosta de literatura gótica (e de literatura portuguesa), especialmente àqueles que ainda não tiveram muito contacto com ela. Aos outros, esta antologia vai com certeza despertar memórias e recordar o motivo pelo qual já temos os nossos autores preferidos.
E aproveito para dar os parabéns ao Ricardo Lourenço pela iniciativa. Desejo muita sorte para esta antologia, e cá fico à espera de mais iniciativas deste tipo, ou de outro.

O Livro B
Saúdo a iniciativa de trazer de volta a colecção Livro B. Estes livrinhos, de tamanho muito pequeno e capa negra (e às vezes páginas azuis de papel muito fino e letra muito pequena), são em grande parte responsáveis pela minha educação literária. Por serem pequenos, eram também baratos. Noutros tempos, nunca ia à Feira do Livro sem trazer uma carrada deles, o que me deu a conhecer autores que de outra forma me teriam passado ao lado. De alguns gostei, com outros fiquei decepcionada, mas o importante é que graças à colecção fui exposta a muitos tipos de escritores e diferentes géneros, encaminhando os meus gostos literários na direcção em que acabariam por solidificar mais tarde.
Por esta educação literária, indescritivelmente superior à que tive na escola, estou muito grata ao Livro B e à sua colecção original. Foi aqui que li “Do Assassínio como uma das Belas-artes” de Thomas de Quincey; “Paraísos Artificiais” de Charles Baudelaire; “Frankenstein” de Mary Shelley; “As Filhas do Fogo” de Gérard de Nerval; “Os Demónios de Randolph Carter” de H. P. Lovecraft; “O Cocheiro da Morte” de Selma Lagerlöf (um dos meus preferidos e um livro que me marcou muito); “O Altar dos Mortos” de Henry James; “O Castelo de Otranto” de Horace Walpole (considerado a primeira obra de literatura gótica); “Os Cisnes Selvagens e Outros Contos” de Hans Christian Andersen, e isto só para recordar os favoritos. Muitos outros li também e, embora não sendo preferidos, deram-me a conhecer contos de autores que me levaram mais tarde a procurar as suas obras mais importantes, como “A Mulher Pobre” de Léon Bloy ou “Carmilla” de Joseph Sheridan Le Fanu. Este sim, é um plano de leitura cinco estrelas.
Vou continuar a ser uma leitora desta nova colecção do Livro B, mas tenho uma crítica a fazer. Estamos na era digital e estas novas edições não incluem o ebook. É pena, para quem como eu desistiu do papel (muitos motivos, desde os ecológicos à falta de espaço e à facilidade de transporte em dispositivos digitais). Já é altura de as editoras portuguesas (não só esta como todas) acompanharem o espírito dos tempos e perceberem que o ebook veio para ficar e muitos leitores já não querem o papel. Ignorar este facto é perderem leitores pagantes, para seu prejuízo. E nosso, também.