Gravei este filme na dúvida de já o ter visto ou não. Se vi, absolutamente nada me recordou de já ter visto. Mas este é daqueles filmes que se esquecem. 24 anos depois é possível que não reste a mais leve memória.
O título português é enganoso e leva em erro. Não há aqui nada de Bíblia nem de Satanás. Assumidamente inspirado em Lovecraft, a começar pelo título que nos remete imediatamente para o conto At the Mountains of Madness, a ameaça vem de uns seres Antigos que querem deixar os “abismos inomináveis e tenebrosos” [palavras minhas] e tomar conta do mundo. São os Antigos de H. P. Lovecraft. Tentar adaptar ideias de Lovecraft é sempre uma ideia interessante, mas falha na execução.
No filme, um escritor de sucesso no género do terror (a lembrar Stephen King) desaparece com o manuscrito do seu último livro. Um investigador de seguros (Sam Neill), especializado em fraudes, é contratado pela seguradora da editora lesada para o encontrar. Segundo este, o desaparecimento do escritor é um golpe de marketing e uma fraude à seguradora. (O que não faz muito sentido, pensando nisso. Se a editora estivesse a par do marketing não chamaria a seguradora. Mas avançando.) Seguindo as pistas dos livros, o agente de seguros convence-se de que a cidade ficcional onde se passam as histórias do autor é de facto real, e segue o escritor até lá após transpor um portal que existe na estrada. Ao chegar, descobre que os habitantes da cidade já começaram a ser possuídos pelos Antigos, exibindo deformações físicas como tentáculos e cometendo actos de grande violência. Entretanto, no mundo lá fora, os leitores dos livros anteriores do mesmo autor também estão a enlouquecer. O medo que o filme quer transmitir é que qualquer pessoa que leia os livros ou veja o filme (este filme) também enlouquecerá.
Como é fácil de perceber, o filme não convence. Se calhar é o início prosaico, que mais parece um policial, que nunca nos submerge num ambiente de terror minimamente credível. A citação de certos trechos de Lovecraft, neste contexto de modernidade, até nos soa a má escrita. Nada mais injusto. A linguagem literária de Lovecraft é de facto antiquada e rebuscada, mas é também por isso que resulta. Cria toda uma atmosfera que nos faz deslizar, sem nos apercebermos, para dentro de um universo que nos vai inquietando a cada palavra. Quando Kthullu aparece, acreditamos. É esta submersão que o filme nunca consegue, nem de longe.
Trilogia do Apocalipse
Quando acabei de ver fui novamente verificar se era um mesmo um filme John Carpenter (razão por que o gravei) ou se me tinha enganado. Mas é mesmo um filme de John Carpenter, mestre do terror que muito aprecio e respeito. O argumento não é dele mas de Michael De Luca, mas John Carpenter gosta deste filme e considera-o a terceira parte da sua “trilogia do apocalipse” (a seguir a The Thing e Prince Of Darkness). É difícil, a esta distância, recordar a relevância na altura dos temas que são abordados, nomeadamente o descrédito da religião e a vontade das massas em tomar a fantasia por realidade. Tudo isto agora nos parece tão batido. Tão quotidiano, tão fake news. Sem precisarmos sequer de monstros a ajudar. O final até é interessante, com o agente de seguros a sair do hospital psiquiátrico em que tinha sido internado, um dos únicos sobreviventes à loucura que toma conta da humanidade. Mas depois de ver Rick Grimes acordar do coma e sair do hospital para um mundo apocalíptico de zombies, esta cena já não tem o impacto que teria se a tivesse visto primeiro. (Será que vi? Será que os criadores do comic The Walking Dead viram? Não faço ideia. A cena é semelhante.)
Quanto aos efeitos especiais, é injusto falar deles 24 anos depois e sem alertar que o filme é de baixo orçamento. Os efeitos especiais são muito maus, vistos hoje em dia, a lembrar as criaturas de plástico dos piores filmes do canal SyFy. Isto também não ajuda a convencer-nos quando finalmente vemos os monstros.
Se era eficiente em 1994? Lembro-me de ter visto muito melhor, até antes, mas também não consigo dizer se estes efeitos especiais eram abaixo da média para a altura. Se calhar até não eram. Não me lembro assim tão bem dos filmes medianos. Só me lembro dos bons, um deles The Thing, do mesmo realizador, que é de arrepiar ainda hoje.
Este é um filme datado que não sobreviveu ao teste do tempo. Reparei, por exemplo, que o agente de seguros se acha no direito de tratar a protagonista como se fosse um objecto sexual só porque é atraente (Julie Carmen). A personagem feminina também parece achar muito normal que ele lhe chame “querida” e se atire a ela descaradamente, num ambiente de trabalho, sem a conhecer de lado nenhum. O cúmulo foi quando chegaram à tal cidade fictícia e ele só alugou um quarto para os dois. (O que raio foi isto?! Eles não estavam numa relação.) Em tempos de movimento “Me Too”, é difícil de acreditar.
Mas fez-me igualmente questionar, enquanto estava a ver, se devia estar a prestar mais atenção a estas coisas, num filme de terror, do que à acção propriamente dita.
Li várias críticas ao filme, das piores às melhores. Alguns fãs (certamente) chamam a este o melhor filme de Carpenter pelas questões filosóficas que aborda. Não, nem pensar. Nem assim. Este é o senhor que nos deu The Thing, Assalto à 13ª Esquadra, Christine, Halloween, O Nevoeiro. Este filme não está minimamente à altura destes outros títulos. Também não direi que é o pior filme de John Carpenter, mas é de certeza um dos piorzinhos. Culpo principalmente o enredo que nunca nos consegue convencer, muito menos perturbar.
(Como curiosidade, reparei logo, no genérico, no nome de um desconhecido Gregory Nicotero nos efeitos especiais de maquilhagem. Hoje em dia milhões de pessoas o reconhecem como Greg Nicotero do genérico de The Walking Dead. Os efeitos de maquilhagem ainda são dos melhores que o filme apresenta. Nada ao nível que estamos habituados hoje em dia, mas é injusto comparar.)
Achei este filme tão datado, a todos os níveis, que não vou dar nota. 24 anos depois é fácil ser injusto para com um filme que na altura podia ser apenas mediano e que hoje nos parece simplesmente mau.
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