domingo, 6 de março de 2016

Dark Matter (série TV)


Seis pessoas acordam numa nave espacial à deriva sem que tenham memória de quem são, de onde estão, de onde vêm e para onde vão. Não sabem se são a tripulação, não sabem sequer os seus nomes.
A premissa é suficientemente interessante mas, mal impressionada pela falta de qualidade do canal em geral (SyFy), não comecei a acompanhar imediatamente. Só apanhei a série na repetição, e fiquei agradavelmente surpreendida. Já aqui disse muitas vezes que não sou grande apreciadora de ficção científica, mas sei que a ficção científica tem servido, ao longo da existência do género e nos seus melhores exemplos, para criar obras de grande profundidade filosófica. Não estou a dizer que "Dark Matter" seja uma grande série do género, ou que a premissa seja original (na verdade não sei se é original ou não, não acompanho a produção de ficção científica o suficiente para poder afirmá-lo), mas fiquei agarradíssima desde o primeiro episódio! Parte por opção, parte devido ao baixo orçamento, é uma história que dá primazia às questões filosóficas e psicológicas em detrimento do aparato científico (que não existe, o que poderá desagradar aos fãs mais exigentes que querem ver efeitos especiais e criaturas de outros mundos, mas a mim não me incomoda nada).
A série vive do mistério e do suspense, principalmente do mistério, e para escrever esta crítica terei de fornecer mais elementos além da sinopse, mas acredito que não serão os suficientes para constituírem um spoiler significativo.
Voltemos, então, ao princípio. Seis pessoas (quatro homens, uma mulher e uma adolescente), acordam à deriva numa nave espacial sem saberem quem são e que fazem ali. Mal começam a perceber a sua situação quando um deles reanima uma andróide que encontra na nave, desconhecendo que esta está programada para matá-los. Conseguem travar e reprogramar a Andróide, mas esta reprogramação também lhe apaga a memória, colocando-a na mesma situação dos passageiros humanos. As únicas pistas que encontram são em vestígios de ficheiros apagados e corrompidos no computador central, que lhes confirmam que eles são de facto a tripulação da nave em que se encontram. Mais ainda, alguém, muito provavelmente um deles, utilizou um programa/vírus que apagou a memória a todos os outros e, talvez por erro, a sua própria.
Só este enredo bastava para um thriller de suspeita e tensão, em que todos os membros da tripulação se podiam acabar a matar uns aos outros. A série não foi por aí. Tudo isto aconteceu no primeiro episódio, quando de repente são atacados por um inimigo desconhecido, antes ainda de saberem quem são. O que os põe, imediatamente, e literalmente, no mesmo barco (nave). Os nossos passageiros amnésicos só têm tempo de respirar um pouco depois, quando entretanto a Andróide já tinha conseguido recuperar mais ficheiros apagados sobre as suas identidades. É o grande choque: quase todos são criminosos perigosos e procurados. Tirando a adolescente, todos eles são assassinos, ou assim dizem os ficheiros.
Tem sido uma das perguntas mais intrigantes da história da filosofia e da psicologia: a tábua rasa. Hoje sabemos que o ser humano não nasce uma "tábua rasa". No mínimo dos mínimos, o ser humano traz consigo uma herança genética. Ainda há muita controvérsia, no entanto, acerca de se o ser humano já nasce com uma personalidade ou se esta personalidade é moldada pela influência do meio. Da minha observação e experiência pessoais, sim, penso que o ser humano já nasce com uma "tendência de personalidade", por vezes até antagónica ao meio, mas há quem não acredite nisto, e, não sendo ético fazer experiências em seres humanos (desde bebés) de modo a prová-lo, o debate persiste.
O que esta série pergunta, neste momento crucial, é igualmente intrigante. Temos aqui cinco espécimes a quem é dito que são criminosos. Sem a memória de experiências passadas, sem a memória dos constrangimentos de infância e influências da adolescência, sem memórias da educação e dos princípios incutidos ao longo da vida, confrontados com a oportunidade de começar do zero, fazer tábua rasa, e mudar de vida, o que decidem fazer?
O que nos leva à pergunta mais intrigante, se não a mais importante de todas: o ser humano nasce inerentemente bom, ou inerentemente mau, ou as suas tendências morais dependem inteiramente da influência do meio?
A série parece defender a tese de que o ser humano nasce inerentemente bom, porque ao verem os ficheiros os nossos personagens reagem com perplexidade e choque, como se não pudessem ter ficado mais surpreendidos, se não mesmo ofendidos. Nenhum deles parece reconhecer-se nas acusações que lhes são imputadas. (Ou alguém ali finge muito bem!)


Mais tarde, têm a oportunidade de ajudar uns completos estranhos numa situação desesperada. É o primeiro teste. Virão à superfície as criaturas egoístas que alguém diz que são, ou reagirão com o altruísmo desinteressado que contradiz as acusações por que são procurados?
Certas escolas de pensamento defendem que ninguém nasce "mau", que é o meio que empurra o indivíduo para acções condenáveis. Um indivíduo neste momento de libertação, de "renascimento", um indivíduo que não se lembra do meio nem das experiências passadas, voltará ao seu estado inicial "bom", ou nada fará senão manifestar as mesmas más tendências que o conduziram onde terminou antes da perda de memória? Isto é muito interessante, e é a questão fulcral em "Dark Matter".
Um dos personagens destaca-se pelo seu egoísmo. Vou chamar-lhe o Egoísta (embora os personagens tenham sido "baptizados" pela ordem em que acordaram do hipersono: Um, Dois, Três, Quatro, Cinco, Seis, e a Andróide). Este é o Três, mas eu não gosto de chamar números às pessoas e Egoísta diz muito mais dele. Pois, a tripulação punha a hipótese de vender a nave e dividir o dinheiro por todos, mas a maioria opôs-se. O homem ficou irritado porque queria pôr-se dali para fora e depressa, e diz algo assim: "Mas temos de ficar juntos porquê?! Somos seis estranhos e um robô!" Era exactamente o que eu pensaria. Só a ideia de ficar fechada em qualquer lugar com cinco estranhos provoca-me um ataque de nervos. O Egoísta vai falar com o Samurai (Quatro), tão ou mais egoísta do que o Egoísta, na tentativa de obter apoio para a ideia de vender a nave, quando o Samurai lhe explica que também não tem interesse nenhum em ficar ali, com cinco estranhos e um robô, mas "ainda é muito cedo". O Samurai pretende ficar até conseguir descobrir mais sobre a sua identidade, e não vai deixar os outros enquanto acreditar que juntos têm mais hipóteses de perceber o que se passou. O que é razoável, e até o Egoísta concorda, mas pôs-me a pensar noutra dimensão existencial deste problema. Aquele instante, inicial, de liberdade do indivíduo, terminou no momento em que os personagens se confrontaram com o mundo. Independentemente de serem criminosos ou não, independentemente do que pensam das acusações que lhe são feitas, é aquilo que o mundo, aparentemente, pensa deles, que introduz consequências que imediatamente limitam a liberdade individual, e não durou muito o instante de libertação em que o indivíduo podia ser tudo o que desejava. O indivíduo, em contacto com a sociedade, apenas é livre interiormente. Não é livre da maneira como a sociedade o vê, justa ou injustamente, e a sociedade fatalmente cerceia a liberdade individual.
Então, porque é que as pessoas se juntam? Porque é que aturam a família, os colegas de escola, os colegas de trabalho, até alguns amigos de conveniência? Não, não é porque o ser humano é um animal gregário e gosta muito de companhia. Ficamos juntos porque precisamos uns dos outros. Para sobreviver. O ser humano é um animal gregário porque há força nos números, porque desde tempos primitivos era necessário uma tribo para caçar um mamute e proteger o território de outras tribos, e da mesma maneira ainda hoje nos submetemos a viver debaixo do mesmo tecto com famílias que detestamos, e frequentar escolas e cursos que abominamos, e ir trabalhar porque precisamos de um meio de sobrevivência. A liberdade total só existe em estado selvagem, na selva, que é possível mas dá muito trabalho.
Os nossos personagens continuam amnésicos e indefinidos, tendo ainda a liberdade individual de escolherem o futuro, mas o momento inicial de liberdade absoluta já tinha passado e agora forçosamente têm de resolver primeiro o passado, assim que o descobrirem.
É interessantíssimo assistir a como aquele grupo de estranhos começa imediatamente com os joguinhos que tornam a insuportável a coexistência humana: os segredinhos, os golpes de poder, a manipulação. Fantástico, e ainda antes de se conhecerem a si próprios muito menos uns aos outros! Só por isto já vale bem a pena ver e eu diverti-me imenso!
"Dark Matter" pode não ser uma série de excepcional qualidade (nem tem os meios para isso) mas está muito acima de outras séries medíocres que têm saído de origens mais respeitáveis: "Under the Dome", "Sleepy Hollow", "The Strain"...
Por falar em "The Strain", não podia ter tomado melhor decisão o actor Roger Cross ao deixar-se decapitar por Setrakian, porque o personagem dele não ia a lado nenhum (nem a série, convenhamos) quando o aguardava um melhor papel como Six em "Dark Matter". Até Natalie Brown, actriz que interpreta uma personagem principal em "The Strain" (é a mamã vampira), arranjou tempo para figurar como convidada especial num episódio de "Dark Matter", o que nos diz muito sobre o ritmo -a falta de ritmo- que "The Strain" impõe tanto aos actores como aos pobres espectadores. E quando comparamos o que em princípio nem devia ter comparação, "Dark Matter", pelo menos, consegue manter o suspense de um episódio para o seguinte. É daquelas séries que apetece ver toda de uma vez. Assistir a "The Strain", pelo contrário, já se tornou um castigo masoquista.

Não é mau, mas podia ser melhor, mas não é mau
A série acabou com um choque! Um choque tão mal explicado e imprevisto que foi um alívio saber que renovaram para uma nova temporada. Podia ter acabado assim, e os espectadores podiam ter ficado para sempre a tecer explicações e conjecturas, mas quem é que quer isso? Por outro lado, eu talvez preferisse que a série tivesse resolvido a história nos 13 episódios, e terminasse ali. Notou-se, nesta primeira temporada, que houve muito "encher de chouriços", embora efectivamente bem justificados e disfarçados nos episódios em que foi necessário desenvolver os personagens de quem não sabíamos nada (nem eles deles próprios!). Receio, por isso, que a segunda temporada se torne ainda mais arrastada, que tem sido um mal generalizado a certas séries que começam com uma boa ideia e que depois se põem a fazer render o peixe enquanto houver audiência, o que transforma a boa ideia numa seca insuportável.
Terminada, então, esta primeira temporada, posso dizer que ficou abaixo das minhas expectativas. Tudo aqui indicava um drama psicológico e filosófico (e podia tê-lo sido, ao nível das melhores obras do género), mas demasiadas vezes a série enveredou por cenas de acção "rambóides" (até zombies isto meteu!) que só serviram para baixar o nível. Pode ser uma opinião, mas é a minha. Já não me queixo, todavia, do sentido de humor desta série. Muitas das piadas são subtis ou acontecem quando menos se espera. Uma das minhas preferidas, por exemplo, quando um dos personagens diz a outro: "A raiva não adianta". E o outro pergunta: "Estás a falar comigo?" E o primeiro responde: "Não. Estou a falar com o banco passivo-agressivo vazio a teu lado." Não é toda a gente que percebe estas piadas, e eu gosto disso. Existe inteligência por trás desta série, por muito que mascarada pelas necessidade de acção que entretenha a audiência menos... intelectual.
Por fim, o  que não será exactamente um spoiler porque nunca passou de uma conjectura minha, sempre pensei que o título "Dark Matter" significava que eles teriam perdido a memória ao passarem inadvertidamente por um qualquer campo "magnético" (ou afins) ainda desconhecido da ciência que tivesse esse efeito no cérebro humano. Afinal não era nada disso, e parece que o próprio título "Dark Matter" é simbólico e se refere à obscuridade em que ainda não sabemos muito sobre o cérebro, nem sobre o que nele guarda a memória ou a identidade, aquilo a que se chama alma. Como diz um dos personagens: "Compreendo que alguns de nós foram conduzidos a isto devido às circunstâncias, mas há pessoas que já nascem más e nunca mudarão." E como diz outro personagem: "No fim, acabamos sempre por ser quem somos". Quem discordar que argumente.
"Dark Matter" tenta demonstrar isso mesmo, como da amnésia cada um dos personagens regressa à sua essência, seja ela qual for, boa ou má ou nem uma nem outra. Não é uma série excepcional, mas consegue prender-nos de episódio para episódio e eu estou em pulgas pela segunda temporada. Em termos de narrativa baseada no mistério e no suspense, é o mínimo que se pode pedir e recomendo.
Um último destaque, muito especial, para a cena inicial do primeiro episódio da série. Se ainda não viram, reparem. Se já viram e não repararam, observem outra vez. A nave à deriva no espaço, completamente apagada, sem qualquer sinal de vida, transmite vibrações de Nostromo, numa homenagem a "Aliens". Homenagem que não é única, a "Aliens" e a outras obras míticas da ficção científica, mas esta primeira cena em especial promete-nos que não vamos assistir a uma série qualquer. Podia ser melhor? Podia ser muito melhor, mas funciona.


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