quinta-feira, 14 de agosto de 2008
História de uma pomba
Cheia de esperança, a pomba fez um ninho raso no nicho abrigado do portal de uma antiga igreja da velha parte da cidade. Não tem nome mas apraz-me chamar-lhe Eva. Aí, pôs dois ovinhos e deitou-se em cima, esperando. Durante umas duas semanas, sem exagero, vi a bichinha no seu longo aguardar, sobre os ovos, imóvel, como se fizesse parte da pedra daquele portal de Deus. Desconheço se saía para comer ou beber. Só a via à tarde e à noite.
Contra uma cidade que pune com coimas a tradição de dar milho aos pombos (mas hipócrita preserva a tradição bárbara de tortura ao touro no seu mais recente centro comercial), e que os considera uma praga, que gosta mais das suas estátuas e dos seus carros do que dos seus seres vivos, que os espalma debaixo dos pneus como se não tivessem tripas e crias para alimentar, nesta mesma cidade a corajosa Eva pôs dois ovinhos e esperou.
Não sei o que se passou. Ouvi dizer que a Câmara distribui (ou distrubuía) contraceptivo na comida de pombo para manter a sua população estável (ora aí está uma medida válida e humana). Terá sido por isso que não chocaram?
E os dias passaram e a esperançosa mãe abandonou o ninho. Os ovinhos não chocaram. A natureza não vingou na cidade fria como a pedra velha.
Hoje ali estão (dois, que só vi quando Eva se foi), prova de que o ser humano se tornou tão egoísta que merecia o mesmo destino: a fome, o esmagamento, e por fim a extinção.
Não revelo onde estão por medo de vandalismo. Exterminar tudo por onde passa é a especialidade do ser humano.
Vejam-nos apenas, aos dois ovinhos, pelo testemunho da minha lente. Não minto. Estão mesmo ali. A tentativa perdida de uma mãe como outra qualquer.
Mãe Eva, o teu pleito não está esquecido. Humanos até já tentaram exterminar humanos, e não conseguiram. Nem todos os humanos são menos que animais. Nem todos obedecem às leis desumanas do homem.
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8 comentários:
Espero que se não zangue comigo por tão pouco: parece-me que se trata de um macho, nestas imagens, e não de uma fêmea. Do muito pouco que sei sobre pombos, presumo que macho e fêmea se revezem no choco.
Gostei.
Como o jpg disse, ambos os membros do casal chocam, dando oportunidade para tanto um como a outro de se alimentarem.
Se só observaste uma Eva é caso para perguntar onde anda o Adão, uma vez que estas aves fazem casais para a vida.
O ninho parece bem construído, com as dimensões normais e materiais usuais (tanto quanto a foto deixa perceber). Será que já passou o tempo de choco? Ou a Eva foi só alimentar-se?
São muito feios os borrachos quando acabam de nascer, mas ía ser giro vê-los beber o leite do papo.
"Reprodução: Espécie monogâmica, sendo a relação normalmente mantida por bastantes anos. O
território é mantido e defendido pelo casal ao longo do ano, mesmo quando não estão a procriar.
Geralmente têm dois ninhos que usam alternadamente. Crias nidícolas. Ambos os progenitores cuidam
das crias. Durante a segunda postura, a fêmea passa mais tempo a incubar enquanto o macho cuida das
crias da primeira postura (Cramp & Simmons 1985)." in http://www.icn.pt/psrn2000/caracterizacao_valores_naturais/FAUNA/aves/Columba%20livia.pdf
Se não há Adão, imagina que a Eva anda a tomar conta de dois ninhos?
Gostei da tua história, afinal de contas ainda ninguém consegue perceber a linguagem de outros animais, por isso é muito positivo quando alguém a tenta colocar na nossa linguagem.
Bem, não foi para nada disto que escrevi esta peça,mas ok.
Os ovinhos continuam lá, abandonados, até que alguém os varra para o chão.
Mas já agora: "ía ser giro vê-los beber o leite do papo."
Leite?! Leite?!
Olá,
sem querer desvirtuar a peça, sim, chamam-lhe "leite do papo", LEITE e não é motivo para ficar com os cabelos em pé. Tem prolactina na sua composição.
Algumas aves adultas (pinguins, pombos, etc.) conseguem segregar este alimento nutritivo para alimentar as crias.
Mas nem só as aves podem produzir este alimento, alguns peixes também produzem leite para alimentar os recém-nascidos. Existem vestígios também de répteis que o fizeram (ex: cinodontes).
A lactação não é uma invenção dos mamíferos, antes uma herança com milhões de anos.
E se me perguntares outra vez, Leite?!, a minha resposta vai ser, sim, fresco por favor!
kiss*
Se tu o dizes...
Mas isto não era mesmo sobre nada disto.
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