quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Movimento gótico: Uma Perspectiva II

1987 não foi o ano em que cheguei à noite mas foi o ano em que a noite chegou até mim. Tudo o resto foi tempo perdido a aprender a invocar o demónio até que um dia me deram a chave do inferno, quando alguém sugeriu: "Uma pessoa que gosta de música como tu... devia comprar o Blitz". O Blitz, velhinho jornal que saía às terças feiras, era a nossa internet e a nossa bíblia. O Blitz mudou a minha vida. Mas a homenagem não se fica pelo Blitz. Naquele tempo, em que não havia internet, todas as novidades chegavam pela rádio. Havia alguns programas à meia-noite, na Rádio Comercial o António Sérgio com o lendário Som da Frente, e uma estação já desaparecida de que me lembro muito bem, o Correio da Manhã Rádio, que iniciava a programação nocturna com música de vanguarda e chegava a passar, pela noite fora, álbuns integrais de bandas diversas que encheram as minhas K7s. Lembro-me que a primeira vez que ouvi "This Corrosion" deve ter sido nesse programa do Correio da Manhã Rádio, 104.3, certamente entre a meia noite e as duas da manhã. A princípio aquilo pareceu-me excessivo, histérico, megalómano, e se pensarmos bem ainda o é, mas como em qualquer relação de amor já estava de joelhos a adorar num altar muito diferente dos Smiths, dos Cure, dos Jesus and Mary Chain, e dos outros vanguardistas da altura.
Chamava-se "vanguarda" à música de todas as bandas independentes dos anos 80. Não é à toa que se acusam os anos 90 de transformar o independente a um nível de comercial que tirou à vanguarda toda a sua originalidade. É a pura verdade. Sem esta comercialização fenómenos como os Nirvana nunca tinham tido a mesma divulgação. Mas tudo isto foi preparado nos anos 80, em que uma classe de jovens cada vez mais instruídos, apocalípticos e depressivos começaram em massa a rejeitar a música comercial, romântica, alegre, cliché, Abba em versão reciclada, que durante toda a década de 70 tinha vendido discos e discos. Já ninguém podia ouvir os Beatles. Ainda hoje lhes tenho uma alergia particular. Rolling Stones, então, têm o nível lírico de um atrasado mental. A mentalidade pós-punk e pós-glam exigia algo de novo, inteligente e estético, fruto directo de um "no future" com a beleza reconfortante dos anjos que decoram as campas do cemitério. Os "pós punks" estavam prontos para o gótico. E o gótico nasceu.
Nasceu em Leeds sem saber o que era. Bandas como os Sisters of Mercy, os Cult, os Fields of The Nephilim, seguiam uma linha estética de várias influências (em que os Led Zepellin são frequentemente acusados) que faziam um todo com os Bauhaus, os Joy Division (muito pioneiros mesmo), os Banshees da Siouxsie, os Dead Can Dance e os Cocteau Twins e toda a produção da editora independente 4AD sem me querer lembrar de todos, compondo um panorama já totalmente distinto de todas as outras experiências dos anos 80.
A nós chegou mais tarde, muito mais tarde, o que era completamente natural naquele tempo em que era preciso viajar para conhecer o que se passava no mundo. Viajar ou ter possibilidade de comprar revistas estrangeiras, ia tudo dar ao mesmo. A internet tornou democrático o que nos anos 80 era o privilégio da elite, incluindo a música.
Voltamos ao Bltiz. O Blitz não era apenas um jornal, era também a nossa única maneira de conhecer (e adquirir) música independente. Eu ainda sou do tempo em que quem quisesse comprar o álbum "First And Last And Always" dos Sisters of Mercy tinha de ir a Inglaterra. Não adiantava querer. As lojas não tinham e não mandavam vir. O que fazíamos então? Havia venda de fanzines, folhas A4 fotocopiadas e dobradas em dois de 6 ou 8 páginas, onde se divulgavam originais ou traduções de artigos do New Musical Express ou do Melody Maker, e mesmo do Blitz, sobre bandas que nos interessavam, que pela sua circulação underground permitiam um sistema de pirataria de K7s que foi a nossa única salvação. Encomendava-se tudo com ou sem a K7 virgem incluída, 500 ou 600 escudos, e ficava-se a conhecer a banda pretendida. Isto da gratuitidade da internet veio destruir muitos negócios. No nosso tempo a única coisa que era de graça era a amizade. O primeiro a comprar a K7 gravava para os amigos. Isto se tivesse hi-fi ou gravador com dois decks, que naquele tempo também não era para todos. (A melhor prenda que me deram na vida, tinha eu 17 anos, foi um sistema hi-fi com gira discos, uma excentricidade, uma maluquice, o equivalente a comprarem-me um Porshe e pô-lo à minha porta, foi a completa euforia. Desse sistema ainda tenho o armário e o gira discos, que não se estragou devido ao pouco uso, porque os discos compravam-se, gravavam-se e ouviam-se em K7 para não se riscarem.)
Voltemos ao Blitz. A secção de classificados estava cheia de anúncios para pen pals, pessoas a quem se escrevia (cartas, obviamente) com os mesmos interesses, e com quem se trocava música com fins não comerciais. Sempre houve as putas e os outros, e sempre haverá. Com as putas que vendiam as K7s não se queria nada. Com os outros, queria-se tudo. E sempre se há-de querer.
Foi assim que conheci pessoas semelhantes do Porto ao Algarve, passando por Coimbra e o provinciano Portalegre, pessoas isoladas aqui e ali que sentiam de modo diferente, que não cabiam na caixa, que não alinhavam no rebanho, que ouviam Diamanda Galas e assinavam as cartas com sangue (sim, com sangue). O Porto, especialmente, foi pioneiro da cena gótica quando em Lisboa nem se ouvia falar do assunto.
No país inteiro, por imitação à cena vanguardista inglesa, toda uma geração se começou a vestir de preto. Penso que começou com os tais artistas e intelectuais do Bairro Alto e passou das elites para a ralé. Às pessoas que me perguntam frequentemente o que eram os vanguardistas (porque não estavam cá), bem, meus amigos, era a malta que ouvia as bandas de vanguarda dos anos 80. Como se vestiam, basta olhar para uma foto dos Madredeus dos "Dias da Madredeus". Naquele tempo, para chocar, bastava a uma criatura vestir-se toda de preto e já os vizinhos se benziam. A roupa era bastante simples. Eles e elas vestiam casacos pretos, calças ou saias pretas, t-shirts ou camisolas pretas, e sapatos pretos, de preferência grandes. Havia também a moda das poupas à Morrisey. Eles e elas de franja erecta a terminar em ondinha para dentro, mas com gel, não porcaria, a uma altura dos 6 aos 10 centímetros. Moda era moda. Às meninas exigia-se também lábios pintados de vermelho vivo e anéis de pedras grandes e opacas. Sobriedade, meus amigos. Afinal, era a ressaca dos pós românticos. Nenhuma outra cor, excepto o preto, era tolerada. (Ainda hoje não devia ser... excepto o cor de rosa shocking... porque sim.)
Se os meus caros amigos mais velhos e os meus amiguinhos mais novos acham que isto não era nada, enganam-se, foi uma revolução. De repente, era ver aquelas hordas de negro a caminhar para o Bairro Alto, a encherem as tasquinhas, a consumirem Alien Sex Fiend e Einsturzënde Neubauten como se fossem tremoços. Tudo o que simplesmente soasse a minimamente comercial estava banido. Bandas que hoje se ouvem horas a fio nas noites revivalistas, Duran Duran, Heróis do Mar, Classic Nouveaux, António Variações... BANIDOS! Eu, pela minha parte, bani os Cure até hoje.
Ainda bem que falei em Cure por agora tenho a deixa para falar dos meus ódios de estimação. A moda dos Cure, e dos vanguardistas que gostavam de Cure (para quem se inventou o termo "curistas") nunca me convenceu. Aquilo foi sempre muito comercial. E noventa por cento da malta "vanguardista" era gente que se vestia de preto para dizer que era rebelde, e ser rebelde naquele tempo era fumar um charro no intervalo das aulas (o que é ser rebelde hoje em dia não sei mas desconfio que não anda longe), e tal como o fenómeno freak dos anos 90 também desapareceu sem deixar rasto, depressa tomaram juízo e começaram a vestir-se como pessoas normais que sempre foram. Poseurs! Ainda hoje se devem achar o máximo porque nos anos 80 fumaram um charro a ouvir Sonic Youth, tal como os pais psicadélicos da classe média-alta por consumir LSD ao som de "Sargent Pepper's Lonely Hearts" ou quejandos. Isto há modas. E dos vanguardistas, mortos e enterrados, não há mais a dizer excepto que os encontram no Jumbo mais próximo ao fim de semana a fazer o passeio do shopping com a famelga, de onde nunca deviam ter saído.
A eles a reverência que é merecida, contudo, porque serviram bem o movimento gótico. Sem eles, ainda ninguém se vestia de preto. Tiveram o seu papel. Siga.

A primeira vez que saí de facto à noite foi em 1988 e foi uma aventura a todos os níveis. Com um desconhecido, qual virgem gananciosa, fui para um Bairro Alto cheio de encantos proibidos com o intuito de atalhar o caminho do tempo perdido. Senti-me um daqueles exploradores do século XIX de que lia em livros do mesmo século, que tinham devorado tudo sobre um país exótico antes de o visitar. Já lá estava antes de lá chegar. O meu amigo do Porto, sempre um desconhecido de um lugar distante, mais velho e mais lido do que eu, deslocado aqui por malefícios do Serviço Militar Obrigatório, precisava de companhia e levou-me ao Estádio. O Estádio ainda lá está. O Estádio e as Primas, que devem ser a única coisa que resta daqueles tempos. Excepto os velhinhos. Os velhinhos do Bairro Alto, naquele tempo, ainda saíam à noite para ir ao Estádio beber a aguardente e ver a bola e olhar para nós, invasores, de queixo caído, especialmente as raparigas, com o ar intrigado de quem percebe que não éramos putas (como as outras, as da esquina da rua da Atalaia), mas também não percebia o que raio é que éramos. Velhinhos, vanguardistas e drogados, era assim o Estádio. E assim é que devia ser e assim é que sempre o recordarei.
Não sei como corremos tantos sítios numa só noite. Devia ser sede. Estava na moda "correr as capelinhas". Passar a noite toda num sítio, pior, permanecer mais do que meia hora num sítio só, era contra a etiqueta da noite. Fomos às Primas, fomos sei lá mais onde, fomos ao Incógnito estava ainda vazio, e fomos acabar com os ossos caídos na Juke Box da rua do Diário de Notícias a ouvir música que eu só tinha ouvido nas minhas K7s. Ele há coisas do destino. Árvore que nasce direita tarde ou nunca se entorta.
A certa altura na noite, considerando que já tínhamos trocado correspondência e preferências musicais e tudo o resto, diz-me ele que se eu gostava de Sisters of Mercy e Mão Morta e "vozes cavernosas" devia gostar de Fields of the Nephilim. E de seguida acabou logo ali comigo: "Com essas tendências depressivas, a pensar no suicídio, a ouvir essas músicas, deves ser gótica".
Foi a primeira vez que ouvi a palavra. Gótica. Achei uma grande parvoíce. Devo ter feito uma careta de todo o tamanho. O que me estava a chamar? Seria um bicho? Gótica, disse ele. E eu encolhi os ombros e perguntei "o que é isso?"...


Continua.

4 comentários:

jorge vicente disse...

Tens toda a razão. O que é ser gótica? É vestir-se de uma determinada maneira, mesmo sabendo que, muita gente só se veste daquela maneira para se mostrar?

Eu passei incólume a certas músicas nos anos 80, só as mais comerciais. Tinha 13 anos quando os Jesus & Mary Chain editaram o "Psychocandy" (foi em 87, não foi?) e só no início dos anos 90 é que me comecei a afastar, quando entrei na faculdade.

Mas, não tenho alergia aos Beatles. Nunca tive. Nem aos Rolling Stones. Mas, uma coisa é certa. Eles podem ter tido a influência que tiveram, ter inovado a nível do rock, mas as letras do Ian Curtis suplantam (quase) tudo o que foi feito para trás. As poucas excepções foram o Jim Morrison e o super esquecido Leonard Cohen, que é um génio literário.

Um abraço
Jorge Vicente

Escabroso disse...

Nostalgia absoluta e total ao ler esta perspectiva (tal como a perspectiva I). Um gozo enorme. É de tudo isto que sinto saudades.

Lord of Erewhon disse...

Muito interessantes estes teus textos sobre o Gótico. Acho importante o testemunho da tua geração, porque ao fim ao cabo é com a tua que a coisa começou a crescer por cá... antes da tua geração éramos ilhas.

Ando sem tempo para a net e não só... estou a atravessar um período de reciclagem total da minha vida e da minha pessoa... mas espero reagir de algum modo à tua perspectiva...

Dark kiss.

Lord of Erewhon disse...

P. S. Compreendo que, no fundo, nos alimentamos todos das nossas experiências... Ficas a saber que neste País, em finais de 70/inícios de 80,já havia quem se vestisse de preto e deambulasse pelo Bairro Alto... não havia lá quase nada... Onde abriram depois o «Limbo» existia o «Souck Club», onde se ouvia Kraftwerk e Black Sabbath e onde se reunia muita freakalhada dark, depois começou-se a ouvir Joy Division, etc, havia a«Ocarina», em Roma o «Browns» e depois foi vindo o «Rock Rendez Vous»,a «Juke», etc...