No princípio era o nada. Quando eu cheguei à noite, o Bairro Alto era ainda uma sucessão de tascas, casas de fados e elitistas bares da moda. Um pormenor que recordo com alguma perplexidade, ainda havia prostitutas na rua, sempre duas ou três, já quase reformadas e outras a entrar na pré-reforma, na esquina da Rua da Atalaia junto às Primas. Eram reminiscências de um tempo antigo, de engate à meia porta e cinta na liga, resquício ainda mais rebuscado da Lisboa do fado vadio, da Severa e de outras menos más, da soldadagem de província em busca de copos e mulheres, a fazer-se homem, dos boémios... e, claro, dos artistas. Parece há muito tempo mas ainda em 1987, quando eu cheguei, as pessoas sérias não saíam à noite. Sair à noite era coisa de puta, de putanheiro, de maricas e de artista de revista. Foi nesse Bairro Alto que eu herdei as tascas, as putas e os intelectuais. Estes últimos tinham os seus selectos santuários, o Frágil e os Três Pastorinhos, onde ninguém entrava se não vestisse Ana Salazar.
Não é possível descrever o meu caminho sem começar aqui, no Bairro Alto, onde (quase) nada do que há hoje existia mas algo de novo já começava a fervilhar, como um vírus contagioso todo contente no esgoto infecto, ainda invisível e incubado, mas pronto a espalhar a sua doença.
Mais em baixo, na rua do Diário de Notícias, havia sempre punks à porta de uma determinada discoteca. Discoteca era o nome que dávamos a um sítio onde se ia ouvir música tão alta que não se podia conversar. O termo "bar" raramente se ouvia. Havia o piroso bar dançante, isso havia, e a mais piolhosa "boite", geralmente também "casa de meninas" mas não necessariamente. Vai por isso o termo discoteca aplicado à Juke Box como a conheci, onde pela primeira vez ouvi Sisters of Mercy, Cure, Siouxie, Bauhaus ou Joy Division fora de casa.
Mas não avancemos mais que ainda há muito para contar. Lembro-me especialmente da sujidade, da porcaria. Ainda hoje os bares, tascas e mesmo discotecas da capital (nem escapam os mais finos) primam pela falta de limpeza. Falta de higiene da gerência, falta de asseio dos clientes. Porcos na pocilga em todo o estilo. (Será que conto aquela da menina que mijou nas escadas da casa de banho do Kremlin porque a pia estava ocupada? Não, não conto. E isso é muito para a frente na história.) Eis algo que não mudou. O que me leva a perceber que estas memórias começam muito antes disto tudo. O vírus desenvolve-se na merda.
A primeira vez que eu vi um punk tinha uns 7 ou 8 anos. Estávamos para aí entre 1979 e os primeiros anos 80. Eram duas gajas que vinham dos lados da Feira da Ladra. Os meus olhos de criança fixaram-se nas meias rotas até à brutal revelação que elas se vestiam assim de propósito. Collants esburacadas, roupas rasgadas, possivelmente de quem dormia na rua ou algo parecido (já havia droga mas não se sabia). Mas o que mais me chamou à atenção foi de facto a sujidade daquela gente. O cabelo, todo no ar, mas era mais da porcaria do que do gel. Se isto foi assim na anarchy do UK ou apenas aqui na piolheira (como um amigo insiste em chamar a isto, para meu desgosto) nunca saberei. Lembrei-me delas quando vi punks mais tardios deitados no chão a beber garrafas de litro de cerveja Sagres, também na Feira da Ladra, já iam altos os anos 80 e eram diacrónicas aquelas personagens de crista e pins dos Sex Pistols. Imaginem lá o que sustinha as cristas? Porcaria. Sabão azul e branco e porcaria. Muita porcaria. Não havia lêndea ou piolho que sobrevivesse muito tempo naquela cabeça cheia de heroína (ou será que os piolhos também gostavam?) mas na altura não se falava do assunto. Até se falava da piolhagem, mas não se suspeitava da heroína.
A porcaria nunca me atraiu, pessoalmente. O que leva a história aos meus 10, 11 anos, quando pela primeira vez comecei a ouvir música escolhida por mim. Antes de continuar, saliento mais uma vez que tinha 10, 11, 12 anos, nem mais um dia. Mesmo assim e tudo isso à parte, aqui vou ser peremptória: a música dos anos 70, década em que nasci, era uma grande merda e uma grande seca. Sejamos francos. Disco sound, Abba, Festival da Eurovisão por um lado, cantigas de intervenção pós-25 de Abril por outro, e no meio disto tudo lá se ouviam umas guitarradas de hard rock ou rock sinfónico que não excitavam o menino Jesus. Até os Doors, que são os Doors, no final se tornaram arrastados, psicadélicos, droga a mais.
As hipóteses de contacto com música de vanguarda, para um miúdo de 10, 12 anos, sem irmãos mais velhos, eram mais ínfimas do que ver um OVNI no céu alentejano.
Depois o Júlio Isidro começou a promover umas bandas, no seu execrável programa de domingo à tarde "O Passeio dos Alegres" (ou seria sábado? who cares? mas não queria dizer mal do "Passeio dos Alegres" porque pelo menos tentaram dar a conhecer algo novo...). Por lá passaram, se a memória de infância me não atraiçoa, os Trabalhadores do Comércio, os Táxi, os Salada de Frutas (de Lena d'Água), a Adelaide Ferreira (de "Baby Suicida"), e uma banda estranha, os Tantra, cujo vocalista se chamava Frodo (mal eu sabia o que eu ia gostar de Frodo...) e usava um cone de plástico na cabeça tão arrepiante que à pala disso não dormi algumas noites. (Foda-se, aquilo era lá coisa para passar num domingo à tarde, ou sou eu que me assusto demais?)
Isto era já o despertar do rock português, o Chico Fininho e outros que tais, mas nada disto me dizia a ponta de um corno.
Depois apareceu um programa inédito, salvo erro chamado Top Disco, já em plenos anos 80, portanto, onde se começaram a ver uns telediscos (a palavra era "telediscos") de uns rapazinhos giros chamados Duran Duran, e Limahl, e um outro de que eu gostava particularmente porque já sabia inglês e dizia-me algo, o Nik Kershaw, com o seu lamento de sucesso "Wouldn't it be good?", e até uns Culture Club que no mínimo me deixaram de boca aberta.
Havia neles uma diferença de tudo o que tinha visto até ali. Eram limpinhos. Eram bonitos. Usavam roupa escolhida a dedo. Penteavam o cabelo que só aparentemente parecia punk. Ali não havia porcaria, havia gel. Até a vil Madonna de Like a Virgin, com as suas rendas negras e meia dúzia de crucifixos ao pescoço, não cheirava mal à distância. Porque não vamos ter ilusões, os Táxi ainda me cheiravam a gasosa e peixe frito. Mas os Duran Duran? Cheiravam a vinyl, um aroma muito virtual de que eram feitos os artistas naquele tempo. E, contudo, com cheiro a disco rígido e a internet (que não cheira a nada), hoje os artistas da moda não têm metade da sinceridade que eles tinham.
Era também o tempo do hip hop. Na América estava na moda andar de lata da mão a pintar paredes. A Balada de Hill Street não demorou muito a chegar cá, mas quando atravessou o oceano não cheirava a hot dog mas a cachupa. Tinha doze anos quando fui a uma festinha de 2º ano do Ciclo (hoje 6º ano) e me disseram "hi, não sabes dançar reggae!" Eu saber até sabia, porque aquilo estava na moda à brava e se dançava assim: um passinho à frente, joelhinho abaixo, controlado, passinho para trás, joelhinho abaixo, controlado... Quase uns familiares passo à frente e dois atrás. Estava a guardar-me para música que valesse a pena.
Não podem dizer que não me tentei integrar na merda que havia. Eu tentei. Já com os meus 13, 14 anos, pus-me a ouvir heavy metal. Nessa altura já não se chamava heavy metal mas sim speed, trash, death metal. As minhas K7s estavam gravadas com temas pop da altura, "The Reflex" dos Duran Duran no lado A, e o lado B cheio de Anthrax (quando lhe dou, dou-lhe forte, não fico por paninhos quentes), não tanto porque gostava (depressa caía na mais profunda depressão) mas porque não conhecia outra coisa. Para explicar depressa e bem, nenhuma dessas K7s arqueológicas sobreviveram até aos nossos dias. Graças a Deus! E graças a mim que não tive o mau gosto de as preservar.
O que me leva à questão das tribos que existiam em Portugal na altura. Não, ainda não é hoje que vou falar nos vanguardistas. Esses merecem um cantinho bastante especial e dedicado nas páginas do meu ódio.
Vou começar pelos metaleiros porque me dá especial prazer, especialmente quando nas minhas tentativas de socializar aproveitei a minha audição (não apreço) pelas bandas de metal mais vanguardistas da altura para meter conversa com eles. Ser metaleiro, no início dos anos 80 e até princípios dos anos 90, não era andar vestido de preto com um pentagrama ao pescoço. Tudo isso foi roubado aos góticos. Vou então passar a explicar, e os metaleiros de hoje, quais alemães do pós-guerra, que me perdoem por não deixar morrer o horror mas vai ter de ser. Ser metaleiro, nesses tempos, era usar calças de ganga elásticas, azuis, usadas até ficarem azul bebé, todas chegadinhas ao rabo e pernas magras de anoréxicos/as, e camisolas dos "i-rom mái-dem", sim ouviram bem, "i-rom mái-dem" porque a maior parte deles nem sabia ler inglês quanto mais falar (o ensino obrigatório era o Ciclo Preparatório), e umas cabeleiras compridas, compridas, desgrenhadas, oleosas e... adivinhem?... sujas de meter nojo. Mas é como eu digo, a sujidade era tanta e geral que não se notava. Tudo era sujo, tudo era porco.
[Haviam de ver os pais e mães desses meninos, que só tomavam banho de quinze em quinze dias porque não havia dinheiro para mais.
Não sei se viram "O Perfume", já para não perguntar se leram. Há uma parte em que se diz que Paris na época devia ser um antro fétido a que os narizes já estavam acostumados. Portugal era um antro semelhante no que toca ao chulé, à caspa, à roupa suja. Ao perfume barato a disfarçar. Devemos ter aprendido esse truque do perfume com os franceses mas como não sou especialista vou-me reservar a falar do que sei.]
Os metaleiros, tal como os punks, parece que faziam um especial orgulho da sua falta de limpeza. E depois havia a droga. Já se cheirava droga por todo o lado e ainda ninguém lhe reconhecia o cheiro.
Isto da sujidade lembra-me outra tribo, aquela em que Portugal é mais pródiga, que são os bimbos em geral. Desses nem quero falar porque me deprime, mas diverte-me trazer aqui as memórias de uma sub-tribo de bimbos, os azeiteiros, que eram à sua medida uma espécie de "bimbo radical" mas mais porco. O próprio termo "azeiteiro" deriva da oleosidade capilar. A malta até lhes fez um eufemismo transformando o óleo em azeite pelo que não têm que se queixar. Um verdadeiro azeiteiro já é raro de se ver. Estão praticamente extintos (mas ainda existe um ou outro, escondido debaixo de uma pedra insuspeita.) Se querem imaginar um azeiteiro adaptado aos tempos modernos (versão azeiteiro rico) pensem num Cristiano Ronaldo, sem maquilhagem nem banho, com aqueles brincos espampanantes e o cabelo cheio de óleo, cortadinho à frente e comprido atrás, à Miami Vice, e aí têm a vossa fonte de inspiração.
Esta sub-espécie raramente saía dos buracos onde morava mas quando tomava banho frequentava discotecas à tarde (sim, à tarde, porque naquele tempo não se saía à noite) a fazer-se ao engate. Nem sei se hei-de falar aqui do famoso Crazy Nights ou mais à frente. Ou talvez nunca. Se hoje se tiver transformado em loja de chineses é muito bem feita.
Era vê-los, todos limpinhos com o banho da semana, de calcinha bege, camisinha às riscas, cinto fininho e preto, mocassin castanho e meia branca. Dois ou três botões desabotoados no peito, a mostrar a pintelheira e um fio de ouro com crucifixo, à chulo, como os pais que os pariram. Nem quero imaginar as mães.
À frente. Havia os betinhos, claro, mas nesses nem punha a vista em cima porque andavam em colégios particulares a engravidar e fazer abortos antes dos acampamentos dos escuteiros organizados pela igreja. Desses não é preciso falar. Continuam iguais e penso que, tal como as baratas, serão os últimos a perecer em caso de desastre nuclear ou afins.
Estou mais interessa nos putos filhos da classe média-alta emergente nos princípios e meados dos anos 80, época dourada de entrada na CEE e início do cavaquistão. Isso é que era dinheiro. Aos treze anos já achavam "o máximo!" ir com os pais aos bares da moda, o Bora-Bora e o outro ao lado, beber cocktails verdes de Pisang Ambon com um chapelinho-de-sol. Muitos desses vieram a tornar-se vanguardistas só para se livrarem dos pais e do Bora-Bora. (Não os condeno. Afinal, quem é que suporta o Bora-Bora? E os pais até ficaram aliviados porque naquela altura desatou tudo a divorciar-se e a dormir com este e com aquele e os fedelhos atrás só atrapalhavam o engate.)
Foi assim que os jovens começaram a sair à noite em Lisboa, extravagância proibida que até aí era um tabu tão grande quanto acender um cigarro numa unidade de oncologia do cancro do pulmão para doentes terminais.
E, de repente, num ápice, bons rapazes e boas raparigas começaram a invadir as tascas do Bairro Alto para beber barato (que a mesada não dava para mais) ao lado das putas e dos putanheiros e dos intelectuais e dos artistas.
Foi por esta altura que Jorge Palma escreveu um dos mais belos tratados sobre a noite chamado "Canção de Lisboa":
Os serões habituais
As conversas sempre iguais
Os horóscopos, os signos e ascendentes
Mais a vida da outra sussurrada entre os dentes
Os convites nos olhos embriagados
Os encontros de novo adiados
Nos ouvidos cansados ecoa
A canção de lisboa
Não está só a solidão
Há tristeza e compaixão
Quando sono acalma os corpos agitados
Pela noite atirados contra colções errados
Há o silêncio de quem não ri nem chora
Há divórcio entre o dentro e o fora
E há quem diga que nunca foi boa
A canção de lisboa
Mamã, mamã
Onde estás tu mamã
Nós sem ti não sabemos mamã
Libertar-nos do mal
A urgência de agarrar
Qualquer coisa para mostrar
Que afinal nos também temos mão na vida
Mesmo que seja a custa de a vivermos fingida
O estatuto para impressionar o mundo
Não precisa de ser mais profundo
Que o marasmo que nos atordoa
Ó canção de lisboa
As vielas de néon
As guitarras já sem som
Vão mantendo viva a tradição da fome
Que a memória deturpa e o orgulho consome
Entre o orgasmo e a gruta ainda fria
O abandonado da carne vazia
Cada um no seu canto entoa
A canção de lisboa
Continua.
3 comentários:
boa malha Mestra.
greetings from Camden Town
gafanhoto
A forma de expressar um sentimento não invalida a importancia do seu conteúdo para àquele que o expressa. É nisso que a Humanidade (por respeito as boas almas ainda escrevo-a com letra maiúscula) deveria prestar mais atençào e respeitar mais Bobby Bishop - www.h18.blogger.com.br
Pois... já não és das «Noites Longas» e da cavaqueira às 5/6 da manhã na «Sacristia» a S. Paulo... com a malta a comer morcelas, a mamar tinto e cerveja, apareciam por lá o pessoal dos Xutos, dos UHF... até dos Heróis do Mar... e o cromo do Jorge Palma até abriu o Europa no Cais do Sodré, onde quando o gajo estava bêbado - sempre - se mamava copos sem pagar! :)
P. S. O «Porão de Santos»... e o louco dos ENA PÁ 2000 a mamar peixes vivos no teatro da mamã! :)
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