domingo, 15 de janeiro de 2023

I Am Slave / Eu, Escrava (2010)

O que mais me chocou não foi exactamente a escravatura. Foi o facto de em pleno século XXI ainda haver gente, e gente abastada, bem na vida, que se julga no direito de possuir uma escrava em casa. Isso, sim, é arrepiante. Não é que me deva surpreender, porque os ordenados de miséria pagos pelas grandes empresas exploradoras são em si próprios uma forma de “escravatura moderna” que empobrece as pessoas a ponto de estas ficarem, na prática, desprovidas de quaisquer direitos, sempre em risco de perderem o pouco que têm e de que precisam para subsistir.
“Eu, Escrava” é outro nível de exploração, bem entendido, mais a par com outro crime dos nossos dias que é o rapto e exploração sexual de mulheres (como pelas máfias de Leste) mediante ameaça às suas famílias ainda nos países de origem. Não nos esqueçamos dessas também.
O filme baseia-se na experiência verídica de Mende Nazer, pelo que se assemelha mais a um documentário. Malia, jovem sudanesa, é raptada aos 12 anos na sequência de um ataque à sua tribo e vendida a uma família abastada de Cartum, onde é treinada para ser criada doméstica sem quaisquer direitos (escrava). Malia é vítima de violência física e psicológica para se “resignar”. Por último, a sua “dona” remete-a para uma prima em Londres, já Malia tem 18 anos, onde o processo de lavagem cerebral continua.
A primeira coisa que fazem a estas pessoas é tirar-lhes o passaporte, além de as proibirem de sair ou de contactar seja com quem for. Qualquer “transgressão” implica castigos, como ser fechada no escuro durante uma semana. Ameaçam matar-lhe a família ainda no Sudão se ela desobedecer, o que é um grande motivador de submissão. Na Europa, a incredulidade das pessoas perante esta situação é o maior aliado dos criminosos (não se lhes pode chamar outra coisa). Das poucas vezes que Malia consegue fugir, dirige-se a todas as pessoas que julga africanas e, ao pedir ajuda, chama-lhes “irmãos” (o que é comovente), originando nestes, nascidos e criados no Reino Unido, a perfeita estupefacção e indiferença.
Os “donos” de Malia são pessoas abastadas, que pagam a uma ama e a um chauffeur de serviço permanente. Este homem de meia-idade é o primeiro a aperceber-se da situação real de Malia, mas também ele precisa do emprego e teme ajudá-la. Pergunto, podemos mesmo culpá-lo? Não deve ser muito fácil arranjar um emprego tão bom naquela idade, e ele também tem família em que pensar. É dos outros tais “escravos”, aqueles que não o sendo acabam por sê-lo. Sim, é claro que podia ter feito uma chamada anónima para a polícia, mas não seria demasiado comprometedor? Mesmo assim, o chauffeur é o único aliado de Malia e ajuda no que pode, principalmente ao explicar-lhe que ela tem direitos. Permite-lhe, por exemplo, ficar ao portão e pedir auxílio a quem passa. Finalmente, Malia encontra outro sudânes que consegue libertá-la do cativeiro. Não considero isto um spoiler porque este filme funciona mais como documentário em que o importante é assistir a toda esta experiência e dá-la a conhecer, e ter em atenção que pode estar a acontecer mesmo debaixo dos nossos narizes.
Achei especialmente comovente a dramatização que ocorre durante anos, em que Malia, isolada de tudo e todos, ao crescer, tem como único “confidente” um pequeno gato de peluche, com quem fala e que a “aconselha”, ou melhor, com quem ela faz terapia em voz alta de forma a encontrar força e esperança para continuar. O pai de Malia, no Sudão, nunca deixa de a procurar, por muito que lhe digam que a filha está morta ou foi vendida e que nunca mais a verá.
O filme termina com o alerta de que se estima que existam 5000 trabalhadores escravos na situação de Malia, só no Reino Unido. No século XXI, volto a salientar.
“Eu, Escrava” não é fácil de ver, mas deve ser visto. A ignorância da realidade, a incredulidade de vizinhos e visitantes da casa, é o pior inimigo das pessoas apanhadas nesta situação.
O que mais nos enfurece é que esta família podia muito bem pagar a Malia pelo seu trabalho e tratá-la como ser humano. Não é uma questão financeira, é mesmo uma questão de sadismo.
Não vou dar nota ao filme porque este tem mais de documentário dramatizado do que de obra ficcional.


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