segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Gotika: arquivos Janeiro 2004

janeiro 21, 2004

O fio da meada II

Certas pessoas sentem uma necessidade imensa de manter um diário pessoal. Lembram-se de Anne Frank? A adolescente vivia clandestinamente numa divisão secreta junto da família e outras pessoas a que se resumia o seu pequeno mundo limitado pela perseguição nazi. Anne Frank não podia sair de casa. Não era livre. Nestas condições, perguntamo-nos se teríamos paciência para escrever um diário de trivialidades. Mas era isso mesmo que a jovem fazia. Possivelmente, aquele diário era a sua única ligação a uma realidade normal. A sua única vida de adolescente normal. Tudo o resto estava adulterado pelos tempos de insanidade em que teve o azar de viver. Acabou por morrer num campo de concentração. Desses últimos tempos não temos uma única linha de Anne Frank. Todos os que lêem o diário se questionam, o que teria ela escrito se pudesse escrever? Quais seriam as suas últimas palavras registadas no diário ao saber que ia morrer?
Falaria disso, da sua morte iminente, ou perder-se-ia a descrever a última refeição, a última discussão, a cor da sua roupa de prisioneira, o mau humor do chefe do campo de concentração?
Ambas as hipóteses são possíveis. É a vida de Anne Frank, e o seu trágico destino final, que nos impressiona no seu diário, pela ausência.
Nos nossos desabafos bloguísticos raramente descrevemos o óbvio. Tal como Anne Frank não falava do nazismo. Para ela, viver sob a perseguição nazi era secundário. Não constituía material de escrita. Para nós é o óbvio, o pungente da história. Mas no seu diário, Anne Frank fala de sentimentos, não de História. Não que não lhe interessasse mas porque naquele tempo era um dado adquirido que a vida de um judeu clandestino era assim, não havia outra maneira, por isso não tinha a relevância que nós lhe atribuímos.
Cercada pela armadilha do destino do seu nascimento na hora errada e no local errado, Anne Frank fazia o que podia para tentar levar uma existência normal. O mais normal possível.
Escrevia o seu "blog". Não o fez online porque não havia internet. Mas um dia todos teriam oportunidade de lê-lo. E comentá-lo.
Sentimo-nos próximos dela como se a tivéssemos conhecido pessoalmente.
Portanto, ter um blog não é nada de novo. O que é novo é poder dá-lo a ler aos outros, como dantes se emprestava o diário em papel aos amigos. É como escrever um diário e deixá-lo numa paragem de autocarro. Quem chega pode lê-lo e escrever os seus comentários. O dono do diário regressa, lê os comentários e escreve as entradas do dia.
O diário não perdeu o seu secretismo. Lembram-se daqueles diários antigos, que tinham uma chavezinha e tudo? Não vejo diferença entre escrever e fechar o diário à chave e escrever para um público desconhecido. O espaço confessional mantêm-se e o anonimato é preservado.
Custa-me a entender, contudo, alguns de nós que publicam sob o nome verdadeiro, deixando que todos saibam quem são. Dão um novo sentido à frase "a minha vida é um livro aberto". Não têm nada a esconder. Sentem-se socialmente tão aceites que não precisam de temer as represálias sociais.
Neste sentido, eu não sou um livro aberto. Não pelo que faço porque não tenho comportamentos socialmente ilegais ou condenáveis. Mas os meus pensamentos são politicamente incorrectos, são subversivos, são incomodativos, e há que ter cuidado com quem se partilham.
É por isso que muitas vezes nos blogs se lê "aqui posso ser eu", "aqui posso dizer o que penso", "aqui não preciso de representar". Tal como Anne Frank no seu diário, ao escrever o blog deixamos em segundo plano a perseguição da maioria que nos obriga a representar um papel que muitas vezes odiamos. O blog é o espaço da liberdade última, aquela que não nos podem roubar: a liberdade de pensar.

Publicado por _gotika_ em 07:04 AM | Comentários: (7)

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