quarta-feira, 12 de julho de 2006

"Lost", o estado do mundo




"Lost" ("Perdidos") é uma perfeita metáfora para o estado do mundo actual. "Lost" está para os anos 2000 tal como "Twin Peaks" para os 80 e "X-Files" para os 90. Em "Twin Peaks", durante anos de relativo optimismo, David Lynch teve tempo e oportunidade para se lançar na análise do inimigo interior, o perigo que pode morar na porta ao lado, a ameaça latente que vive escondida tanto numa pequena como grande comunidade de seres humanos que gostam de se julgar civilizados. Os anos 90, com a crescente inquietação e o inevitável pessimismo, ficou marcado por conspirações mais ou menos alienígenas, mais ou menos governamentais, mas a atenção estava ainda num inimigo invísivel, indeterminado, que tanto podia ser um extraterrestre ou o sinistro homem do cigarro. Mas tudo era uma nuvem de fumo. Se em "Twin Peaks" se perguntava "Quem matou Laura Palmer?", apontando o dedo ao serial killer (que afinal era um ser sobrenatural), já em "The X-Files" se sabia que "the truth is out there", mas a verdade nunca seria conhecida, embora se quisesse acreditar no lema da série, "I want to believe". Ambas as séries expressam o mesmo medo, o mesmo perigo, mas a ameaça é latente, não absolutamente real. Em "Lost", a ameaça é real, ou assim o parece. No princípio do milénio, pós-terrorismo, um grupo de pessoas sobrevive à queda de um avião numa ilha paradisíaca que lembra o Jardim do Éden antes da Queda, a Terra bíblica e prometida, mas nada de edénico existe nesta ilha. Com as pessoas chegam também as drogas, as armas, a guerra, mas também os polícias e os ladrões, os bons e os vilões, os homens e mulheres de fé. O mundo inteiro está condensado naquele microcosmos em que a sobrevivência do ser humano é realmente ameaçada, em que se pode perder a vida num segundo pela razão mais disparatada como um estranho urso polar à solta. Tudo é possível. Até a conspiração já ensaiada nos "Ficheiros Secretos", mas sem extraterrestres. O perigo é bem real e vem dos "Outros" habitantes da ilha, bem de carne e osso, bem humanos, cujas intenções não se conhece nem à maneira de os deter, tal qual o terrorismo. Não admira que num destes últimos episódios Jack tenha perguntado "quanto tempo demora a treinar um exército?".
É essa a pergunta dos dias de hoje, "quanto tempo demora a treinar um exército?", e já não "quem matou Laura Palmer?" ou "o que aconteceu em Roswell?". O mundo tem preocupações mais urgentes e perigosas com que se assustar, não há tempo a perder com serial killers e as profundezas da psique humana, com extraterrestes e longínqua vida noutros planetas. O mundo de "Lost" é paralelo mas é este mesmo, sem tirar nem pôr. Um mundo em que a preocupação é sobreviver mais um dia, à escassez e à guerra, mas um mundo de valores abalados, em que alguns se agarram à fé como última alternativa à destruição iminente e outros preferem fingir que a vida continua e não se passa nada. A humanidade a regressar aos seus estados mais primitivos, entre o tribalismo e a crença cega, entre o individualismo, o descalabro da família tradicional e a imperiosa necessidade de refazer os elos sociais perante a ameaça à espécie. A própria espécie humana vista como rato num labirinto, presa, por suprema ironia, na própria experiência que criou. A grande experiência de Deus no Jardim do Éden, afinal, terá sido tão inventada pela necessidade de acreditar em alguma coisa como é real o armagedão de que se suspeita se não se carregar na tecla de um computador do tempo da guerra fria. Deus, afinal, não existe. A experiência do Éden foi sempre fruto da imaginação do homem, que agora colhe o castigo de querer provar do fruto de todo o conhecimento, nascido na árvore do Bem e do Mal. É o mundo perdido, sem rumo, assustado, sem valores, sem fé, sem ter para onde fugir: tudo isso significa a palavra "lost".

3 comentários:

Eu disse...

Nunca vi esta série,mas fiquei com vontade de o fazer depois de ler a tua descrição dela. Ainda mais agora que terminou aquela que segui fielmente ao longo de anos: Sete Palmos de Terra. (Sinto-me como se alguém que cresceu comigo tivesse emigrado.)

Manuel Tavares disse...

Bom post, boa visão, boa análise. Por acaso partilho da tua visão, e sobretudo dou-t os parabéns pelo relacionamento com as outras duas grandes séries k marcaram as ultimas décadas.

Em termos gerais parece ser a ideia base da série este paralelismo com a realidade de hoje. Tenho sido fiel desde o episódio 1 desta série que acho genial por vários motivos, desde o enredo geral até à apresentação de cada personagem em pekenas histórias comprimidas em versão flash-back,como se peças de um puzzle que vão surgindo.

Uma das melhores séries de sempre.

Já agora, existe uma espécie de " caça ao tesouro" ou melhor de pistas na net. Um jogo online que acontece em torno da série.

João Lima disse...

Eu sou digamos um viciado em series, e esta serie foi vista em 5 dias de tao cativante que era. gostei bastante da tua analise. ja agora deixa-me so dar-te uma sugestao, ou melhor duas sugestões. Se puderes, vê as series everwood e nip-tuck sao tambem bastante interesante e apesar de nao te conhecer tenho ideia de que vais gostar bastante.