Uma história que precisa de ser contada antes que o nevoeiro da memória a leve para sempre.
A noite em que eu percebi onde eu pertencia. A noite em que eu percebi que era gótica.
No sábado anterior, tinha ido ao Incógnito com uns amigos. Isto foi, salvo erro, em 1989. Talvez no Outono. Não me recordo. Dos amigos só me lembro de um, o único que importava. Aquele de quem ainda sinto saudades. Uma alma gémea perdida na outra vida.
Nessa altura já há dois anos que andava pelo Bairro alto, pela Juke Box, até pelo Frácil, e também parava num bar todo cinzento chamado... Foi-se. O nome foi-se. Agora é o restaurante Põe-te na Bicha. Lembro-me de noites e noites passadas a falar de música à volta das mesas cinzentas, a ouvir incessantemente Joy Division e a beber não sei o quê. Com groselha. Tenho a certeza que levava groselha. Ou talvez não.
Nessa altura já sabia que pertencia a uma onda alternativa, cheia de jovens urbano depressivos, artistas, ou melhor, aspirantes a artistas, muitos deles engolidos pela heroína pouco depois. Muitos deles perdidos num mundo de fatos e gravatas. Muitos deles desaparecidos em acção.
Então, naquele sábado no Incógnito, roubaram-me a carteira. Lembro-me dos pormenores. Devia 1500 escudos, três vodkas com laranja (o vodka era a 500 escudos) e como éramos todos uma cambada de tesos, só levávamos o dinheiro à conta. Ninguém me podia pagar a despesa porque ninguém tinha dinheiro.
Não me lembro se deixei lá o meu BI ou se confiaram na minha palavra. Eu era, afinal, cliente conhecida da casa.
Ficou combinado voltar lá assim que pudesse.
Isso aconteceu na segunda feira seguinte. Fui acompanhada de dois amigos. Nessa altura costumávamos ir ao cinema às segundas feiras. Não me lembro se ainda íamos para o cinema ou se já voltávamos. É possível que fosse na volta porque o Incógnito só abria às 10, ou seriam 11?, e os amigos estavam com pressa.
O que descobri nesse dia obliterou tudo o resto.
Entrei sozinha, só para pagar a conta.
A casa tinha acabado de abrir. O primeiro cliente tinha acabado de chegar. Um tipo de preto, encostado ao corrimão do primeiro andar. Estava escuro. Mal se via coisa alguma. Eu conhecia o sítio de cor, não precisava de luz.
Segui um dos empregados de bar até à cave, onde também era a pista de dança. Nesse momento, o DJ levantou o som da música. Ligou a máquina de fumo. Um cheiro a gelo e um frio penetrante fizeram-me esquecer o que me levara ali. E de repente, percebi que estava escuro, no meio do nevoeiro, sem pessoas excepto o vulto de preto, e das colunas de som ouviu-se:
Brother wolf, sister moon
Your time has come
Brother wolf, sister moon
Your time has come
And the wind will blow your tears aways
Will blow your tears away
Will blow your, your tears aways, yeah! Your tears away, yeah!
Ian Astbury cantava. Eu parei. Esqueci-me dos amigos lá fora e acho que acendi um cigarro. Nesse momento o tempo parou. Não queria sair. Tudo o resto não fazia diferença. As pessoas não importavam. Só o nevoeiro, o som e a escuridão falavam comigo. E ouvi-os falar comigo. E as pessoas calaram-se. Eu estava sozinha. Absolutamente sozinha. E era agradável.
Nesse momento percebi que as pessoas lá fora, à minha espera, nunca sentiriam o mesmo.
Fui transportada para onde sempre estive sem saber, e encontrei-me.
Fiquei ali até aos Cult darem lugar a outra música. Não sei que desculpa inventei para a minha demora. Para explicar como fiquei embriagada de som e escuridão e nevoeiro. Para explicar que tinha encontrado o meu lugar e não queria sair.
Acabei por sair. E por voltar.
O gótico foi a única coisa que estava dentro de mim antes da vida e que continuou dentro de mim quando essa vida acabou.
O som, a escuridão, o nevoeiro. Os vultos negros desconhecidos. A solidão absoluta.
O único, o primeiro e o último porto de abrigo. First and last and always mine.
Nessa noite tive a certeza. Nunca nada foi o mesmo nunca mais.
2 comentários:
Engraçado, no outro dia andava a ver uns posts antigos teus e deparei-me com um em que dizias que um dia irias contar a história de como descobriste que eras gótica. Ia precisamente 'cobrar-to', quando chego aqui e o encontro :P
Quanto à história em si, é bonita, como referiste no tal post. Que toda a gente se encontrasse dessa maneira!
foi desta maneira que percebeste que pertencias a esse "mundo" ? ...
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