Uma equipa de operacionais vindos do futuro chega ao século XXI para impedir a humanidade de destruir o planeta. Esta premissa parece bastante hard sci-fi, mas felizmente não é. “Travelers” é uma série algo filosófica, focada nas personagens, em que a ficção científica muitas vezes fica em segundo plano. Se calhar por isso é que não teve o sucesso que merecia.
Para começar, a maneira como a equipa chega do futuro levanta questões éticas. No futuro têm tecnologia que permite transferir uma consciência para o cérebro de um hospedeiro no passado, o que provoca a morte do mesmo. Para “aligeirar” este problema, os hospedeiros são escolhidos de entre pessoas que estariam a minutos de morrer (por exemplo, de acidente) se as consciências do futuro não as “ocupassem”.
A maneira como a tecnologia do futuro escolhe estes hospedeiros é igualmente interessante: através de registos de óbitos e redes sociais. Isto leva a que alguns erros sejam cometidos. Por exemplo, a médica e o historiador da equipa vão parar a corpos de hospedeiros que não são o que consta nos registos. Ele ocupa o corpo de um toxicodependente de quem se pensava ter morrido de overdose no seu primeiro contacto com a heroína. Mentira nos registos para não ofender a família do falecido. O hospedeiro já era toxicodependente há muito tempo. Isto faz com que um dos membros da equipa nem sempre esteja nas melhores condições, por muito que este tente libertar-se de um vício que não é dele. Outro erro acontece com a médica da equipa. Nas redes sociais, a hospedeira escolhida é uma bibliotecária. Mas isto também não é verdade. A hospedeira é uma jovem com atrasos de desenvolvimento que apenas ajuda a arrumar livros na biblioteca, a quem o assistente social constrói um perfil na internet como “bibliotecária” para a fazer sentir-se normal. Isto leva a que a médica da equipa encarne num cérebro com problemas que não comporta a consciência superior que recebe.
Os outros membros da equipa também caem de pára-quedas nos dramas pessoais dos hospedeiros. À medida que interagem com as suas famílias, amigos e colegas do século XXI, cada vez mais esses dramas começam a ser igualmente os dramas deles.
E a verdade é que os dramas destes viajantes, vindos de um mundo destruído onde a humanidade se abriga em refúgios e já perdeu a individualidade em prol do bem comum e da mais básica sobrevivência, é que são o mais interessante que a série tem para oferecer. Na minha opinião, pelo menos, que a certa altura me esqueci completamente de que estava a ver uma série de ficção científica e me interessei sobretudo em perceber como é que as personagens iam reagir aos problemas que as confrontavam agora.
Não sei se era isto que os criadores da série queriam fazer. Pareceu-me, por vezes, que a série ainda andava a tentar encontrar um rumo e um lugar, ora descaindo mais para o drama psicológico, ora apresentando episódios mais científicos. Como é típico da Netflix, os espectadores é que iam moldando a série conforme as audiências. Não sei se isto resultou ou se, pelo contrário, foi isto que provocou o cancelamento de “Travelers” após três curtas temporadas. Mas a verdade é que se sentiu muitas vezes que a série estava mal planeada e não sabia muito bem o que queria ser: se um drama, se ficção científica hard.
Por exemplo, no sexto episódio é-nos dito que no futuro um asteróide colide com a Terra, causando a quase extinção da humanidade. Isto é grave, muito grave. Diria mesmo que toda a série podia ter sido planeada em torno disto, em como evitar que o asteróide atingisse o planeta e a dificuldade em consegui-lo. Mas não. Tão depressa como apareceu, o problema foi logo resolvido no mesmo episódio.
Os episódios seguintes começaram a ser quase a missão-da-semana, que a equipa resolvia e partia para outra. O único e melhor fio condutor foram mesmo as personagens, cada vez mais profundas e complexas. Para uma série tão curta, houve demasiados episódios de encher chouriços, com sub-plots que não interessavam nada para o enredo principal. Chegando à terceira temporada, a série ainda continuava a arrastar os pés. Teria sido melhor abandonar completamente os episódios de filler desnecessário e focar a narrativa na história principal. Talvez não desse para fazer três temporadas, mas seria muito mais satisfatório: princípio, meio e fim, sem desvios irrelevantes.
“Travelers” tentou ser experimental a muitos níveis. A começar pelo posicionamento da câmara (muitas vezes descentrada, o que resultou porque imprimiu tensão onde ela era necessária), à mania de começar quase todos os episódios “in media res”. Da utilização desta última técnica já não gostei. In media res significa “no meio das coisas”, isto é, onde seria o meio do episódio, geralmente nas partes de maior acção. A técnica serve para agarrar o espectador (e o leitor, no caso dos livros) numa passagem de maior tensão, mas implica sempre um “X horas antes…” que explique como é que se chegou ali, o que significa que o episódio começa a meio e volta ao princípio. Uma vez ou outra é interessante. Mas esta é uma técnica que deve ser usada como um bom tempero: quando é demais satura. Foi o que aconteceu em “Travelers”, com episódio-sim episódio-sim a começar em in media res. Obviamente, saturou, porque tudo o que é demais é cansativo e enjoa. As outras técnicas funcionaram bem.
Não posso acabar a crítica sem mencionar que “Travelers” é uma daquelas séries destinadas a ajudar (a começar) a processar o trauma do 11 de Setembro. Uma das cenas mais importantes passa-se precisamente numa das torres do World Trade Center, a poucos minutos do ataque terrorista. Isto deve causar um choque brutal às audiências americanas que deve ser levado em conta. Ao longo do tempo, muitos traumas americanos foram sendo resolvidos através do cinema. Outros sê-lo-ão no pequeno écran.
Apesar dos solavancos de qualidade e da ficção científica nem sempre bem explicada, recomendo a série pelo seu aspecto psicológico e, ultimamente, filosófico, e aconselho a ignorar liminarmente os episódios de encher chouriços. No fim, vale a pena. Mas “Travelers” podia ter sido uma daquelas séries que nos fazem roer as unhas de nervosismo, uma série extraordinária que nos agarra do princípio ao fim, e infelizmente não foi.
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domingo, 23 de janeiro de 2022
Travelers / Viajantes no Tempo (2016–2018)
domingo, 14 de novembro de 2021
Sanctuary / Santuário (2008–2011)
Uma série semelhante a “The X-Files”, “Sobrenatural” e “Fringe” só podia correr bem, não? Não. Foi um desastre. Nota-se que é um desastre quando de temporada para temporada os protagonistas vão desaparecendo (fugindo a sete pés). Nota-se quando o primeiro genérico era tão semelhante ao de “X-Files” que na segunda temporada tiveram de mudá-lo para uma cantiga horrorosa que podia ter ido à Eurovisão. Por alguma razão alguém acreditou na primeira e segunda temporadas de 13 episódios e encomendou uma terceira, com 20. A quarta temporada já volta a ter apenas 13 e já são demais.
A única coisa boa desta série é mesmo a protagonista, Amanda Tapping, que alguns leitores reconhecerão como o anjo Naomi de “Sobrenatural” (sim, aquela que torturou Castiel e acabou a mandar no Céu na falta de “pessoal”) ou num papel ainda mais insignificante nas duas primeiras temporadas de “Travelers”. (Grande despromoção, há que dizê-lo, que a actriz até nem merecia.)
Amanda Tapping faz o papel de Helen Magnus, uma benfeitora que cria um santuário para todos os seres anómalos (e não “anormais”, como as legendas começaram a chamá-los) que existem escondidos no mundo. Helen Magnus é uma mistura de “caçadora” e cientista. Mas ela própria tem um segredo, a sua longevidade. Porventura o mais interessante da série toda é que Helen Magnus e um grupo de amigos cientistas, no século XIX, descobriram os últimos vestígios de Sangue Puro de vampiro, raça já extinta, que em tempos escravizou a humanidade. Este Sangue Puro causa efeitos diferentes em cada um dos cientistas que se submeteram à experiência. (Porque é que os efeitos são diferentes? É melhor não fazer perguntas difíceis.)
Nem vou criticar que esta série meta Jack the Ripper, Dr. Jekyll e Mr. Hyde, Nicola Tesla, Sherlock Holmes (ou melhor, o discreto Watson) e o Homem Invisível. (Sim, leram bem, o Homem Invisível.) Tinha tudo para ser uma grande série. Excepto enredo.
A cada episódio eu tinha a sensação de já ter visto aquela história noutro lado. Algumas histórias eram o filme “Aliens” ou “The Thing”, outras os “X-Files”, outras talvez histórias de ficção científica que eu não vi nem quero ver. Há um episódio, por exemplo, todo “inspirado” em “Queen of the Damned”, e a gente já sabe que a Akasha não era exactamente boa pessoa. Acho que de todos os enredos pilhados aqui e ali este é o que eu menos consigo perdoar.
O mais ridículo mesmo (lá está a mania com o Júlio Verne) foi a Terra Oca, onde existe uma civilização muito mais avançada do que a nossa e completamente secreta. Mas isto não fica por aqui. Se pensam que é o núcleo da Terra que provoca terramotos e maremotos, desenganem-se. O que existe no fundo do mar é uma gigantesca aranha, meio-animal meio-entidade cósmica (até lhe chamam Kali, a deusa indiana) que de vez em quando acorda e faz das suas.
Por esta altura eu já não sabia se havia de rir ou chorar.
É verdade que a série é “antiga” (2008), mas para todos os efeitos é uma série americana (e não daquelas séries europeias escritas em cima do joelho de episódio para episódio), e já não se esperava algo tão mauzinho em 2008.
Às vezes vejo séries por serem más, muito más, para não perder a perspectiva do que é realmente muito mau. É o caso de “Santuário”. Mas quem quiser entretenimento sem ter de pensar muito (ou nada) com Fantasia Urbana, ficção científica duvidosa, uma aranha gigante, e uma história de vampiros mal desenvolvida, faça favor. Ah, também há um lobisomem, uma sereia e um Abominável Homem das Neves. Não falta aqui nada. Até tem coisas a mais.
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