Conhecia este livro quase há tanto tempo como conheço Nick Cave, mas a oportunidade nunca se proporcionou. Não fazia ideia do que ia ler.
Esta é a história de Euchrid Eucrow, um desgraçado que já era desgraçado antes de nascer. Mãe alcoólica, pai indiferente. Nos anos 30, numa miséria humana em todos os sentidos, Euchrid nasce junto a uma comunidade fortemente religiosa sem nunca lhe pertencer. O negócio dos pais, ao que parece, é produzir zurrapa para os vagabundos que abundam pelo vale. O passatempo da mãe é torturar Euchrid, o passatempo do pai é torturar os animais ainda vivos que apanha nas suas armadilhas. Euchrid não é filho único. O seu irmão gémeo, o primogénito, morreu logo depois de nascer e foi enterrado no quintal.
Euchrid é mudo de nascença, o que, conjuntamente com o seu status familiar abjecto, o torna alvo de perseguição e tortura pelos habitantes mais perversos do vale.
Sem ninguém que o proteja, pela altura em que os pais morrem Euchrid já está meio louco. Na falta deles, enlouquece de vez. Convence-se de que é um mensageiro, um sabotador por ordem divina, ouve a voz de Deus, vê um anjo da guarda, vê fantasmas, acredita-se um rei num reino de sucata que tem como súbditos os pobres animais estropiados e famintos apanhados nas armadilhas que herdou do pai. Testemunhar os delírios de Euchrid, relatados na primeira pessoa, é acompanhar uma descida aos abismos mais alucinados da loucura. Muitas vezes os seus devaneios são já tão desligados da realidade que Nick Cave tem de "intervir" para nos elucidar sobre o que está realmente a acontecer. Euchrid começa a sofrer de "apagões" ("deadtime", como ele lhes chama) em que não se lembra do que fez. Euchrid também tortura animais, o que só não é mais difícil de ler porque percebemos que a violência vem de uma mente paranóica e demente, como, por exemplo, quando ele espanca um cão porque o cão estava a "troçar dele". Num sonho, ou visão, Euchrid vê-se a estrangular o próprio irmão com o cordão umbilical no ventre materno, o que seria impossível mas que nos esclarece sobre o seu estado mental. Por outro lado, o facto de Euchrid se intitular a si próprio "sabotador" (algo que o fantasma do pai também lhe chama, acusatoriamente) dá-nos razões para suspeitar que tenha matado o pai, muito embora ele diga que eram próximos e que não tinha nenhuma razão para fazer isso. Tirando a "nenhuma razão", tem todas as razões, e tem apagões em que não se lembra do que fez, e não se pode confiar numa palavra de Euchrid por muito que ele acredite piamente no que diz.
A história de Euchrid é violenta, chocante, pesada e perturbadora. A escrita de Nick Cave é magistral, erudita, avassaladora, mas com a componente lírica que seria de esperar. Nick Cave, como os fãs já sabem, é também um letrista fora de série, um contador de histórias extraordinário, um daqueles raros mestres do ofício de escrever que conseguem fazer tudo o que querem das palavras. Quem acompanha Nick Cave, tanto a solo como nos Birthday Party ou nos Grinderman ou com os Bad Seeds, vai reconhecer neste livro muitos temas recorrentes na obra musical, alguns desenvolvidos de forma diferente, outros muito semelhantes, como no caso do cavalo chamado Sorrow ou de "The Firstborn Is Dead".
Após ler "The Death of Bunny Munro" e "And the Ass Saw the Angel", e de ficar arrebatada pelo talento de Nick Cave (também) como romancista, quase me perguntaria porque é que ele não escreveu mais livros se não soubesse já a resposta. Depois de "The Death of Bunny Munro" a tragédia abateu-se. E voltou a abater-se poucos anos depois. Compreendo que o autor possa não estar no melhor espaço mental para escrever neste momento, mas a tragédia e o luto são um grande catalisador para a criação artística e eu vou manter a esperança.
Aconselho veementemente os livros de Nick Cave a todos os fãs, os que melhor vão conseguir apreender todo o significado e simbolismo da sua obra em prosa. Quanto aos que ainda não conhecem a música de Nick Cave, recomendo também e prometo que a música é tão boa ou melhor.
domingo, 27 de abril de 2025
And the Ass Saw the Angel, de Nick Cave
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